Mais da metade, ou 55%, dos brasileiros com mais de 18 anos consome bebidas alcoólicas, sendo que 1 em cada 3 faz isso toda semana. É o que mostra uma pesquisa encomendada pelo Instituto Brasileiro do Fígado (Ibrafig) ao Datafolha, em setembro. Apesar do hábito, a maioria das pessoas não realiza exames para avaliação da saúde hepática – uma precaução importante, visto que a cirrose (inflamação crônica que gera cicatrizes que comprometem a função do fígado) evolui de forma silenciosa.
O estudo consultou quase 2.000 pessoas das cinco regiões do país. Entre os consumidores de álcool, 44% afirmaram beber mais de 3 doses por dia/ocasião. Desses, 11% consomem acima de 10 doses/dia. Por dose padrão, entenda-se 14 g de álcool puro, o que corresponde a 45 ml de destilado, 150 ml de vinho, ou 1 lata de cerveja. Vale dizer que mais de 4 doses (para mulheres) ou 5 (para homens) por ocasião, ainda que só nos fins de semana, já configuram o chamado Beber Pesado Episódico (BPE), que envolve um risco duas vezes maior de cirrose.
Durante a pandemia, uma pesquisa da Organização Panamericana de Saúde (Opas) revelou que 17,2% dos entrevistados no Brasil declararam aumento do consumo abusivo. E, segundo dados da Fiocruz, 24% dos brasileiros que relataram sentimentos de tristeza e depressão aumentaram seu consumo de bebidas alcoólicas. Os drinques a mais incorporados neste período deverão ter um impacto expressivo no número de casos de cirrose e câncer de fígado no país, como alerta o médico Paulo Bittencourt, presidente do Ibrafig.
Segundo a pesquisa atual, o consumo é mais alto entre os mais jovens. Entre os brasileiros que consomem 3 ou mais doses de bebida por ocasião, 44% são homens, percentual que sobe para 49% entre os homens nas classes AB. Pesquisas em todo o mundo apontam para um aumento significativo de consumo de álcool pelas mulheres. E isso é preocupante, já que elas são mais suscetíveis a desenvolver cirrose e hepatite alcoólica.
Confira:
A maioria dos entrevistados pelo Datafolha sabe que o consumo frequente de álcool lidera as causas tanto do câncer de fígado quanto da cirrose, mas a maioria (56%) negligencia sua saúde quando afirma nunca ter feito exame para avaliar dano do fígado relacionado ao consumo de álcool.
Bittencourt explica que a maioria das pessoas que faz uso de bebidas alcoólicas não vai desenvolver essas doenças. Além do uso abusivo, existe a susceptibilidade individual, fatores genéticos e ambientais, tais como doença hepática subjacente, obesidade e diabetes, que aumentam o risco de dano hepático pelo álcool. Mas quem exagera precisa ser acompanhado – para o diagnóstico de doenças do fígado recomenda-se exames de avaliação de enzimas hepáticas (sangue), disponíveis nas redes pública e privada.
O médico faz outro alerta importante: o consumo excessivo de bebida alcóolica não pode ser contrabalançado com chás, produtos detox ou medicamentos chamados de hepatoprotetores. Segundo a Ibrafig, estas medicações não oferecem proteção ao fígado contra os efeitos nocivos do álcool. Outro aviso do especialista é quanto ao uso de analgésicos, que pode ter seus efeitos hepatotóxicos potencializados quando associado ao uso de álcool.
“A recomendação é pelo consumo moderado e consciente, dentro dos padrões considerados como mais seguros, para quem não tem doença hepática. Entretanto, para quem passou ocasionalmente do limite, é importante compensar o uso abusivo com abstinência de álcool nos dias subsequentes, beber bastante líquido e se alimentar de forma adequada", alerta Bittencourt. Já para quem tem cirrose ou mesmo gordura no fígado, o conselho é não consumir álcool.
Na entrevista a seguir, o médico Paulo Bittencourt traz algumas informações detalhadas sobre as doenças do fígado e suas causas:
Qual foi o impacto da pandemia na saúde hepática da população?
