Não podemos avançar apenas nas tecnologias, mas também combater a exclusão social
Pedro Campana* Publicado em 01/12/2021, às 12h20
Há 40 anos, os primeiros casos de Aids foram relatados nos Estados Unidos. Pacientes jovens, com quadros de pneumonia por fungos, lesões de pele compatíveis com câncer e outras formas atípicas de doenças, começaram a surgir e causaram bastante preocupação.
Inicialmente, o único vínculo entre esses doentes era a sexualidade: tratava-se, na sua maioria, de homens gays. Desse modo, a síndrome inicialmente foi atribuída a essa população, que desde então ficou estigmatizada. Denominações tais quais “gay cancer” ou “gay compromise syndrome” foram dadas inicialmente a Aids, evidenciando o estigma a que essa população estava condenada.
Em 1983, o Brasil registrou seu primeiro caso. Um paciente que havia voltado dos Estados Unidos apresentava lesões cutâneas e foi diagnosticado na cidade de São Paulo. A partir do conhecimento desse caso, novos foram surgindo. A pandemia havia oficialmente chegado ao nosso país.
A resposta à pandemia de Aids foi pressionada por movimentos sociais gays. Em São Paulo, eles pressionaram diretamente as Secretarias Estadual e Municipal de Saúde para criarem serviços de atendimento a pessoas com Aids. Com o aumento dos casos, iniciou-se uma estruturação com o Insitituto de Infectologia Emilio Ribas como referência para casos hospitalares da doença, e o CRT Santa Cruz, como local para acompanhamento de doentes e busca ativa. Foi criado, na ocasião, o disk-aids, linhas diretas para tirar dúvidas acerca da doença.
A pandemia espalhou-se pelo país, especialmente entre as grandes capitais, fazendo com que movimentos sociais de várias localidades pressionassem o poder público. O Grupo Gay da Bahia teve bastante influência nesse processo, fornecendo materiais educativos e lutando para a garantia de direitos de pessoas vivendo com HIV/Aids.
No Rio de Janeiro, equipes de saúde começaram a visitar casas noturnas para distribuição de panfletos e preservativos. Além disso, informar sobre locais de atendimento e testagem para a população.
É importante lembrar que, no Brasil, o mesmo estigma norte-americano repetiu-se, e assim foi no mundo todo: quem tinha Aids era gay. Mesmo com a descoberta de outras vias de infecção, como transfusões sanguíneas e transmissão por sexo vaginal, o estigma e preconceito continuaram apenas sob a população de homens homossexuais, bem como mulheres trans e travestis e mulheres em situação de prostituição.
Apenas em 1985, com o espalhamento estabelecido da pandemia pelo país, que o Brasil teve seu primeiro Programa Nacional de Aids. Lair Guerra, bióloga, foi figura central na estruturação desse programa, bem como na sua solidificação. Dessa forma, ações estruturadas e estratégicas foram iniciadas no nosso país.
É importante lembrar que, mesmo com um programa de HIV/Aids sólido e competente, a questão do estigma sob as populações LGBTQIA+ continuou de forma bastante expressiva. Lair Guerra, embora competente do ponto de vista técnico, tinha uma visão moralista da infecção, sendo arduamente criticada por muitos movimentos e lideranças da época.
A medida em que o Programa Nacional de Aids foi se consolidando, incorporações de novas tecnologias foram realizadas. Em 1991, o Ministério da Saúde adquire o AZT, primeira medicação antirretroviral, além de medicações para as chamadas infecções oportunistas. O programa recebeu apoio do Banco Mundial, com grandes financiamentos e se estruturou de forma sólida em nosso território.
É claro que não foi fácil e sempre tivemos movimentos sociais lutando para a garantia dos direitos de pessoas vivendo vom HIV/Aids, protestando e pressionando sempre o poder para conquistar avanços. Só assim, em 1996, conseguimos alcançar a fabricação nacional de antirretrovirais pela Farmanguinhos.
O Programa Nacional de Aids tornou-se e é exemplo até hoje mundialmente. Conseguimos, com o passar dos anos, diminuir taxas de Aids, transmissões de mãe para filho no momento do parto, e garantimos o tratamento para todas as pessoas que vivem com HIV no país. Todavia, ainda temos um aumento na incidência de diagnósticos de HIV.
Dessa forma, é importante a prevenção, também incorporada de maneira muito acertada pelo Ministério da Saúde. A prevenção combinada, que combina métodos de prevenção para um maior êxito, é disponível pelo SUS, compreendendo PrEP, PEP, testagens regulares, uso de preservativos, vacinas e outras estratégias. Essa é a melhor medida que temos atualmente para controlar novas infecções que já surtiram resultado em algumas partes do mundo e em algumas cidades do país, como São Paulo.
Embora tenhamos avanço na prevenção e tratamento de HIV, ainda temos uma pandemia de Aids concentrada em uma população de rapazes jovens, entre 15 e 29 anos de idades, gays e pretos. Há um recorte específico também em relação a população trans, extremamente marginalizada e invisibilizada. Há 40 anos, um estigma se perpetua e leva pessoas à morte. A desinformação e o preconceito continuam a apontar dedos e determinar histórias.
Não podemos avançar apenas na tecnologia de fármacos, diagnósticos e métodos preventivos contra a infecção pelo HIV. Precisamos de mais. Precisamos entender que exclusão social determina o adoecimento dessas pessoas, assim como preconceito, racismo, trans e homofobia. Para vencermos a pandemia de HIV/Aids que já se perpetua por 40 anos, temos que falar direitos humanos e entender que, mesmo nas nossas diferenças, somos todes iguais e merecemos respeito e inclusão social. De todas as doenças, a exclusão social é a mãe de todas. Precisamos combatê-la.
* Pedro Campana é infectologista
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