Cármen Guaresemin Publicado em 10/06/2022, às 10h00
O Brasil é o país com mais cirurgiões dentistas no mundo. Dados publicados pelo Conselho Federal de Odontologia (CFO) de 2021 mostram que o Brasil tem aproximadamente 360 mil dentistas em atuação, o maior número entre todos os países. Porém, ironicamente, é o país também com a maior quantidade de pessoas sem nenhum dente na boca.
Para sabermos um pouco mais sobre como anda a saúde bucal dos brasileiros atualmente, entrevistamos o especialista, Mestre e Doutor pela Faculdade de Odontologia da Universidade de São Paulo Hugo Lewgoy. Abaixo, você confere a primeira parte da conversa:
Como anda a saúde bucal do brasileiro?
A odontologia brasileira da atualidade é extremamente desenvolvida e tecnológica. Os cirurgiões-dentistas brasileiros são mundialmente reconhecidos pela competência e habilidade manual, e classificados entre os melhores profissionais do mundo. Porém, é inegável que existe uma odontologia de ponta no setor privado e outra ainda não tão desenvolvida no setor público. Isso não está relacionado à competência dos profissionais do setor público e, sim, à falta de acesso às tecnologias, materiais e equipamentos mais modernos.
O governo brasileiro possui uma Política Nacional de Saúde Bucal que possibilita o acesso ao tratamento odontológico gratuito por meio do SUS (Sistema Único de Saúde). Este sistema vem melhorando bastante, pois estão sendo realizadas ações coordenadas que visam garantir promoção, prevenção e recuperação da saúde bucal da população brasileira. Logicamente, isso é algo fundamental não apenas para a saúde bucal, mas também para a saúde em geral e a qualidade de vida das pessoas, pois, como diz o velho ditado: “a saúde começa pela boca”.
Algo que tem funcionado muito bem são as parcerias público-privadas, nas quais entidades privadas, principalmente hospitais de excelência acabam por assumir a gestão de unidades de saúde e hospitais do governo. Um exemplo muito bem-sucedido e que já tem mais de 20 anos de duração é a parceria entre o Hospital Albert Einstein e a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. A equipe de saúde bucal envolvida nos trabalhos realiza desde ações preventivas e atendimentos básicos mais simples, até tratamentos odontológicos mais complexos com a indicação dos pacientes necessitados para os chamados Centros de Especialidades Odontológicas, que realizam tratamentos endodônticos (popularmente conhecidos como tratamentos de canal) e reabilitações orais por meio de próteses odontológicas totais e parciais, que possibilitam a substituição dos dentes perdidos e a reabilitação funcional e estética.
Existe um consenso médico-odontológico apontando para uma relação direta entre as doenças orais e doenças sistêmicas, como, por exemplo, cardiopatias, diabetes, problemas gastrointestinais, respiratórios e até doença de Alzheimer. Por exemplo, no último mês de abril de 2022, tivemos um movimento inédito e muito importante com a publicação conjunta das diretrizes da Sociedade Brasileira de Periodontologia (Sobrape) e da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM), abordando com muita profundidade o manejo do paciente diabético. Certamente quem não tem saúde bucal não tem saúde geral, pois essas condições são indissociáveis e intimamente relacionadas.
Quais os problemas mais comuns que os pacientes trazem ao consultório?
Algo corriqueiro nos consultórios e clínicas odontológicas são os pacientes com “dor de dente”. O que normalmente é causado pelas cáries ou, em situações mais graves, devido a necessidade de tratamento endodôntico. Sem dúvida, a maior incidência nos consultórios e clínicas odontológicas são as cáries dentais, seguidas do acúmulo do cálculo dental, popularmente chamado de tártaro. As cáries normalmente necessitam que sejam realizadas restaurações diretas com materiais resinosos estéticos, porém, existem tratamentos mais modernos e conservadores apenas por meio da utilização de infiltrantes e outros recursos não invasivos.
O cálculo dental exige que seja realizada uma limpeza e profilaxia profissional ou, em situações mais severas, uma raspagem e polimento coronário-radicular. Outra situação comum são as infiltrações e fraturas em restaurações antigas. Como disse anteriormente, com a evolução da cárie dental, muitas vezes torna-se necessário a realização do chamado tratamento endodôntico, seguido de restaurações indiretas mais extensas, normalmente realizadas com o apoio de um laboratório e um técnico de prótese dental. Muitas vezes, inclusive, é necessário a instalação de retentores ou pinos intrarradiculares e confecção de próteses fixas unitárias ou múltiplas.
Os tratamentos estéticos também são muito requisitados, entre eles o clareamento dental e os laminados cerâmicos, popularmente chamados de lentes de contato. Os tratamentos periodontais cirúrgicos (reparadores ou estéticos) também têm uma boa incidência, assim como as reabilitações orais por meio da implantodontia e próteses implantossuportadas. Principalmente em atletas de esportes de contato, acabam ocorrendo fraturas que podem ser recuperadas com restaurações simples, e até casos mais graves que exigem a instalação de implantes dentais.