A pandemia da Covid-19 aumentou o consumo de álcool e a frequência de sobrepeso e obesidade na população brasileira, devendo deixar como sequela aumento subsequente expressivo no número de casos de cirrose e cancer de fígado nos próximos anos no Brasil.
Poderia explicar um pouco as doenças do fígado?
A gordura no fígado, ou esteatose, é uma alteração provocada pelo acúmulo de gotículas de gordura no interior da célula hepática (hepatócito), que pode ser causado pelo consumo excessivo de álcool ou pela obesidade, sedentarismo e diabetes. Ela pode provocar inflamação e lesão das células hepáticas (esteatohepatite), podendo levar a cirrose e câncer de fígado de forma silenciosa, sem o desenvolvimento de quaisquer sintomas até o surgimento de complicações graves que podem requerer transplante de fígado. Quando ela é provocada pelo consumo de álcool, é chamada de esteatose ou esteatohepatite alcoólica, ou de esteatose ou esteatohepatite não-alcoólica ou metabólica quando associada a obesidade, má-alimentação, sedentarismo e diabetes.
Quão comum são essas doenças? E há evidências de que têm aumentado?
Nem todo mundo que consome álcool desenvolve gordura no fígado. Acredita-se que menos de 30% daquelas pessoas que fazem consumo abusivo de álcool (aproximadamente 18% da população brasileira) tem risco de desenvolver a doença. Por outro lado, dados recentes indicam que um terço dos brasileiros tem esteatose ou esteatohepatite não-alcoólica devido ao crescimento exponencial da obesidade e do diabetes tipo 2 na população brasileira. Cirrose de etiologia alcoólica é, atualmente, a principal indicação para transplante de fígado no Brasil, e o número de casos de pessoas com cirrose secundária à esteatohepatite não alcoólica vem aumentando em todo o mundo. Ela já é a principal causa de cirrose que requer transplante de fígado em muitos estados norte-americanos e no México. Cirrose por álcool e por gordura no fígado não associada ao consumo de bebida alcoólica tambem são causas importantes de câncer no fígado, o 5º tipo de câncer mais frequente no Brasil e o terceiro mais letal. Estima-se que cerca de 20.000 pessoas tenham diagnóstico de cirrose a cada ano no Brasil e 8.000 desenvolvam câncer de fígado. Atualmente mais de 2.000 procedimentos de transplante de fígado são realizados no páis, a maioria por cirrose e cancer de fígado.
Quem deve fazer os exames preventivos? Solicitá-los já faz parte da cultura dos médicos de atenção primária, na sua opinião?
É recomendado que todo o brasileiro acima de 40 anos faça ao menos uma vez na vida o teste rápido para hepatite C, disponível em qualquer unidade básica de saúde. Enzimas hepáticas - AST e ALT - são exames também disponíveis no SUS que devem ser solicitados por qualquer médico para todo o indivíduo que faça consumo abusivo de álcool ou que tenha sobrepeso, obesidade ou diabetes tipo 2. Exames simples como a contagem de plaquetas também ajudam atráves de cálculos simples a determinar quem tem risco maior de fibrose ou cirrose. O Ibrafig está atualmente propondo ao Ministério da Saúde uma linha de cuidado para cirrose e cancer de fígado voltada para a capacitação dos nossos profissionais na atenção básica na prevenção e diagnóstico precoce destas doenças.
Medidas como dietas ou uso de suplementos alimentares que ajudam a desintoxicar o fígado funcionam?
Não existe dieta milagrosa ou suco detox capaz de melhorar a saúde do seu fígado. Para quem tem esteatose ou esteatohepatite não-alcoólica, o melhor remédio é controle ou perda do peso e atividade física, além de uma dieta balanceada pobre em alimentos ultraprocessados, ricos em açucares e gordura. Se a gordura no fígado está associada ao uso do álcool, o melhor é a abstinência até orientação médica para avaliar a extensão do dano ao fígado provocado pelo uso de bebidas alcoólicas.
Para saber mais sobre o assunto, acompanhe @tudosobrefigado nas redes sociais ou pelo site www.ibrafig.org.br. E, para saber tudo sobre o consumo consciente de álcool, clique aqui.
Tatiana Pronin
Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY e é membro da Association of Health Care Journalists. Twitter: @tatianapronin