Além das demonstrações de afeto e fidelidade, os cães também têm se mostrado colaboradores extraordinários
Cármen Guaresemin Publicado em 07/10/2021, às 10h00
Eles convivem conosco há cerca de 20 mil anos e são conhecidos como “melhores amigos dos homens”. Além das demonstrações de afeto e fidelidade, os cães também têm se mostrado colaboradores extraordinários quando o assunto é saúde. Já são conhecidos, e estudados, casos de cachorros que pressentem que o tutor terá uma convulsão, nos casos de epilepsia, ou que percebem que a glicemia baixou, quando se trata de diabetes. Sem falar naqueles que indicam que o tutor pode estar com câncer.
Agora, em algumas partes do mundo, estão sendo treinados para detectar a Covid-19 em aeroportos, como o Helsinque-Vanda, na Finlândia, e o Internacional de Miami, nos Estados Unidos. Eles são adestrados para dar um alerta quando sentem o cheiro da doença. Isso é possível porque o vírus causa alterações metabólicas no organismo, o que produz compostos orgânicos voláteis (VOCs em inglês), que são excretados pela respiração e pelo suor.
O que poucos sabem é que aqui no Brasil também há projetos tanto para detecção de Covid-19 quanto para câncer.
Pesquisadores da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e da Escola Nacional Veterinária de Alfort, na França, fazem parte do Projeto Internacional Nosaïs, desenvolvendo estudos para viabilizar a utilização de cães na identificação de pessoas infectadas pela Covid-19. Os cães são oriundos de um centro de treinamento localizado em Campo Limpo Paulista (SP). No Brasil, o projeto recebeu inicialmente fomento da Amarante do Brasil, empresa situada no Rio de Janeiro.
Quem chefia as pesquisas é o professor Anísio Francisco Soares, do Departamento de Morfologia e Fisiologia Animal, biólogo de formação, com doutorado pelo Instituto de Pesquisas Aplicadas de Lyon, na França, onde desenvolveu sua tese com estresse oxidativo e fisiologia celular. A equipe da UFRPE conta ainda com os professores doutores Leucio Câmara Alves, Rita de Cássia Carvalho Maia e Jeine Emanuele da Silva
“É importante lembrar que o coronavírus não tem cheiro. São os compostos voláteis que evaporam com o suor que vão exalar determinado odor, diferente do odor de quem não está contaminado”, enfatiza Soares.
Quando questionado sobre o porquê de se escolher cachorros, ele explica: “Se formos datar, convivemos com cães há milhares de anos. Eles têm uma capacidade olfativa superior e conseguem identificar doenças como malária, diabetes, fibrose cística, câncer de mama e próstata. Fomos procurados pela Amarante do Brasil e, por meio dela, foi estabelecida parceria com um centro de treinamento. A xodó da equipe é a SRD Sinatra, de oito anos, os outros dois são Taruga e Takessa, ambos da raça Dobermann e com um ano e meio”.
Ele admite que se buscarmos na literatura, encontraremos outros animais que também têm esta capacidade: “Por exemplo, porcos são usados para encontrar trufas na Itália. No Sri Lanka, há os mangustos que farejam explosivos. Felinos também possuem excelente olfato, mas não são naturalmente treináveis como os cães”.
É preciso deixar claro que nem todos os cachorros são, por assim dizer, “elegíveis”. O professor explica que, no entanto, os cães podem ser criados juntos, do mesmo modo, terem a mesma capacidade, mas, ao longo do treinamento, essa capacidade vai sendo aprimorada. Além disso, um pode apresentar falta de interesse e se dispersar, isso porque há muita repetibilidade no processo. “É um treino exaustivo, os comandos são repetidos dezenas de vezes ao dia, sempre elogiando e recompensando os acertos. Se um cão naturalmente não demonstrar interesse e desobedecer ao comando, ele pode ser retirado da equipe, mas isso é exceção”.
Soares conta que a pesquisa teve acesso ao sistema de saúde da cidade de Paudalho, que fica a 37 km de distância de Recife e tem cerca de 55 mil habitantes. Quando um morador fazia queixa de uma síndrome gripal (que poderia estar associada à Covid-19), passava automaticamente a ser monitorado pelo sistema de saúde do município. Essa informação chegava até a equipe, que, imediatamente, entrava em contato com este usuário do SUS para apresentar o projeto e, após consentimento da participação no estudo, era orientado a não tomar banho nem usar perfume nas 24 horas que antecedia a coleta do material.
No dia seguinte, os profissionais de saúde da equipe visitavam o voluntário e nele era colocado, em cada axila, um chumaço de algodão estéril limpo para coleta do suor. O material era coletado, sendo que uma amostra era guardada e outra ia para o centro de treinamento. Ao mesmo tempo, era feita outra coleta para realizar o RT-PCR, que detecta o vírus na fase aguda da doença, assegurando que se tratava de um caso positivo ou negativo para a Covid-19.
