Em entrevista, o psiquiatra Marcelo Ribeiro fala sobre a droga que é tema de série da Globoplay
Léo Fávaro Publicado em 04/05/2021, às 11h00
Duas vezes mais potente que a cocaína, 15 minutos de “barato” e mais de 1,4 milhão de pessoas que usaram alguma vez na vida. O crack é uma das drogas ilícitas mais viciantes, mais baratas e, provavelmente, a que causa mais impactos sociais no Brasil. O tema ganha espaço na TV com a série “Onde está meu coração”, disponível no Globoplay, cuja trama se dá em torno de uma médica, interpretada por Letícia Colin, que é dependente de crack.
Durante o processo de composição da personagem, a atriz contou ter visitado a chamada cracolândia, na região central de São Paulo, e conversou com os moradores daquele espaço para entender a realidade da dependência química. Espaços como esses são uma das faces mais perturbadoras do consumo de crack, onde o uso de drogas ilícitas é não exatamente permitido, mas permissivo. E não é a primeira vez que o tema é retratado pela emissora: a novela Verdades Secretas, em 2015, trazia a personagem Larissa (interpretada brilhantemente por Grazi Massafera), uma modelo que deixou a carreira de modelo de lado e foi morar na cracolândia.
As cracolândias reúnem pessoas em situação de rua, mas não apenas elas, e expõem a céu aberto as substâncias ilícitas, o narcotráfico e a evidência de que a política de drogas fracassou. No caso paulistano, por exemplo, entra gestão, sai gestão política e o problema permanece ali - não, o problema não são os dependentes ou as drogas em si, mas a falta de humanização. É como se naquele espaço a céu aberto os direitos constitucionais à dignidade, à saúde e à liberdade, por exemplo, não valessem, sendo barrados pela gentrificação e por políticas higienistas.
A origem da versão fumada da cocaína remonta a bairros pobres de cidades americanas como Nova York e Los Angeles, em meados dos anos 1980 e, no Brasil, a droga chegou a bairros como São Mateus e Itaim Paulista, em São Paulo, em 1989. Não demorou muito para que seu consumo ganhasse outras regiões da cidade, se espalhasse por outros estados e fosse referido como uma "epidemia".
Mas será que o consumo de crack ainda pode ser mesmo considerado epidêmico no país? O psiquiatra Marcelo Ribeiro, diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod) de São Paulo, atribui ao crack a ideia de endemia, por seu consumo estar disseminado e se manifestar de forma frequente em todo o país. E não é apenas sua distribuição geográfica que assusta, mas o fato de atingir todas as classes sociais.
Ribeiro, que também foi coordenador da equipe que recentemente publicou um artigo sobre os fatores que levam ao consumo “precoce” de crack no Brasil, explica que cenas abertas de uso de substâncias ilícitas, como são as cracolândias, se mantêm exatamente pela falta de políticas públicas eficazes capazes de absorver essa população do ponto de vista social, e por não haver tratamento eficaz para essas pessoas. Como o estudo revelou, dentre os principais fatores associados ao consumo de crack no país estão o envolvimento em atividades ilegais, a facilidade de acesso a drogas, amigos que utilizam crack e conflitos familiares.
Em entrevista ao site Doutor Jairo, o psiquiatra contou sobre o estudo e sobre os impactos do consumo de drogas para o país. Confira:
O estudo foi feito em comunidades terapêuticas e essas pessoas são aquelas que tiveram oportunidade de buscar ajuda. É possível ilustrar o cenário para além daquilo evidenciado na pesquisa? Se sim, como seria essa realidade além do estudo?
Este estudo observou padrões de uso precoce e os fatores de risco ligados a esse padrão entre usuários de crack, que procuraram ajuda para tratamento em comunidades terapêuticas de seis estados brasileiros e no Distrito Federal. Portanto, esses resultados não podem ser generalizados para a população geral, considerando que há muitos usuários que não procuram tratamento por diferentes razões, desde a falta de acesso a qualquer um deles até a não identificação com o modelo de tratamento dentro das comunidades terapêuticas. A ideia de se realizar levantamentos epidemiológicos seriados em diversos ambientes e momentos do consumo de substâncias psicoativas pela população brasileira e pela população específica de usuários possibilita, dentre outras coisas, que possamos juntar as peças epidemiológicas e entender o usuário e seus diferentes momentos e preferências ao longo das trajetórias de consumo observadas para essa população.
Apesar da relevância, poucos estudos de maior abrangência, como o Levantamento Nacional de Álcool e Drogas (Lenad), vêm sendo realizados, ou ao menos poucos parecem ser publicados. Por quê?
