Jairo Bouer Publicado em 27/10/2020, às 14h11 - Atualizado às 14h20
Quando se fala em violência doméstica, a primeira imagem que vem à mente de 98% das pessoas é uma mulher com olho roxo. Mas quando isso acontece, é porque muitas outras violências ocorreram antes disso. Esse foi o tema de uma live com a participação da psicóloga Mafoane Odara, do Instituto Avon, da jornalista Mariana Varella e eu, no site do Drauzio Varella.
Críticar a aparência, impedir a convivência da parceira com familiares ou amigos, tirar a camisinha no meio do sexo e até controlar o dinheiro também são formas de abuso e precisam ser combatidas. Mas para que isso aconteça, é fundamental que o machismo estrutural e outras formas de preconceito que vulnerabilizam as vítimas sejam desenraizados. Como? Conversando sobre esse assunto desde cedo, com crianças e adolescentes, em casa e na escola.
O Brasil registra um estupro a cada oito minutos, segundo o Anuário de Segurança Pública. Levantamentos também mostram que entre 26% e 35% das mulheres já sofreram alguma forma de violência física ou sexual por parte do parceiro íntimo. Mas isso é só o topo do iceberg! Existe um problema grave de subnotificação, principalmente de casos que envolvem crianças e adolescentes, para quem denunciar é ainda mais difícil.
Para mulheres negras e populações LGBTQIA+, que são as principais vítimas de violência física e sexual, conseguir ajuda pode ser um desafio maior ainda, porque os preconceitos se somam e exponencializam o problema. Essas mulheres são maioria nas estatísticas oficiais, pois, como bem observa Mafoane, “quando a gente chama a polícia é porque tudo deu errado”. Todas as tentativas anteriores de obter ajuda para sair de um ciclo perverso falharam.
Além das milhares de agressões que acontecem antes de um homem chegar “às vias de fato”, há situações que nem chegam a ser denunciadas pelas mulheres, pois muitas delas entendem que “homem é assim”. Elas introjetam uma culpa (que não é delas!), e esse aprisionamento emocional muitas vezes impede que elas façam qualquer movimento para sair da relação abusiva. É comum esconder a situação por muito tempo, até da mãe ou da melhor amiga, porque a mulher sabe que vai ser pressionada a fazer algo, e ela não está pronta para isso. E nunca estará, se não contar com o apoio de uma rede de suporte.
Quando vemos episódios que viram a público, como o do jogador Robinho, fica claro que existe uma incapacidade de muitos homens para entender que aquilo é muito mais do que passar do ponto, que aquela moça não estava em condições de avaliar o que estava acontecendo e que, dessa forma, não existe a mínima possibilidade de consentimento. Beber ou usar um decote não pode ser interpretado como sinal verde para o abuso e, no entanto, ainda hoje a gente vê até mulheres usarem argumentos como “ela pediu para ser estuprada”. Vivemos imersos num machismo estrutural que é perpetuador da violência. Denunciar e punir é fundamental para inibir que episódios como esse se repitam. Mas o problema é mais embaixo. É preciso intervir antes, fazer um trabalho de prevenção.
Muitos dos padrões de comportamento que culminam em violência são passados de pai para filho. Um indivíduo que viu o pai agredir a mãe, ou mesmo que foi agredido por ele, é mais propenso a ser tanto vítima como perpetrador de violência mais tarde. (). Uma pesquisa recente divulgada pela ONG Plan International nos EUA mostra, por exemplo, que uma em cada três garotas de 14 a 19 anos já ouviu comentários ou piadas machistas de homens da família, muitas vezes do próprio pai. Ao fazer a pergunta para os garotos, quase metade relata o mesmo. Fica difícil mudar as coisas, para as mulheres, quando a discriminação é ensinada no berço.
Relacionamentos abusivos são um fator de risco importante para a saúde mental das garotas, e não é à toa que elas são mais propensas a transtornos emocionais e automutilação. Mas o machismo estrutural é perverso com os próprios homens. A pressão para esconder a dor faz com que muitos se exponham cedo a situações de risco, e também é por isso que eles sofrem mais com transtornos como o abuso de substâncias e usem meios mais letais nas tentativas de suicídio. Um homem mais livre dessas “amarras” não é menos homem por isso, mas certamente vai ser um homem melhor para as mulheres, para seus filhos e sua família e para a sociedade em geral.
Relações saudáveis envolvem respeito e autonomia de ambas as partes. Ensinar isso às crianças vai fazer com que a gente tenha gerações mais felizes e mais justas.
(Texto extraído da Coluna do Jairo Bouer no UOL)
Assista à íntegra da live:
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