Violência e rejeição por parte das famílias é um ponto em comum a essa população
Bruno Branquinho (psiquiatra) Publicado em 08/09/2022, às 10h20
Na semana passada, eu fui assistir ao espetáculo teatral “Brenda Lee e o Palácio das
Princesas”, em cartaz no Teatro do Núcleo Experimental em São Paulo/SP. O musical conta
um pouco da história da travesti Caetana, mais conhecida como Brenda Lee, que se tornou
um marco na luta por direitos LGBTQIAP+ por ter sido uma das primeiras a acolher em sua
casa travestis sem oportunidades e que viviam com HIV.
A casa era conhecida como “Palácio das Princesas” e, posteriormente, virou a “Casa de
Apoio Brenda Lee”, firmando convênios com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo
e com o Hospital Emílio Ribas para melhor atender pessoas em situações difíceis que
viviam com HIV, em especial mulheres trans e travestis. A instituição funciona até hoje no
bairro da Bela Vista, em São Paulo.
Para além da sua importância em relação à história do movimento de luta pelos direitos da
comunidade LGBTQIA+, a peça evidencia cena a cena as dificuldades e violências sofridas
por pessoas trans e travestis, desde seu nascimento até a hora de sua morte.
Nas primeiras cenas da peça, conhecemos as histórias de 5 garotas que são acolhidas por
Brenda Lee em sua casa. Como ponto em comum em cada uma das histórias, há a
violência e rejeição por parte das famílias ao saberem que essas pessoas não são o que se
era esperado delas: cis e heterossexuais.
Essa é, infelizmente, a realidade da maior parte das pessoas trans e travestis. Sofrem
violências desde cedo por serem quem são, vindas de todos os lugares, inclusive do lugar
onde deveriam ser mais protegidas: dentro de casa. Abusos físicos, sexuais e psicológicos,
terapias de conversão, exorcismos, rejeição. Vale de tudo, menos aceitar e acolher suas
reais identidades. Por fim, expulsam essas pessoas de casa e as deixam expostas a ainda
mais violências. “Esse não é meu filho, ele escolheu esse caminho, não tenho nada a ver
com isso”. A última violência de todas: a responsabilidade por todo o sofrimento ainda é da
pessoa trans/travesti, que ousou não se submeter às vontades de uma sociedade
LGBTQIA+fóbica.
Ao serem expulsas de casas, pessoas trans e travestis perdem não só sua família e um
lugar para morar, mas também acesso à saúde, à educação e a direitos básicos. Na peça,
vemos outra realidade muito comum entre elas: a prostituição. De acordo com a Antra -
Associação Nacional de Travestis e Transexuais -, estima-se que 90% das pessoas trans e
travestis têm a prostituiçao como fonte de renda e possibilidade de subsistência.
E com essa realidade, vêm também todas as outras consequências disso: abusos por parte
de clientes, cafetões e policiais, exposição a riscos de saúde como ISTs (infecções
sexualmente transmissíveis) e abuso de drogas, preconceito por parte da população em
geral, que a consideram promíscuas, imorais e violentas.
Na peça, há uma das personagens que tenta trabalhar num salão de beleza, mas é
demitida por não ter carteira de trabalho. Mais um fator que impede o acesso dessas
pessoas ao mercado de trabalho: a dificuldade no acesso à documentação. Para tirar a
carteira de trabalho, hoje, precisamos de RG, CPF, comprovante de endereço e uma foto
3x4. Em cada etapa para tirar esses documentos, essa pessoa sofrerá violências e
desconfiança e muitas vezes ainda assim não conseguirá. “Esse não é seu nome”; “você
não é mulher”. Todo o processo é feito de uma forma que direciona essas pessoas à
marginalização e à informalidade.
As personagens da peça enfrentam diversas questões relacionadas à saúde e infelizmente
isso é mais um problema que as pessoas trans e travestis enfrentam em sua vida: maior
exposição a doenças físicas e mentais e pior acesso aos serviços de saúde.
Os índices relacionados à saúde mental das pessoas trans são muito piores que em relação
à população cis e heterossexual. Por conta de todo o preconceito e violências sofridos de
forma crônica e constante ao longo da vida, têm maior prevalência de transtornos
depressivos, transtornos de ansiedade, dependência de substâncias e de suicídio. Além
disso, por suas condições precárias de vida e de trabalho, acabam mais expostas a
problemas de saúde físicos, como infecções e doenças crônicas.
O acesso aos serviços de saúde é restrito a essa população. Ao serem expulsas de casa e
perderem seu acesso à educação, também diminuem suas opções no mercado de trabalho,
e por isso a questão econômica é uma das restrições impostas. Mas não a única.
Ao procurar serviços de saúde, pessoas trans e travestis são frequentemente alvo de
violência, ignorância e preconceito por parte de profissionais de saúde, o que afasta essas
pessoas de um tratamento adequado e piora suas condições.
No fim da peça, vemos a morte de algumas personagens e, novamente, é abordada a
questão da solidão e da rejeição das pessoas trans e travestis. Fica difícil inclusive falar de
envelhecimento nessa população, dado que a expectativa de vida média de uma pessoa
trans no Brasil é de 35 anos, menos da metade da expectativa média da população geral.
Mas, além do fato de que morrem cedo, outra coisa que preocupa é que essas pessoas
morrem sozinhas, desamparadas por suas famílias e pela sociedade. A grande maior parte
dessas pessoas não se casa, não tem filhos, é rejeitada pela família, sobrando apenas os
amigos para acompanhar o fim de sua vida, num momento em que conforto e carinho
poderiam amenizar o medo e a dor sentidos.
No fim da peça, a resposta: ‘VOCÊS! VOCÊS! VOCÊS!”. A culpa é nossa se as pessoas trans passam por tudo isso. Somos nós, pessoas cis, que permitimos que tudo isso
aconteça com as pessoas trans, que são cidadãos e indivíduos como todos e merecem
amor, respeito e garantia de direitos básicos. Se elas morrem, é porque nós matamos, seja
pela via direta (assassinando, espancando), seja pela via indireta (restringindo acesso a
saúde, emprego, educação). Há sangue em nossas mãos e é por isso que eu recomendo
que assistam ao espetáculo: a arte nos mostra coisas que muitas vezes não queremos ou
não conseguimos enxergar. A mensagem que fica pra mim é: a culpa é nossa e, portanto,
somos nós que temos que nos mobilizar.
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