SBD suspeita que pandemia de Covid-19 possa ter causado subnotificação de novos registros no Brasil
O Brasil acumulou mais de 360 mil casos de
sífilis entre janeiro de 2018 e junho de 2020, revelam os últimos dados disponíveis sobre o assunto. O problema é que esse quadro pode não retratar a realidade do país. Especialistas da Sociedade Brasileira de Dermatologia (SBD), que fizeram o levantamento a partir de bases do Ministério da Saúde, suspeitam que com
a pandemia de Covid-19, que tem impactado negativamente a realização de consultas e de exames de prevenção,
estima-se que milhares de pacientes não procuraram os serviços de saúde ao manifestarem sinais e sintomas dessa doença.
Para os dermatologistas, são altas as chances de um quadro instalado de subnotificação, o que compromete as estratégias de enfrentamento desse problema de saúde pública. Os últimos números disponibilizados pelo Ministério da Saúde, referentes ao intervalo de janeiro a junho de 2020, dão conta de 49 mil ocorrências de sífilis adquirida. Isso corresponde a uma média de 8,2 mil casos registrados por mês, ou seja, uma queda de 36% em comparação ao que foi informado a cada 30 dias em 2019.
Já entre janeiro e dezembro de 2019, o sistema de vigilância epidemiológica apontou a existência de 152,9 mil casos de sífilis adquirida, o que representa uma média mensal de 12,8 mil registros. Em 2018, o acumulado no ano havia sido de 158,9 mil ocorrências, ou 13,2 mil por mês. Apesar da constatação de uma tendência de queda – de um ano para outro –, essa variação não chegou a 4% na pré-pandemia (2018-2019).
“Mesmo que os números continuassem a cair, que é o desejado por todos, dificilmente isso ocorreria numa proporção em torno de 30%. A sífilis é uma infecção sexualmente transmissível, que tem preocupado muito os médicos pela forma endêmica como se instalou no Brasil, muito em função de padrões de comportamento e de lacunas nas políticas de prevenção e tratamento”, afirma Heitor de Sá Gonçalves, vice-presidente da SBD.
O quadro da sífilis se agrava quando se amplia a série histórica. Entre 2010 e 2020, o Brasil alcançou a soma de 783 mil casos de sífilis adquirida, seguindo uma proporção de crescimento exponencial. Há 11 anos (2010), foram registradas 3.925 ocorrências dessa infecção. Uma década depois, esse número foi 39 vezes maior (152,9 mil). A taxa de detecção seguiu o mesmo ritmo. Ela cresceu 34 vezes: foi de 2,1 registros por grupo de 100 mil habitantes, em 2010, para 72,8, em 2019.
Mulheres grávidas têm mais risco
Pelos dados do Ministério da Saúde, essa infecção afeta principalmente a população masculina. Entre 2010 e 2020, dos quase 800 mil casos registrados 59,8% eram homens. As mulheres representavam 40,2%. No entanto, mesmo com um percentual menor, elas agregam um fator a mais de preocupação, pois muitas manifestam sintomas durante a gestação, com alto risco de contaminação dos recém-nascidos, dando origem à sífilis congênita.
No período de 2010 a 2020, foram 357,1 mil mulheres diagnosticadas com sífilis adquirida durante a gravidez. A maioria delas estava na faixa etária dos 20 aos 29 anos (53% dos casos). Na sequência, apareciam, respectivamente, pacientes de 15 a 19 anos (25%) e de 30 a 39 anos (19%). Os demais períodos etários somavam apenas 3%. Outro indicativo relevante é a baixa escolaridade das infectadas.
Do total de mulheres grávidas com sífilis, 29% tinham o ensino fundamental incompleto, o que sugere a maior prevalência em populações socioeconomicamente mais vulneráveis. Em seguida, estavam os grupos com ensino médio completo (17%); médio incompleto (14%); e fundamental completo (10%). Aquelas com ensino superior representavam apenas 2% e as analfabetas 1%. No entanto, 27% não informaram escolaridade.
Outro dado que reforça o maior risco ao qual a população com menor poder aquisitivo ou grau de instrução está exposta é o de origem étnica das infectadas. Mais da metade (55,9%) das mulheres com sífilis adquirida, entre 2010 e 2020, eram pardas e 9,9% pretas. Por sua vez, as grávidas da cor branca somavam 23,7% dos registros; amarelas e indígenas, juntas, eram apenas 0,4% do total. As que não fizeram declaração de cor/raça chegam a 9,7%.
Segundo os dados oficiais, a sífilis congênita – relacionada diretamente à contaminação de mulheres – também é um problema em crescimento. Nos primeiros seis meses de 2020, o País registrou 8,9 mil diagnósticos da doença em recém-nascidos, ou seja, 1,5 mil pacientes a cada mês. Onze anos antes, em 2010, a média era bem menor e girava em torno de apenas 579 registros mensais. Na comparação do período de 2010 a 2019, os casos saltaram de 6.946 para 24.130 diagnósticos ao ano.