No centro de treinamento, uma pessoa entrava no ambiente e colocava o material, sendo sete negativos e um positivo. Não podia ser o treinador dos cães e ninguém sabia qual era o positivo. Eles acertaram 95%, e a equipe não entendia por que havia um erro de 5%.
“Voltamos a contactar os pacientes e era feito o sorológico para conferir os anticorpos. O interessante é que na contraprova aparecia que a pessoa havia sido infectada. Porém, quando foram colhidas as amostras, ela não estava mais na janela de detecção, por isso os resultados não batiam. Até o oitavo dia, a carga de transmissão é altíssima, mas a pessoa poderia estar assintomática no início da contaminação, de modo que o número de dias informado poderia não coincidir com o real e a janela de detecção ao RT-PCR ter passado. Os cães estavam certos”, diz orgulhoso.
O treinamento é dividido em três fases:
“A terceira fase é mais cara e também precisamos publicar um artigo em algum periódico de renome. O Frontier se interessou e irá publicar nossa pesquisa em breve”, conta o professor. Ele comenta que a adaptação dos animais costuma ser fácil e, em uma semana de treino, dois dos três cães não erraram nada, por exemplo. Para passar para a segunda etapa, são cerca de três meses de treinamentos.
Uma das intenções do estudo também é produzir compostos voláteis de forma sintética e enviar esse material para outros centros de treinamento que queiram preparar os cães. “Precisamos de um GCMSMS – aparelho de cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massa, que custa cerca de 500 mil reais. A equipe acredita no que faz, e nesta corrida internacional todos ganham. Almejamos aportes de uma empresa ou órgão de fomento para que o Brasil não saia do páreo na busca de uma resposta para a Covid-19 e toda a população saia ganhando”, conta o professor.
Entre as aplicações dos cães farejadores, além dos aeroportos, eles também podem “trabalhar” em estádios de futebol, acelerando a fila e a entrada das pessoas. O que representaria uma grande economia não só de tempo, mas de dinheiro.
Leia também
O professor enfatiza que os cães são tratados com ética, e que toda equipe sempre pensa no bem-estar dos peludos, que trabalham apenas com uma pessoa, e só aceitam os comandos dela. Eles têm um espaço para descanso com água, ração e médico veterinário. Trabalham algumas horas por dia e brincam muito, pois precisam ter momentos de diversão também.
É interessante pensar que diante de tanta tecnologia como nos dias atuais, com direito a inteligência artificial e internet das coisas, que o potente faro dos cães seja tão eficiente na detecção de doenças. “Apesar de toda tecnologia, essa parte da Saúde Única visa uma íntima relação entre homem, animal e natureza. Quando se privilegia apenas uma delas, pode estar prejudicando as outras”, finaliza Soares.
O objetivo do projeto KDog é diagnosticar o câncer de mama por meio dos odores específicos emitidos pelo corpo humano. Assim como no caso da Covid-19, são os compostos orgânicos voláteis, que são indetectáveis por nós humanos, mas perceptíveis ao extraordinário olfato canino. O trabalho é uma triagem simples, confiável, não invasiva e acessível às mulheres que se enquadrem no rastreamento. O projeto fechou parceria com o instituto Curie na França há dois anos. Desde então, as estruturas foram montadas, os cães selecionados e o processo de treinamento está a todo vapor.
Os cães são treinados por especialistas na cidade de Petrópolis, Rio de Janeiro, onde fica a Sociedade Franco-Brasileira de Oncologia, parceira do projeto. O método não necessita do contato entre animal e paciente e os resultados obtidos na França mostraram uma taxa de sucesso na detecção em cerca de 90% dos casos.
Por aqui, quem encabeça o projeto, sem fins lucrativos, como treinador e responsável técnico é o cinotécnico Leandro Lopes, que confessa ser um grande apaixonado por cães. Quando questionado sobre a preferência por eles em estudos, o profissional cita, como primeiro aspecto, o sistema olfativo complexo dos cães.
Os olhos dos cães estão no nariz”, diz Lopes
Ele explica que os cachorros possuem sensores olfativos apuradíssimos, que chegam a surpreender. “Isto já facilita muito o treinamento. O segundo aspecto é a facilidade, a proximidade, a cumplicidade que temos com cães treinados. É essa ligação com o ser humano, além do sensor apuradíssimo. A vida deles é pelo nariz. Há outros animais, mas o cão é o melhor”.
