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A relação com o corpo na era do imediatismo

O imediatismo da era digital tem se voltado para a forma como lidamos com nossos corpos - iStock
O imediatismo da era digital tem se voltado para a forma como lidamos com nossos corpos - iStock

Henrique Cecotti Publicado em 31/08/2022, às 10h00

Essa semana recebi no consultório um pedido que me deixou intrigado. Um paciente veio encaminhado de outra colega por alteração dos hormônios da tireoide, queixando-se de insônia. Até aí, nada de novo na rotina de um endocrinologista.

Ele me contou que estava usando uma fórmula com hormônios tireoidianos e estimulantes para melhorar o desempenho físico e no trabalho. Sem nem pensar muito, orientei que deveríamos suspender a fórmula, e certamente o sono melhoraria. O meu espanto veio quando ele pediu para mantermos a fórmula e para eu apenas prescrever algo para dormir. Ele se sentia “bem” com os estimulantes e trabalhava melhor. 

O seu raciocínio em particular me chamou muito a atenção: ele procurava controle sobre o próprio corpo, mais que uma solução para sua insônia.

Certamente ele não é o único que pensa dessa forma. Quem não quer produzir mais de dia e dormir bem à noite? Se tivermos como fazer isso, por que não? Quando falamos dos nossos corpos, no entanto, nem sempre esse controle todo é possível.

Na era digital, o imediatismo é a regra. Podemos enviar mensagens e sermos respondidos na mesma hora ou comprar coisas que chegam no mesmo dia.  Se algo não agrada, arrastamos para cima e pronto, já estamos em outro assunto. Uma sensação incrível de controle.

Essa lógica cada vez mais tem se voltando para a forma como lidamos com nossos próprios  corpos. Afinal, "Se eu precisar dormir, por que não um remédio? Se precisar ficar forte, um ciclo de anabolizantes já resolve. Depois, se quiser ficar alegre, uso uma droga na balada e fica tudo bem”. O momento presente importa tanto, que as causas ou consequências já não fazem tanta diferença. Drogas e medicações viraram itens de consumo comum que temos sempre em casa para uma eventual necessidade.

Medicalização e charlatões

Na medicina, a cultura do imediatismo trouxe ainda dois outros problemas: a medicalização da vida e o espaço para os charlatões. Medicalizar a vida é tratar sentimentos e desconfortos que fazem parte do dia a dia. Muitas vezes, isso vem até de um certo sentimento natural do médico de querer ajudar, mas, na prática, a falta de critérios resulta em todo desconforto ser considerado patológico.

Se uma pessoa, por exemplo, trabalha 12 h por dia sob pressão, certamente estará cansada e não produzirá tando durante o dia. Pode até ficar ansiosa e não conseguir dormir. Se comer mal, ainda, não vai ganhar músculos na academia. Nada disso se resolve com medicação. Para o médico desavisado, no entanto, temos vários diagnósticos a serem tratados: insônia, deficit de atenção, ansiedade e falta de testosterona.

Infelizmente, médicos charlatões mal intencionados ou até mesmo desinformados usam essa falta de critérios para ganharem dinheiro vendendo soluções fáceis. E as pessoas, que naturalmente desejam resolver seus problemas, caem e acabam sofrendo efeitos colaterais de medicações mal indicadas. São remédios para dormir que causam sonolência, estimulantes que tiram o sono, hormônios para academia que diminuem o desejo sexual e assim por diante.

Imediatismo e imaturidade

Do ponto de vista psicológico, rapidez trazida pela tecnologia, apesar de ter trazido avanços imensuráveis, parece ter vindo com uma certa imaturidade emocional. Eu gosto bastante da imagem de como uma criança se sente quando não tem imediatamente o que quer e como isso se parece com o que sentimos quando a internet está lenta ou o delivery não chega. Com o nosso corpo não tem sido diferente.

Claro que não existe uma solução fácil para esse imediatismo todo. Aquela consulta, no entanto, me trouxe para uma reflexão que acho importante: sobre como tentamos resolver as dificuldades do dia a dia com “botões” que façam as coisas ”ligarem ou desligarem” conforme a necessidade, sem olhar para o contexto geral. Nosso corpo, apesar de conectado a um mundo frenético, tem uma velocidade própria. Respeitá-la pode ser mais interessante que tentar controlá-lo.

* Henrique Cardoso Cecotti é endocrinologista