Efeitos colaterais mais comuns dos medicamentos são mau hálito, cáries e, a mais frequente, a xerostomia
Cármen Guaresemin Publicado em 09/10/2024, às 10h00
Dados da OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgados em 2024 colocam o Brasil em 5º lugar no ranking de países mais depressivos do mundo, com 5,8% da população sofrendo de depressão, o que corresponde a quase 12 milhões de pessoas. Além de todos os estigmas e tabus que ainda cercam a doença, o paciente ainda pode ter problemas de saúde em geral, incluindo a saúde bucal. Seja por causa da negligência com a higiene pessoal ou em decorrência dos efeitos colaterais dos antidepressivos utilizados durante o tratamento, como mau hálito, cáries e, a mais frequente, a xerostomia (boca seca).
Segundo o especialista em DTM e em Ortopedia Funcional dos Maxilares João Paulo Colesanti Tanganeli, antidepressivos interferem com frequência na saúde bucal em algumas manifestações secundárias à proposta de tratamento. Ele destaca a alteração do fluxo salivar, hipossalivação (diminuição na produção de saliva) e, em alguns casos, a xerostomia. Pode também, dependendo da classe do antidepressivo, surgir maior apertamento, uma maior atividade de contração dos músculos da mastigação: “Daí, acontecem alterações de irrigação de pequenos vasos que podem levar a problemas periodontais e gengivais. Outra situação não tão comum, mas que pode acontecer, é a ocorrência de ulcerações aftosas recorrentes”.
A saúde mental afeta a saúde em geral, e a depressão causa vários efeitos na saúde bucal de uma pessoa, o afastamento do meio social, tristeza e muitas vezes o sofrimento silencioso leva ao desinteresse nos cuidados com a aparência e a higiene bucal, lembra o Cirurgião-Dentista Homeopata Mario Sergio Giorgi. Ele frisa que medicamentos antidepressivos são os que mais contribuem para a boca seca. Por isso, é essencial que pacientes estejam cientes desse possível efeito colateral ao iniciar o tratamento. “E um fator que está associado à boca seca é a formação de saburra lingual (língua suja) sendo o fator etiológico principal da halitose (mau hálito), levando o paciente a uma restrição social e alterações ainda maiores no convívio social”, acrescenta.
Fábio Cantinelli, psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (Ipq/HC/FMUSP), afirma que a xerostomia é um efeito colateral particularmente de antidepressivos que têm ação anticolinérgica. Os mais “famosos” por causarem tal efeito são os clássicos tricíclicos (amitriptilina, imipramina, clomipramina): “Este efeito geralmente é dose dependente, ou seja, quanto maior a dosagem, maior a possibilidade de sua ocorrência, mas vai depender também da vulnerabilidade ou característica pessoal do paciente, pois há aqueles que tomam dosagens mais altas e não têm ou não sentem tanto o problema”.
Ele diz que antidepressivos, clássicos e antigos, ainda têm um bom lugar na prática psiquiátrica porque são bastante efetivos quando devidamente ajustados e utilizados em dosagem correta. "São clássicos e muitas vezes têm utilização para outras questões médicas ou comorbidades, como a dor crônica, no caso da amitriptilina, por exemplo".
Mas será que todos os antidepressivos causam esse efeito de boca seca? Tanganeli explica que cada classe de antidepressivo tem possíveis efeitos colaterais diferentes. Os tricíclicos, pelo efeito anticolinérgico - causado por medicamentos que bloqueiam a ação da acetilcolina, neurotransmissor que transmite sinais entre células nervosas, músculos e glândulas -, tem maior efeito na questão da boca seca. A saliva tem um papel importante em relação aos produtos do biofilme, antes chamado de placa bacteriana, e de protetor da cavidade bucal. E a redução do suco salivar pode causar uma série de problemas, inclusive uma maior incidência de cáries.
“Os da classe dos inibidores seletivos de recaptação de serotonina não agem só nela, eles têm um papel de alteração na dopamina, e esta, provavelmente, está ligada a quadros de bruxismo. E o bruxismo é um fator de risco para o desenvolvimento de disfunções temporomandibulares (DTMs), as dores orofaciais”, completa o profissional. Ele recorda que durante e após a pandemia de Covid-19, houve uma incidência muito grande de bruxismo e de DTMs e que isso se deu, provavelmente, pelas alterações de hábito, do estresse, mas, por outro lado, pelo grande aumento na prescrição e consumo de antidepressivos neste período.
Outro possível problema é a inflamação nas gengivas. Antidepressivos interferem na produção salivar fazendo com que ela diminua, o que leva a um ressecamento da mucosa. “Assim, a gengiva fica mais fragilizada e associada à falta de higiene, que deve ser exercida com a escova de múltiplas cerdas atraumáticas e limpeza entre os espaços interdentais com escovas calibradas. Dessa forma esses processos inflamatórios podem ser controlados”, diz Giorgi.
Alterações no paladar também não são raras. Giorgi diz que queixas sensoriais bucais alterando o paladar são sintomas descritos pelos usuários desses medicamentos. Assim como a sensação de ardência bucal. Tanganeli complementa: “Há uma certa família de antidepressivos, mais antiga, os tricíclicos, que não são utilizados em quadros de depressão, mas também no controle de dores crônicas e essas propriedades anticolinérgicas podem, sim, alterar as papilas gustativas que podem ter uma obliteração, e isso pode alterar o paladar. Aliás, não só os tricíclicos, a própria fluoxetina pode causar isso”.
