Dar nome à dor lancinante que faz uma pessoa querer acabar com a própria vida pode ser o primeiro e importante passo para ter controle sobre o sofrimento emocional. A estudante de psicologia Júlia Mussak, de 22 anos, a chama de Monstro. Em 2020, ela lançou seu primeiro livro sobre essa sensação que a fez flertar com a morte aos 15 anos, sobre o qual falamos aqui no site. Mas uma descoberta inesperada a obrigou a colocar no papel a segunda parte da história apenas um ano depois.
Se no primeiro relato, apresentado no e-book “Eu e Meu Monstro”, o relacionamento difícil com o pai é pano de fundo para sua história, marcada por sintomas de depressão e ansiedade desde a infância, no segundo livro, “O Monstro entre Raios”, a figura paterna torna-se central, como numa espécie de epílogo. “Eu precisei continuar a história, porque ela não acabou no ponto final do primeiro livro, nem para mim, nem para a minha família”, diz a autora.
Enquanto colhia os frutos do lançamento do primeiro livro, recebendo mensagens de jovens de diferentes partes do Brasil que se identificaram com sua trajetória, Júlia recebeu a notícia de que o pai estava internado. Ele lutava há anos com a dendência de cocaína, para a surpresa dos filhos. Não só a agressividade e o distanciamento que Júlia tanto criticava em “Eu e Meu Monstro” ganham novo sentido, como também sua própria dor: assim como o pai, a jovem também buscou no álcool e no Rivotril um escudo contra seu monstro interno.
“É muito comum encontrarmos vários indivíduos com transtornos emocionais em uma mesma família”, comenta o psiquiatra Jairo Bouer. O que Júlia chama no novo livro de “efeito dominó”, no entanto, está longe de ser explicado pela matemática dos genes: “Transtornos como depressão, ansiedade e abuso de substâncias são multifatoriais e a predisposição genética é apenas uma parte da equação. Não podemos esquecer que um pai ou uma mãe que enfrentam algum tipo de sofrimento emocional podem estar menos disponíveis para atender às demandas emocionais dos filhos, e só isso já é um fator de risco para os transtornos mentais”.
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Neste Setembro Amarelo, mês dedicado a reflexões sobre a prevenção do suicídio, o livro “O Monstro entre Raios” nos lembra que dividir o teto ou ter laços sanguíneos com alguém não significa que conhecemos completamente essa pessoa. Mas é na relação com os outros que, muitas vezes, entendemos quem somos e que não estamos sozinhos. Como conta Júlia nesta entrevista e nos livros, os momentos de desespero não desaparecem, mas aprender a dialogar com nossos fantasmas, monstros e cia. pode fazer toda a diferença. Assim como o pai, Júlia hoje segue firme no tratamento e vive um relacionamento afetivo satisfatório.
Site Doutor Jairo: O que a fez escrever o segundo livro?
Júlia Mussak: Eu não imaginava escrever outro livro em um espaço tão curto de tempo, muito menos outro livro sobre a minha vida e a vida da minha família. Muitos dos relatos que estão no primeiro livro (“Eu e Meu Monstro”) foram relatos que caíram por terra quando descobri o que estava por trás de tanta dor, tanto sofrimento. Nós pecamos ao acreditar que conhecemos por completo as pessoas ao nosso redor. Pouco importam os laços sanguíneos e pouco importa se dividimos o teto com alguém. Eu precisei continuar a história, porque ela não acabou no ponto final do primeiro livro, nem para mim, nem para a minha família. A verdade é que, infelizmente, existem situações dramáticas acontecendo literalmente debaixo dos nossos narizes e nem sequer desconfiamos. Além de tudo, precisamos entender também que alguns transtornos da mente são hereditários, e as circunstâncias do ambiente em que cada um de nós vive é fundamental para a nossa formação como indivíduos.
Qual foi o impacto, em você, da descoberta sobre o seu pai?
A descoberta foi, como eu escrevi no segundo livro, cômica. Eu me culpei por tantas coisas, me culpei por momentos em que eu não estive presente, ou não percebi o que estava acontecendo. Me perguntei inúmeras vezes como meu pai estaria hoje em dia se eu tivesse notado as mudanças nele. Mas nós somos responsáveis pela nossa própria história, né? Somos responsáveis pelas consequências das nossas escolhas. Eu entendi que, por muitos anos, meu pai não esteve presente. Por muitos anos meu pai foi o que a droga fez dele. E o processo para entender isso, perdoar e acolher, é difícil, mas não é impossível.
Como você está hoje?
Eu ainda faço tratamento psicológico e psiquiátrico e, pelo amor de Deus, vamos acabar com os tabus ao redor do assunto! Estou bem, me sinto estável a maior parte do tempo, mas ainda tenho crises que me impedem de viver alguns dias. O segredo está justamente em respeitar os nossos limites. Se você não está um poço de alegria, não se cobre. Você não é ingrato (a) por ter dias ruins. Entender como o nosso corpo funciona é libertador. E todos os dias nós estamos em processo de cura e evolução.
Como tem sido falar sobre suicídio com outras pessoas após lançar o primeiro livro?
Eu recebo muitas mensagens, muitas mensagens mesmo, de pessoas do Brasil inteiro que se sentem confortáveis para falar comigo sobre ideação suicida. Eu incentivo de imediato as pessoas a procurarem ajuda. Infelizmente o Brasil ainda está coberto por preconceito quando assunto é suicídio. Pessoas que tem ideação são condenadas de uma forma extremamente cruel, raramente são acolhidas como deveriam. São julgadas como ingratas, pecadoras, egoístas e muitas outras coisas mais. Eu costumo dizer que nós temos o direito de não nos aguentarmos mais, se precisamos “dar um tempo” em relacionamentos com amigos e familiares, por exemplo, por que a gente não pode cansar da gente mesmo? E por isso é tão importante incentivar a terapia, porque normalizar o “não me aguento mais -hoje-“, para que exista uma forma de superar os dias ruins, é diferente de mergulhar na escuridão e não se aguentar mais até alguém tirar a própria vida. O manejo das crises é essencial. E eu espero que as minhas palavras continuem acolhendo mais gente por esse Brasil.
Minha mãe conta que meu pai falava que se sentiu abandonado desde pequeno. Mais uma vez neste relato aparece a palavra “abandono” e, mais uma vez, é escrachado o efeito dominó dos comportamentos de cada família. Meu pai também foi uma criança marcada por traumas, violência e desprezo. Sua infância e adolescência o constituíram como ser humano e, quando eu nasci, recebi dele o que ele tinha para me dar. Eu não tenho espaço para culpar meus avós pelos traumas do meu pai. Afinal, o efeito dominó acontece por gerações. Acredito que meus avós também sofreram muito ao longo de suas vidas.
“O Monstro entre Raios”, de Júlia Mussak (Ed. Mustafari Ilustrações)
À venda no Mercado Livre
Tatiana Pronin
Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY e é membro da Association of Health Care Journalists. Twitter: @tatianapronin