No processo de escolha é feita uma seleção e procurados cachorros de uma linha de trabalho que já venha desenvolvendo o sistema olfativo. E com raças que têm focinho cônico, onde se encontram mais receptores olfativos. Isso na parte técnica. Entre as raças estão Pastor Alemão, Braco, Beagle e Jack Russel. De preferência cães que gostam de brincar e treinar, que se adaptam fácil ao drive de caça (impulso ou instinto) e alimentação.
“No futuro queremos, junto do protetor aqui da cidade da cidade, fazer uma seleção de algum SRD encontrado na rua que tenha focinho cônico. Para ele compor nosso plantel. Não são todos os cães que conseguimos trabalhar, mas é uma forma de mostrar que todos são capazes de atuar para salvar vidas”, diz Lopes.
Ele conta que o treinamento é para o resto da vida. O pareamento do odor demora seis meses, mas para que seja aprimorado é preciso ter uma continuidade. O projeto é encarado como uma brincadeira pelo cachorro, e são meses para ele entender que tem de procurar o odor do câncer. Lopes conta que a biodetecção – utilização de animais ou outros organismos vivos para detectar algo – começou há cerca de 30 anos com um treinador que tinha diabetes. Quando a taxa glicêmica baixava, o cachorro dele notava e modificava o comportamento.
“Projetos com cães trabalhando como se estivessem brincando vêm há muito tempo. Eles podem ajudar a salvar vidas, se respeitarmos e deixarmos que eles sejam cães. Aqui, eles têm momentos de liberdade, de brincar, no individual e no coletivo, de treinar e descansar. A humanidade tem de agradecer muito aos cavalos e aos cães. Anos atrás havia aquela ideia de treinamento com punição, hoje, não; o cão vive feliz e adora o treinador. Os benefícios da terapia assistida com animais, por exemplo, também foram comprovados cientificamente. Podemos chegar a pontos inimagináveis com eles”.
A mulher recebe um kit com um explicativo, um saquinho zip, duas compressas e um sabonete neutro. Antes de ela dormir, ela se banha com esse sabonete neutro, coloca uma compressa em cada mama e um sutiã novo ou limpo. No dia seguinte, ao acordar, ela lava as mãos, pega as compressas, as coloca no zip e envia para a equipe KDog.
“Aqui temos cones que são separados, de cerca de 90 a 100 cm cada um, colocamos as compressas atrás deles e os cães fazem uma ‘brincadeira’ de procurar. Eles cheiram cada um dos cones. E naquele que tiver o odor do câncer, que veio pelo suor, o cão ficará sentado/estático fazendo a marcação”.
A paciente será identificada, a informação passada ao médico e essa mulher fará uma mamografia. Dessa forma, a mulher chega aos controles mais rapidamente. Os protocolos atuais não mudarão, mas esse processo facilitará e tornará mais veloz o tratamento. “O mais interessante é que o odor vem antes de a massa aparecer no mamógrafo. Essa mulher pode ficar de sobreaviso com acompanhamento médico e fazendo mamografias, de forma tolerável, até chegar o momento de ser tratada”, diz Lopes.
A intenção também é de, no futuro, chegar à população carente, indígena, ribeirinha, as mais necessitadas. “É o que sempre falo, podemos salvar vidas humanas com a ajuda de nossos amigos, sem mecanizá-los, trabalhando com qualidade de vida. Ouço falar de proteção animal e eu protejo muito meus cães. O projeto KDog terá um custo relativamente baixo, em comparação a exames, ajudará mulheres a chegarem ao resultado antes e salvará vidas. Faremos o bem com ajuda dos amigos de quatro patas”.
Segundo Lopes, os cães não são humanizados, mas tratados como cães, e têm uma ótima qualidade de vida. No complexo há uma sala revertida para uma veterinária que vê os cachorros uma vez por semana. Eles também fazem exames de sangue a cada três meses.
São meus amigos insubstituíveis, fazem parte da minha família, com minha esposa e filha, que também fazem parte do projeto. Temos áreas de brincadeira, nosso canil é bem montado, tem câmeras dentro das baias. Eles vivem em um ambiente verde maravilhoso, se alimentam duas vezes ao dia. Alguns podem pensar que são robotizados, mas não é nada disso. Quando estive na França, e vi a equipe de lá trabalhando, eu chorei, porque eu tive câncer, passei por isso, sei o que é. E trabalhar com cães, que é a minha paíxão, ajudar as pessoas a se tratarem e a salvar vidas é magnifico”, finaliza Lopes.
Veja também:
20 ótimas coisas que você pode aprender com seus animais de estimação
Adoção de pets aumentou na pandemia, mas abandono também
Entenda por que cachorros conseguem sentir crises epiléticas
Conheça benefícios que os animais trazem à nossa saúde e bem-estar