Giorgi conta que os antidepressivos causam também tonturas, vertigens, ataxia (dificuldade ou incapacidade de manter a coordenação motora, sintomas gastrintestinais (náuseas e vômitos), sintomas gripais, distúrbios sensoriais (parestesias), alterações de sono (insônia, sonhos vívidos) e sintomas psíquicos (irritabilidade, agitação, ansiedade). “Sendo assim, algumas pessoas podem apresentar sintomas de bruxismo - apertar, ranger ou bater os dentes de forma involuntária e excessiva -, levando a dores musculares, articulares e desgaste da estrutura dental”.
“É muito comum, por exemplo, nos quadros não só de depressão, mas de ansiedade, o paciente desenvolver hábitos parafuncionais, como roer unhas ou mordiscar o lábio, ou até o apertamento em si e, algumas vezes, nem só o contato dentário propriamente dito, mas a contração contínua dos músculos de mastigação. Existe também a questão da negligência dos cuidados da higiene pessoal de maneira geral e isso inclui a higiene bucal”, afirma Tanganeli.
Já o psiquiatra admite que o bruxismo é um efeito colateral de vários antidepressivos, entre os quais a venlafaxina, os inibidores seletivos de receptação de serotonina ou mesmo os antidepressivos tricíclicos. “Pode se tentar a associação da medicação buspirona para se reverter este efeito indesejado ou, se não surtir efeito e for ou continuar intolerável, a mudança da medicação. Pode ser uma queixa direta do paciente ao psiquiatra, mas é mais frequente vir da percepção do dentista, este é procurado primeiro. Lembrando que bruxismo é condição que compromete a rigidez do dente, pode levar à fratura e é um processo doloroso”.
No entanto, Cantinelli conta que a comunicação entre dentista e psiquiatra não é algo comum no dia a dia, deveria ser, pois são dois profissionais com atribuições distintas mas sempre buscando o melhor para aquele indivíduo que tratam. “O espírito é a colaboração, um pode perceber de imediato o que ainda não foi alcançado pelo outro”.
Para Giorgi, a motivação do paciente para sua higiene oral e fidelização quanto ao cuidado deve seguir a orientação de um cirurgião-dentista que o treinará para executar movimentos ensinados na escovação de forma efetiva, atraumática e motivadora, utilizando uma escova diferenciada com cerdas delicadas, higienizando os espaços entre os dentes com as escovas interdentais e também realizando um plus da escovação na margem gengival com escova unitufo. "A utilização de um enxaguatório prescrito pelo cirurgião-dentista também vai auxiliar no tratamento. Muito importante prescrever um creme dental para higienização dental que não possuam o detergente LSS (Lauril Sulfato de Sódio), um ativo que interfere na produção salivar, levando à secura de boca".
“Os antidepressivos têm efeitos colaterais, mas ainda bem que existem, são uteis, e tem realmente esta interferência de forma positiva em casos de depressão crônica e maiores. O profissional, o cirurgião-dentista que vai ter esse desafio de cuidar desse paciente, e isso é muito comum nos consultórios, precisa estar preparado para isso”, admite Tanganeli. “Claro que existem situações em que os efeitos colaterais são tão importantes que é preciso repensar o antidepressivo. Aí é que entra a boa relação entre o cirurgião-dentista e o médico prescritor, em especial, o psiquiatra. Essa relação precisa ser estreita entre os profissionais de saúde envolvidos. É importante que haja esse cuidado”, finaliza.
Cantinelli lembra que os antidepressivos mais modernos, de outras classes terapêuticas também são efetivos e têm sido mais utilizados, particularmente pela questão de efeitos colaterais. Eles são “mais limpos”, interferem menos em neurotransmissores que não interessam tanto à terapêutica antidepressiva, no caso, o efeito anticolinérgico.
“Ainda assim, alguns antidepressivos, de modo mínimo ou incipiente, podem ter ação anticolinérgica, mas dificilmente a ponto de causar esta queixa. No caso de boca seca, pode se recomendar ao paciente que masque chiclete ou chupe bala para a minimização dos efeitos, mas não há nada recomendável que reverta este efeito. Ou ficar umedecendo a boca, mas, neste caso, convenhamos, é algo chato para o paciente. Se for intolerável, o melhor acaba sendo trocar o medicamento”, conclui o psiquiatra.
Fontes:
Fábio Cantinelli - psiquiatra pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP (IPq/HC/FMUSP) e pelo NuFor (Núcleo de Psiquiatria Forense do IPq), chefe da Psiquiatria do ICESP (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) e da Clínica Ame.C, professor do IPq/FMUSP, especialista em Dependência Química pelo IPq/HC/FMUSP, e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP);
João Paulo Colesanti Tanganeli - Membro da Câmara Técnica de Disfunção Temporomandibular e Dor Orofacial do Crosp (Conselho Regional de Odontologia de São Paulo), Graduado em Odontologia pela Unisa, doutor em Biofotônica pela Universidade Nove de Julho e em Odontologia na área de concentração- Laser pela Unicsul. Mestre em Morfologia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e especialista em DTM e em Ortopedia Funcional dos Maxilares pelo CFO;
Mario Sergio Giorgi – Cirurgião-Dentista Homeopata; Membro da Associação Brasileira de Halitose (ABHA), Consultor Científico da Curaprox Swiss do Brasil.
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