Em odontopediatria, as urgências devido a quedas e fraturas dentais também têm alta incidência. O mau posicionamento dos dentes nos arcos dentais pode provocar a necessidade de tratamentos ortodônticos. Caso os problemas oclusais não sejam corrigidos satisfatoriamente, acabam por desencadear a necessidade de tratamentos para a disfunção temporomandibular (DTM), devido a um desequilíbrio muscular e das estruturas que compõem as articulações temporomandibulares (ATMs), responsáveis pelos movimentos da mandíbula ou maxilar inferior.
O hábito de ranger os dentes, os tratamentos para halitose e de lesões orais também são procurados. Inclusive, os cirurgiões-dentistas devem sempre estar atentos e preparados para diagnosticar precocemente o câncer oral. Recentemente, os tratamentos estéticos relacionados à harmonização orofacial (HOF) também entraram para rol de procedimentos realizados pelos cirurgiões-dentistas.
Os profissionais orientam bem os pacientes em relação aos cuidados?
Infelizmente, a busca por prevenção ainda tem uma baixa incidência. De forma quase isolada, poucos profissionais acabam por oferecer aos seus pacientes as orientações e procedimentos relacionados à prevenção das doenças orais (cárie e doenças gengivais). Para revertemos o quadro alarmante de alta incidência das doenças orais, a prevenção deveria ser realizada com o mesmo profissionalismo com o qual se realizam os tratamentos restauradores. Porém, culturalmente, os próprios pacientes não costumam valorizar os procedimentos e orientações preventivos oferecidas pelos cirurgiões-dentistas. As consultas de prevenção deveriam ser as de maior incidência nos consultórios. Porém, a grande maioria das pessoas acredita, erroneamente, que sabe realizar a higiene oral da forma correta.
É obrigação do cirurgião-dentista e sua equipe de saúde bucal, ensinar a forma correta de higienização oral aos pacientes, incluindo a escovação dental convencional, utilização das escovas interdentais, o uso de fio dental e de escovas unitufo, o emprego dos cremes dentais, enxaguatórios orais e outros acessórios que fazem parte do arsenal de prevenção das doenças orais. Pode parecer simples, porém, esses procedimentos traduzem o que existe de mais importante e efetivo para a prevenção das doenças orais e manutenção dos dentes saudáveis por toda a vida.
As escovas interdentais são imprescindíveis para a realização da higiene oral, pois é o único acessório que consegue, de forma eficaz, realizar a limpeza e a desorganização da placa bacteriana ou biofilme oral entre os dentes. Já as escovas unitufos são um acessório de higiene oral excelente para higiene individualizada dos dentes. Essa escova não necessita de creme dental, podendo ser utilizada em qualquer momento do dia em que você, ao passar a língua nos dentes, sente que a superfície dental não está lisa, mas sim rugosa devido ao acúmulo de placa bacteriana.
Reportagem do site Intercept Brasil, de 2019, dizia que “O país com mais dentistas no mundo é também o país dos banguelas”; algo mudou de lá para cá?
Certamente essa reportagem levou em conta dados do IBGE de 2019, que mostravam que 34 milhões de brasileiros com 18 anos ou mais já haviam perdido pelo menos 13 dentes. Além disso, apontou que 14 milhões de brasileiros já haviam perdido todos os dentes dos arcos dentais, ou seja, perfazendo um número total gigantesco de quase 50 milhões de brasileiros com perda dental parcial ou total. Realmente, a situação da saúde bucal da população não é boa e ainda temos que avançar muito para alterar esse quadro alarmante.
Na realidade, essa situação não é um fenômeno apenas do Brasil, pois, mundialmente, as condições de saúde bucal da grande maioria das populações são muito ruins. Temos que salientar que o Brasil é um dos países com o maior número de cirurgiões-dentistas por habitantes, concentrando quase 20% dos profissionais do mundo. O número de cirurgiões-dentistas por habitantes, preconizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é de um cirurgião-dentista para cada 1.500 habitantes. A média brasileira é muito superior e, atualmente, chega a um cirurgião-dentista para 634 habitantes. Analisando apenas por este aspecto, seria correto supor que a saúde bucal dos brasileiros vai muito bem.
Porém, apesar do grande número de cirurgiões-dentistas e do grande número de cursos de odontologia existentes, ainda continuamos sendo um país com um grande número de desassistidos na questão odontológica. Temos milhões de brasileiros que nunca foram a um cirurgião-dentista e a recidiva das doenças orais é muito grande. Além deste grande número de desassistidos, é sabido que não adianta ir a um dentista uma vez na vida, a prevenção das principais doenças orais requer acompanhamento permanente por profissionais da área odontológica. Um número maior de profissionais não resolve o problema e não melhora o quadro da saúde bucal se, conjuntamente, não enfrentarmos a situação focando o que realmente é fundamental, que é a prevenção das doenças orais por meio da realização de uma higiene oral minuciosa.
