O amor familiar sempre se manifestou nas mais variadas configurações. Mas, hoje, graças aos avanços da medicina e também das leis, casais homoafetivos têm conseguido realizar o sonho de gestar um filho desde o comecinho da história, ou seja, a fecundação.
Entre casais de mulheres, o processo envolve decidir quem doará os óvulos e carregará o embrião no ventre, além da busca de um doador anônimo de sêmen. Já para casais homoafetivos masculinos, os obstáculos são um pouco maiores, já que é necessário contar com a chamada “barriga solidária”, algo que, de acordo com a lei, não pode ter caráter comercial.
Para Marcelo Alcazar e Manoel Cardoso, casados desde 2019, a primeira conversa foi sobre adoção. Pai de um garoto de 26 anos, Marcelo sempre disse que teria um segundo filho depois que o primeiro estivesse “encaminhado”, e aquela era a hora. Mas eis que veio a pandemia de Covid e a frustração de ter que adiar o processo.
Comovida, a tia solidária entrou em cena. Irmã de Manoel, Flávia se ofereceu para gestar o bebê para o casal. E assim o sonho dos dois voltou aos trilhos. Após pedirem indicações, eles procuraram o ginecologista Arnaldo Cambiaghi, especialista em reprodução humana e responsável técnico do Centro de Reprodução Humana do IPGO (Instituto Paulista de Ginecologia e Obstetrícia), em São Paulo.
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Foram feitos vários exames, consultas com psicóloga, autorizações e documentos até o início do tratamento. A fertilização ocorreu com um óvulo de doadora anônima e os gametas de um dos dois (eles preferem não divulgar qual deles, já que, de toda forma, ambos são pais). Após a fecundação em laboratório, foram escolhidos os dois embriões com maiores chances de sucesso e o terceiro foi congelado. Logo após a transferência, Flávia engravidou (vale ressaltar que nem sempre o sucesso ocorre na primeira tentativa). E eram gêmeas.
“A gente não contou para ninguém até o terceiro mês”, conta Marcelo. Assim como em qualquer tratamento de reprodução assistida, existe sempre o risco de a implantação não ocorrer, ou de a gravidez não avançar, e se já é difícil lidar com as próprias expectativas, imagine ainda ter de encarar parentes e amigos nesse fase inicial tão delicada.
Marcelo diz que a notícia foi muito bem-vinda para as famílias de ambos, algo que já era esperado. E eles resolveram registrar toda a história com a página 2 Papais de Gêmeas, no Instagram. Kaila e Laira já estão com 8 meses, e cada “mesversário” tem sido celebrado com muita alegria.
Para os casais homoafetivos que pensam em realizar esse sonho, o conselho que eles dão é: “Programe-se financeiramente, prepare-se para a gestação e para quando as crianças chegarem. O resto vem tranquilamente”, diz Marcelo. Qualquer problema, inclusive as críticas que podem surgir pela ausência da mãe na criação das meninas, se dissolve rápido ao olhar para as filhas, ver o sorriso, sentir o apego...
Como Marcelo é advogado e Manoel tem uma loja, os papais podem se alternar no cuidado das meninas: um fica em casa três dias da semana, e o outro, em outros três. Há uma pessoa para ajudar na limpeza, mas são eles que cuidam das bebês.
No campo da burocracia, ainda existem obstáculos para casais homoafetivos masculinos. Infelizmente, o pedido de salário-maternidade para um dos dois foi negado. O caso está na Justiça, já que o benefício é concedido para homens solteiros que adotam, mas ainda não houve decisão. Marcelo e Manoel conseguiram driblar a dificuldade porque são autônomos e a pandemia permitiu que muita gente trabalhasse remotamente. Em outras situações, o desafio pode ser grande, daí a importância de se planejar financeiramente.
Veja, a seguir, algumas questões comuns para casais homoafetivos femininos e masculinos, que o médico Arnaldo Cambiaghi responde na nova edição do livro “Ser ou Não (In)Fértil – Caminhos e Conquistas”.