Infelizmente, o governo brasileiro não realiza estudos epidemiológicos seriados sobre o consumo de drogas na sua população, como fazem outras nações e alguns organismo internacionais, para os quais esse tipo de levantamento já se tornou uma política de estado. Infelizmente, boa parte dos políticos e dos pesquisadores brasileiros encaram esse fenômeno de maneira polarizada a partir do binômio “proibição x legalização”. Quando já se tem a solução, os achados intermediários se tornam menos importantes. Diferentemente disso, nos países que possuem hoje políticas de drogas interessantes, essa construção é feita a partir de estudos que analisam o consumo e o impacto desse consumo em diferentes cenários, do macro até aos cenários que consideram pequenos grupos, a diversidade, a maneira como as substâncias impactam as pessoas ao longo da vida.
Assim surge a necessidade de conhecer a epidemiologia das drogas: quem usa, o que usa, por que usa e também para mostrar os caminhos para que isso não aconteça...
Um estudo como esse que acabamos de publicar, interessado em fatores de risco para o consumo precoce como uma substância como o crack, abre a possibilidade para a instituição de políticas de prevenção que ajudem os indivíduos ou que favoreçam que esse uso ou não aconteça, ou aconteça da maneira mais tardia possível. E esse é um problema que afeta nossos jovens independentemente da substância, ou de ela estar legalizada ou proibida.
Muito se fala no crack como uma epidemia. Como podemos explicar a droga nesse contexto?
Essa ideia de consumo de substâncias psicoativas como epidemia reflete a visão polarizada que ainda influencia a política e as linhas de pesquisa do país. De um lado, grupos supostamente mais conservadores que falam em epidemia de drogas, e, de outro, grupos mais afinados com a ideia de legalização tentando demonstrar que não é bem assim, que não existe epidemia. William Burroughs, que é escritor beatnik e talvez seja o escritor que mais incorporou e retratou literariamente o uso de drogas entre as pessoas, dizia textualmente que "o vírus da droga é o problema de saúde pública número um do mundo de hoje". Obviamente, ele não afirmou isso com cabeça de um epidemiologista, porque no momento em que se fala que a gente vive uma epidemia das substâncias, não quer dizer que ela esteja se espalhando perigosamente ou que ela vai atingir níveis insustentáveis, como a gente fala na pandemia da Covid-19. O que se quer dizer é que esse consumo atingiu níveis de proporção nunca antes observados, então se tornou um problema de saúde pública. Pior do que isso: mais do que níveis epidêmicos, hoje se verifica um nível endêmico, estabilizado, que demanda ações dos estados, das prefeituras, do governo federal. O consumo de substâncias psicoativas hoje, lícitas e ilícitas, é uma situação permanentemente grave e que demanda soluções para além desse binômio "proibição x legalização". Tanto drogas lícitas quanto ilícitas impactam negativamente sobre a saúde pública brasileira.
Também se fala das drogas enquanto um problema de saúde pública, mas como isso se manifesta?
Tem um dado que acho muito interessante: duas das nações que mais fecham presídios, hoje em dia, são nações com políticas de drogas aparentemente antagonistas: a Suécia, que é um país considerado uma das referências do proibicionismo, e a Holanda, que tem políticas para as drogas mais abertas, mais próximas de uma ideia da legalização. É importante colocar que, para além da proibição ou da legalização, a questão das substâncias precisa ser encarada como um problema de saúde pública. Cenas abertas de uso, como as cracolândias, não existem porque essa substância é proibida. Elas existem porque não existem políticas públicas eficazes capazes de absorver essa população do ponto de vista social, de oferecer um tratamento eficaz, ainda que sejam ações de baixa exigência, e de lidar com o narcotráfico de uma maneira eficiente. Nesse quesito específico das cenas abertas, o que a experiência internacional mostra é que o sucesso da abordagem não está na erradicação do narcotráfico e daquilo que significa uma cena aberta, mas de torná-las cenas fechadas, ou seja, de incomodar o narcotráfico a ponto de ele entender que ele não pode acontecer assim, explicitamente, a céu aberto, à custa de pessoas altamente adoecidas e de um entorno social e de bairros que acabam se degradando a olhos vistos.
Quais são as vias para resolver ou mitigar o problema da dependência em crack?
As políticas efetivas para o crack são de diferentes naturezas e aplicadas a diferentes fases da vida das pessoas e do ambiente onde elas vivem. Elas passam por políticas preventivas nas escolas, não apenas para o uso de drogas, mas para a presença de violência, entre elas a violência doméstica, já que essa população dedependente de crack tem um antecedente de violência doméstica muito alto, inclusive com abuso sexual e físico. Essas políticas também passam pela revitalização das cidades e pela construção de um ambiente urbano mais humano e de mais pessoas, coletivo, assim como passam pela construção de políticas interessadas na inclusão das pessoas, tanto do ponto de vista social, quanto do ponto de vista das diferenças. É importante considerarmos o uso de crack do ponto de vista macro, como um marcador e um sintoma da exclusão e da intolerância sociais, já que os usuários mais graves foram vitimizados principalmente durante a infância e à adolescência pela violência, pela exclusão social e pela intolerância.
*Leo Fávaro é acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo
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