Estaríamos vivendo um “apartheid bucal”?
É importante enfatizar que as duas principais doenças que impactam diretamente na saúde bucal das pessoas são a cárie e a doença periodontal. A cárie dental incide em 88% da população mundial, sendo considerada a doença crônica mais comum do planeta. Da mesma forma, as doenças periodontais (gengivite e periodontite) que são processos inflamatórios dos tecidos de suporte dos dentes (com maior ou menor gravidade), chegam a incidir em 44% da população mundial. No Brasil, estes números não mudam muito e acabam levando à perda dental e à necessidade de tratamentos complexos incluindo a reabilitação oral. Se a cárie dental fosse uma doença letal, ela dizimaria as populações. Porém, como a consequência é a perda dos dentes, as pessoas acabam não dando tanta importância.
Para uma análise profunda e crítica desse problema, o principal ponto a ser levado em consideração é o fato de sabermos tudo sobre essas doenças, ou seja, elas poderiam ser facilmente prevenidas. Logicamente, quem tem maior capacidade econômica acaba tendo acesso a tratamentos restauradores mais sofisticados e de maior qualidade, mas mesmo as pessoas que pertencem às camadas socioeconômicas mais favorecidas da população, deveriam concentrar seus esforços na prevenção dos problemas bucais e não no tratamento odontológico.
Pesquisa de 2013 afirmava que quatro a cada dez brasileiros perdem todos os dentes depois dos 60 anos. Isso mudou?
Como mencionei anteriormente, a perda dental ainda vem ocorrendo, principalmente entre as populações socioeconomicamente menos favorecidas. Apesar dos poucos dados coletados nos últimos anos, principalmente por conta da pandemia da Covid-19, podemos dizer que mudanças estão ocorrendo, mas ainda em pequena escala, o que não alterou muito a situação de 2013 para cá. Um dos grandes problemas é que as grades curriculares dos cursos de odontologia estão muito mais focadas nos tratamentos restauradores dos dentes já acometidos por cárie, tratamentos para a reposição de dentes perdidos com a utilização de diferentes tipos de próteses, implantes dentais e tratamentos estéticos.
Pouco foco é dado para questões preventivas tanto no âmbito de saúde pública quanto do atendimento privado. Essa filosofia e mentalidade “restauradora” aborda os tratamentos depois que os pacientes já desenvolveram as doenças orais, muitas vezes inclusive com a incidência de sequelas importantes, como a perda de estrutura dental (cavidades de cárie propriamente dita) e perda de osso de suporte dos dentes (no caso das doenças periodontais). Temos que aumentar as ações que focam a questão da higiene oral, reforçando os conceitos preventivos, pois esse é o caminho correto para termos saúde bucal por toda vida.
Por exemplo, uma forma de prevenção muito bem elaborada e efetiva é a chamada filosofia iTOP de saúde oral (profilaxia oral treinada individualmente). Ela é de autoria do falecido professor Jiři Sedelmayer, da Universidade de Hamburgo, Alemanha. Esta filosofia preconiza uma higienização seletiva e individual de todos os nichos de retenção da chamada placa bacteriana, ou biofilme oral, que se deposita constantemente sobre os dentes e gengivas. Deve-se utilizar escovas dentais do tipo ultramacias e com grande quantidade de cerdas para conseguir desorganizar esse biofilme de forma eficaz, porém, atraumática. Também a recomendação da utilização de escovas interdentais pré-calibradas do tipo prime são imprescindíveis. Mesmo que de forma muito discreta, a semente da prevenção está sendo plantada com a disseminação dessa filosofia de prevenção e deve germinar no médio prazo.
Acredita que os tratamentos estão mais acessíveis atualmente?
Certamente, o grande número de profissionais que se formam a cada ano, e depois se tornam especialistas, levou a uma diminuição dos preços dos tratamentos odontológicos. Os tratamentos ficaram mais acessíveis, pois tudo no mundo é regulado pelo binômio oferta e procura. Um exemplo muito visível são os tratamentos ortodônticos e de implantodontia que, atualmente, estão acessíveis a um número muito maior de pessoas. Em relação especificamente aos implantes, se compararmos os preços praticados há 20 ou 30 anos com os preços atuais, podemos dizer que, hoje, os implantes custam 50% menos.
Em parte, isso se deve ao desenvolvimento da indústria nacional deste segmento, que vem fabricando produtos de altíssima qualidade, porém, com preços mais baixos. Além, do aumento da competição devido ao maior número de especialistas existentes no mercado na atualidade. Se levarmos em conta a variação cambial da moeda brasileira, tratamentos de complexidades similares, realizados em épocas distintas, atualmente estão bem mais acessíveis. Isso, somado à maior facilidade de acesso ao crédito, a diferentes possibilidades de parcelamentos e a cartões de créditos, dentre outros, também aumentou a acessibilidade aos tratamentos.
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