No caso de duas mulheres, de qual delas serão os óvulos e qual delas irá gestar?
Há duas possibilidades: na primeira, uma das mulheres vai gestar com os seus próprios óvulos; na segunda é a gestação compartilhada. Neste caso, as duas mulheres passam por exames que avaliam a capacidade reprodutiva, anatomia uterina, e fatores como idade e doenças como diabetes, hipertensão etc. A idade do óvulo é um fator fundamental para as chances de sucesso, independente de qual técnica de reprodução assistida foi a indicada, assim como na incidência de complicações materno-fetais.
Qual melhor opção nesses casos: inseminação ou fertilização in vitro (FIV)?
Entre os processos de reprodução humana para casais homoafetivos femininos, a FIV é o que oferece os melhores resultados na concepção do bebê. Lembramos que se chama fertilização in vitro porque a fecundação é feita em laboratório, ou seja, diferente da inseminação artificial, na qual a fertilização ocorre no organismo da mulher. Vale lembrar que na gestação compartilhada, o embrião gerado por meio da técnica de reprodução humana assistida NÃO é transferido para o útero da mãe biológica, mas para o de sua companheira. Dessa forma, é possível que uma mulher viva a gestação do filho biológico de sua parceira.
Para casais homoafetivos masculinos, quais são os passos?
O primeiro passo é que o casal selecione uma doadora de óvulos anônima. Nesse caso, a doação de óvulo segue as regras normais estabelecidas por resolução do CFM, ou seja: a doação nunca terá caráter lucrativo ou comercial e os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa. Entretanto, na Resolução do CFM Nº 2.294, de 27 de maio de 2021, também é permitido na doação de gametas para parentesco de até 4º (quarto) grau, de um dos receptores (primeiro grau - pais/filhos; segundo grau - avós/irmãos; terceiro grau - tios/sobrinhos; quarto grau - primos), desde que não incorra em consanguinidade. Assim, é possível que se pegue óvulos da irmã ou parente de um deles e fertilize com o sêmen do parceiro, para que se tenha material genético das duas famílias. Isso é possível, mas tem que ser muito bem discutido com o casal.
Como deve ser a doação temporária de útero?
No caso da doação temporária de útero, o CFM estabelece que “as doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros num parentesco consanguíneo até o quarto grau. Em todos os casos, respeitada a idade limite de até 50 anos e que a mulher já tenha pelo menos um filho. Também não pode haver caráter lucrativo nem comercial”. Se o casal não tiver a pessoa com o grau de parentesco exigido, e dentro das regras definidas pelo CFM, e que possa ceder seu útero, é possível entrar com pedido no Conselho Regional de Medicina para que alguém não parente o seja, mas o tratamento só poderá ser realizado após essa aprovação. Aqui vale de novo a premissa que não pode ter caráter lucrativo/comercial.
Como é a escolha dos gametas masculinos?
A última etapa consiste na escolha de quem coletará os espermatozoides. Assim, resumidamente, é realizado o procedimento de fertilização in vitro, no qual o óvulo doado anonimamente é fertilizado em laboratório, com os gametas masculinos coletados de um dos parceiros e, depois do desenvolvimento inicial, os embriões são implantados no útero de substituição e, dessa forma, a gestão acontece. É possível que parte dos óvulos seja fertilizada com sêmen de um dos homens do casal e a outra parte dos óvulos com o sêmen do parceiro, formando embriões de ambos, MAS NÃO É PERMITIDO PELO CFM transferir para o útero um embrião de cada parceiro no mesmo ciclo. Em momentos diferentes é possível. A doadora de óvulos e a mulher que vai ceder o útero não podem ser a mesma pessoa.
"Ser ou Não (In)Fértil – Caminhos e Conquistas"
Editora La Vida Press
315 páginas
Venda no site www.lavidapress.com.br/
Tatiana Pronin
Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY. Twitter: @tatianapronin