Subnotificação
Para o coordenador do Departamento de IST & Aids da SBD, Márcio Soares Serra, o quadro de subnotificação deve ser observado com bastante atenção, uma vez que pode agravar a situação em longo e médio prazos. “Muita gente não tem conseguido ou tem receio de agendar consultas por causa da Covid-19. Há, por exemplo, a diminuição de pré-natal entre as mulheres. Outro ponto é que não temos uma busca ativa de contactantes no Brasil. Além disso, apesar de a sífilis ser uma doença de notificação obrigatória, nem sempre isso é feito. Somados, todos esses fatores podem complicar ainda mais nossa situação epidemiológica”, disse.
Segundo Márcio Serra, o diagnóstico precoce faz com que o paciente tenha mais chances de não desenvolver formas mais graves da doença. “A sífilis primária e a secundária podem evoluir sem tratamento. Caso o paciente permaneça com síndrome latente por muito tempo, vai continuar transmitindo. Acho que esse é um dos piores fatores que pode agravar ainda mais o que temos visto atualmente”, enfatizou. Ele também alerta para a falta de campanhas de conscientização de doenças sexualmente transmissíveis. “Antigamente, tínhamos campanhas de ISTs durante o carnaval e outros períodos. Agora, nem isso”, lamentou.
A alta prevalência dessa infecção sexualmente transmissível aparece também em outros países. Nos Estados Unidos, na última década, a sífilis se consolidou como um problema de saúde pública. Segundo o Centers for Disease Control and Prevention (CDC), em 2019, foram notificados 129.813 casos naquele país. Desde que atingiu uma baixa histórica em 2000 e 2001, a taxa de sífilis entre os norte-americanos vem aumentando anualmente, com variação de 11% a mais nos números, quando se comparam 2018 e 2019 (último dado disponível).
“Essa é uma tendência internacional e o Brasil faz parte do grupo de nações com números alarmantes. Por ser uma doença com evolução grave, até mesmo fatal se não tratada adequada e precocemente, é fundamental que médicos e autoridades públicas permaneçam em alerta, atuando em ações educativas de prevenção e apoiando as fases de diagnóstico e tratamento”, avalia Heitor de Sá Gonçalves.
Quais são os sinais e sintomas?
Causada pela bactéria Treponema pallidum, a sífilis é uma infecção sexualmente transmissível (IST) com diferentes estágios de evolução e variados sintomas clínicos, entre eles, manifestações dermatológicas. Conforme salienta o vice-presidente da SBD, embora ainda seja altamente prevalente, a doença tem tratamento simples e eficaz, por meio do uso de penicilina benzatina, que é administrada de acordo com o estágio clínico do paciente.
A sífilis pode ser classificada como sífilis primária, secundária, latente ou terciária. No estágio primário, ela geralmente se apresenta como uma pequena ferida, no local de entrada da bactéria (pênis, vagina, colo uterino, ânus ou boca), que aparece alguns dias após o contágio. A ferida normalmente é indolor e desaparece sozinha, depois de poucas semanas.
Quando a infecção não é tratada, a bactéria permanece no organismo e a doença evolui para os estágios de sífilis secundária (quando podem ocorrer manchas, pápulas e outras lesões no corpo, incluindo palmas das mãos e plantas dos pés, além de febre, mal-estar, dor de cabeça e ínguas) ou então sífilis latente (fase assintomática, quando não aparece mais nenhum sinal ou sintoma).
Após o período de latência, que pode durar de dois a 40 anos, a doença evolui para a sífilis terciária, condição grave, que leva à disfunção de vários órgãos e pode causar a morte do paciente, costumando apresentar lesões ulceradas na pele, além de complicações ósseas, cardiovasculares e neurológicas .
Além da sífilis adquirida, outra forma de manifestação dessa IST é a sífilis congênita, transmitida por via placentária da mãe para o filho. A condição provoca diferentes sintomas no recém-nascido, como: baixo peso ao nascer ou dificuldade de ganhar peso; sequelas neurológicas; inflamação articular; dores nos ossos; perda visual; audição reduzida ou surdez; entre outros. A doença comumente é responsável por abortos espontâneos, prematuridade e óbito neonatal.
Como se prevenir?
O uso do preservativo masculino ou feminino durante a relação sexual é a forma mais segura de prevenção contra a sífilis. Todo paciente que mantém atividades sexuais de risco ou se expõe a relações desprotegidas deve procurar o mais rápido possível uma unidade de saúde para realizar o teste rápido de detecção da sífilis. O exame é de graça na rede pública.
As gestantes também devem testar para a sífilis. Se a grávida receber o diagnóstico e realizar tratamento adequado, é possível prevenir a transmissão para a criança. “Por isso, é de suma importância insistir na testagem de pacientes com vida sexual ativa. Aos dermatologistas, a recomendação da SBD é para que redobrem a atenção, uma vez que as manifestações na pele são sinais relevantes e recorrentes neste tipo de infecção”, concluiu Sá Gonçalves.
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