Vivemos numa sociedade estigmatizante com pessoas gordas, especialmente entre as minorias
Henrique Cardoso Cecotti* Publicado em 14/12/2021, às 10h00
Não é novidade que vivemos num mundo mais gordo. Estima-se que 1 em cada 3 pessoas no mundo esteja hoje acima do peso. Mesmo com corpos gordos cada dia mais comuns, vivemos numa sociedade que se torna cada vez mais lipofóbica e estigmatizante com pessoas gordas, especialmente entre as minorias.
Homens gays são desproporcionalmente afetados por uma gordofobia mais intensa que héteros. Infelizmente, boa parte desse estigma vem de dentro da própria comunidade LGBT. A gordofobia internalizada – quando a pessoa atribui a si mesma menor valor ou características negativas em decorrência do peso, como feiura, preguiça e ou falta de controle – aumenta ainda mais os já altos índices de depressão, ansiedade e transtornos alimentares entre gays.
A pressão pela estética corporal é tremenda entre homens gays. Em uma pesquisa da revista Attitude de 2017 – uma revista americana de comportamento gay – 84% dos respondentes disseram se sentir “sob intensa pressão” para terem o corpo em forma. Apenas 1% se considerou “muito satisfeito” com sua aparência.
A obsessão pela imagem corporal tem sua origem na necessidade de validação e de se sentir desejado. Em pessoas com mais peso, a tensão de não ser aceito por ser gay soma-se ainda ao medo de não ser aceito por ser gordo. Essa ameaça constante aumenta sobremaneira as taxas de baixa autoestima, depressão e transtornos alimentares. De forma geral, de fato homens gays temem mais o ganho de peso que homens héteros.
Mais recentemente, a cultura gay transformou as redes sociais num instrumento de medir o grau de validação. Esteja você no Grindr ou Instagram, homens gays mostram seus corpos para conseguir atenção e desejo. É difícil não se comparar, não só com corpos que bombardeiam as telas dos celulares, mas também com números de curtidas e seguidores. E para quem já internalizou a gordofobia – sentindo-se valendo menos por seu peso - essa comparação é quase uma confirmação de seus medos.
Não bastassem todas essas tensões internas, a pressão que vem dos outros e a estigmatização sobre a gordura são ainda uma dura realidade no meio gay. Nossa sociedade valoriza a tríade “beleza, juventude e saúde”, em que os indivíduos são considerados responsáveis pelo desenvolvimento desses “valores” em seus corpos, e responsabilizados caso não consigam atingi-los. Obesidade passa a ser então sinônimo de falta de controle, preguiça e feiura.
Dentro ainda da cruel lógica do oprimido que quer ser opressor, homens gays que atingiram os sonhados corpos “padrão”, passam ainda a desprezar pessoas gordas e fora do “ideal” de beleza.
Diferentemente do que acontece com os gays, mulheres lésbicas e bissexuais são mais satisfeitas com seus corpos que mulheres héteros. A prevalência de obesidade entre elas chega a ser 14% maior e, no entanto, alguns trabalhos mostram que elas tendem a aceitar melhor corpos mais pesados.
Para Jane McElroy, professora da faculdade de medicina da Universidade do Missouri, uma possível causa dessa diferença é que “mulheres lésbicas e bissexuais frequentemente enxergam na magreza um conformismo com os ideais de beleza dominantes que são feitos por homens, para homens”. Para muitas, existe um certo orgulho em rejeitar esses ideais.
Infelizmente, a maior representatividade de mulheres lésbicas magras na mídia vem também aumentando a pressão estética pela magreza. Estudos mais recentes tem mostrado que mulheres lésbicas estão ainda sujeitas a pressões estéticas parecidas com as de mulheres héteros. A exposição a eventos de discriminação e estresse de minorias soma-se a essas pressões e se relaciona a uma taxa de distúrbios alimentares mais alta entre lésbicas.
No universo trans, a infiltração da pressão estética é avassaladora porém se infiltra de forma mais sutil. Sem focar em características específicas como a gordura ou o peso, a pressão heterocisnormativa criou características físicas consideradas definidoras do masculino e feminino, que reforça nas pessoas trans a sensação de incongruência com seus corpos.
Embora não exista uma forma única de ser homem ou mulher, terapias hormonais e intervenções cirúrgicas são realizadas todos os dias para feminizar ou masculinizar mais os corpos de pessoas trans. Isso tem seu lado bom, já que essas intervenções comprovadamente melhoram a qualidade de vida, saúde física e mental, poupando assim muitas vidas.
No entanto, apesar de ser uma busca legítima, essa procura pelo “padrão” estético mais masculino e feminino tem parte de sua origem na ideia de que exista uma aparência específica que defina homens e mulheres. Muitas pessoas buscam ainda a passabilidade, que é quando uma pessoa trans pode ser confundida com uma pessoa cis, para serem mais aceitas.
Talvez, se crescêssemos sabendo que homens podem ter mamas e vaginas sem serem menos masculinos, por exemplo, menos pessoas trans sofressem com seus corpos e precisassem de menos intervenções médicas para se sentirem bem.
Confira:
Para Mathew Todd, autor do livro “Straight Jacket: How to be gay and Happy” – “Camisa de Força: como ser Gay e Feliz” em tradução livre - a homossexualidade é frequentemente acompanhada de sentimentos de vergonha oriunda da falta de aceitação pela sociedade. Esse sentimento pode levar a falta de aceitação de si próprio, o que gera uma fixação doentia pela aparência.
Além disso, dentro do pensamento machista que domina boa parte do mundo gay, o masculino é o melhor. Daí o padrão de homem mais atraente ser aquele “supermasculino”, frequentemente com barba e músculos fortes. Não é de se espantar que não apenas homens gordos, mas também homens magros e afeminados não façam parte desse ideal no imaginário das pessoas.
Não existe uma medida única que isoladamente vá resolver a gordofobia e a pressão estética no meio LBGT.
Termos uma atitude positiva em relação a corpos diversos cis e trans é, no entanto, fundamental. Isso significa elogiar, aplaudir, compartilhar imagens de pessoas com corpos comuns, gordos, magros, não binários.
Deixar de seguir homens gays que mostrem corpos “padrão” reduz a atenção que eles recebem. Diminui ainda as comparações, o que é importante para a autoestima de quem navega pelas redes. Neste ponto, devemos ainda ter uma postura ativa de denunciar perfis que abertamente rejeitem pessoas gordas ou que atribuam a elas características negativas (preguiça, gula, falta de controle). Essa é uma atitude fundamental para diminuir o estigma do peso. O “biscoito” de um não vale a saúde mental dos outros.
Apoiar marcas que verdadeiramente promovam corpos gordos e pessoas não binárias pode mudar também a forma como encaramos essas pessoas no dia-a-dia. A mídia tem ainda um papel importante na definição de padrões. E embora tenhamos avançado muito em termos de apresentar pessoas negras, trans, gays e lésbicas sem cargas negativas em propagandas, novelas e filmes, falhamos miseravelmente em valorizar corpos gordos e menos passáveis como corpos dignos de admiração.
*Henrique Cardoso Cecotti é endocrinologista
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