Mastectomia: entenda a importância da cirurgia na vida de homens trans

Como processo no SUS é lento, jovens tentam arrecadar dinheiro para custear o procedimento

Giulia Poltronieri Publicado em 18/01/2021, às 21h22

Guto, João e Bernardo contam as experiências como homens trans - Reprodução / Instagram

Guilherme Bernardo, de 26 anos, e João Ariel, de 24, são dois amigos que atualmente moram em Salvador e se juntaram com um mesmo objetivo: fazer uma mastectomia. O procedimento, também conhecido como mamoplastia masculinizadora, visa retirar as mamas e dar ao corpo uma aparência mais masculina.

Para isso, os amigos se uniram e lançaram uma "vakinha online" para conseguir o valor de 24 mil reais, suficiente para que ambos realizem a cirurgia.

Tanto Bernardo quanto João são dois homens trans, ou seja, não se identificam com o sexo biológico com o qual nasceram.

Me percebi como homem trans aos 13 ou 14 anos. Estava assistindo a um programa de TV e o convidado era o João Nery [primeiro homem trans a realizar a cirurgia de redesignação sexual no Brasil] e aí fui percebendo que eu também era como ele. Ali tudo começou a fazer sentido”, relembra Bernardo.

Já João conta que percebeu que era trans apenas aos 18 anos, mas desde criança já usava roupas masculinas e gostava mais da companhia dos meninos. “Eu pegava roupas do meu pai e colocava dentro de casa, achava um máximo. Tudo que era considerado brincadeira de garoto eu estava no meio. Quando eu saía na rua e me chamavam de menino, eu amava”.

Como os seios dificultaram a vida

A psicóloga Desiree Cordeiro explica que muitas pessoas trans vivenciam a disforia de gênero, ou seja, sintomas de ansiedade ou depressão associados ao desconforto com o próprio gênero e o próprio corpo. Por isso, em homens trans, a presença dos seios, também chamados como “intrusos”, pode trazer muito incômodo.

Bernardo, por exemplo, lembra do momento em que percebeu que os seios atrapalhariam sua vida: “Foi na primeira vez que ganhei um sutiã, porque até então eu era criança, brincava na rua com os meninos, sempre de shorts sem camisa. Foi só quando minha mãe me deu meu primeiro sutiã que comecei a distinguir o que era masculino e feminino, o que era ser homem e ser mulher. Porque aí eu saí da zona de ‘estou jogando bola com os meninos’ para me caracterizar como uma menina”.

João teve uma experiência parecida e também relatou que os seios o atrapalham a fazer coisas simples, como jogar futebol e andar sem camisa. “Os seios sempre me incomodaram muito. Quando eu jogava bola e balançava, era horrível. Eu lembro quando eu saía, colocava um sutiã e dois tops em cima pra apertar e esconder um pouco. Depois eu conheci o binder e nunca mais parei. Uso todos os dias. Às vezes estou sozinho em casa e estou com ele. Quando comecei a usar, passei a ser tratado no masculino pelas pessoas na rua e eu achava isso sensacional.

O binder, ao qual João se refere, é uma espécie de faixa que comprime os seios para tentar disfarçar a aparência. O problema é que, se usada com frequência, traz desconforto e problemas para a saúde.

Aperta muito, prejudica a coluna e a respiração, fora as diversas vezes que eu fico com os seios assados, o que acaba machucando e aí preciso usar pomada para assadura”, ressalta Bernardo. 

Contudo, apesar de todos esses problemas, ele deixa claro que não odeia e nem sente nojo do próprio corpo. Bernardo inclusive chega a dizer que acha os seios bonitos.  “Só não acho que faça parte de como eu quero me ver e como quero que as pessoas me vejam”, explica.

O processo para fazer a cirurgia

Segundo João e Bernardo, fazer a "vaquinha" foi a solução encontrada por eles para conseguir realizar o sonho da mastectomia. Apesar de o SUS (Sistema Único de Saúde) oferecer o procedimento, as filas são longas e extremamente burocráticas. “Não conheço uma pessoa daqui de Salvador que tenha feito isso pelo SUS”, comenta João.

Reprodução

 

Augusto Dias, também conhecido como Guto, tem 23 anos e já passou pela cirurgia de mastectomia. Assim como os outros dois amigos, ele também optou por fazer de forma privada, pois disse que o processo no SUS é muito lento. Guto conta que a relação com o corpo era difícil desde sua puberdade, quando os seios começaram a aparecer: “Eu tinha uma prima muito próxima que me falou que, se alguém esbarrasse no meu peito, ele poderia parar de se desenvolver. Isso pra mim foi uma luz no fim do túnel, e eu sempre dava socos ali na região porque de fato eu não queria que eles existissem, muito menos crescessem”, relembra ele.

Por isso, depois de um tempo, já em transição hormonal e acompanhamento psicológico, Augusto conseguiu um médico em seu plano de saúde para fazer a cirurgia.

Eu estava super animado porque não tinha dinheiro. Porém, a cirurgia não deu muito certo e eu tive que voltar uma semana depois pra passar na emergência, porque meu peito esquerdo inchou muito. Parecia que eu tinha colocado silicone”, conta. “Depois de 6 meses eu descobri que o médico fez a cirurgia de forma errada. Então, passei por outro procedimento, com outro médico. Para isso, minha namorada fez uma vakinha surpresa pra mim e a gente conseguiu chegar no valor”.

Histórias como a de Guto, infelizmente, podem ser comuns. Desiree comenta que na preparação para a cirurgia, é importante lembrar que, assim como qualquer outra, essa também possui seus riscos. “Qualquer cirurgia é considerada de risco por conta do processo de anestesia geral. É necessário fazer uma avaliação física e clínica, para ver se essa pessoa tem condições de fazer o procedimento. Além disso, é importante que as pessoas tenham noção do que pode acontecer na cirurgia. Às vezes, a expectativa precisa ser trabalhada. A cirurgia pode não ficar do jeito imaginado, o que leva a uma frustração, que tem que ser tratada em terapia antes”.

E Guto sabia disso. Ele conta que, antes de entrar na sala cirúrgica, ele estava com medo de morrer. “Estava muito assustado, mas ao mesmo tempo muito feliz. Quando fui fazer a cirurgia, me despedi da minha namorada, falei que eu a amava muito e que, se eu morresse ali, ia morrer muito feliz, porque ia morrer sendo eu por completo”. 

Felizmente, tudo deu certo no segundo procedimento e ele gostou bastante do resultado.  Segundo Guto, fazer a mastectomia significava ter liberdade. “Era como se assinasse embaixo que agora sim era eu de verdade”.

Por fim, ele brinca sobre quais eram as expectativas para depois que realizasse o procedimento: “Eu disse pra minha namorada que quando eu pudesse fazer [a cirurgia], eu ia fazer absolutamente tudo sem camisa: levar o lixo na rua, varrer a calçada, só não ia trabalhar porque não pode”.

O que muda com a cirurgia

Para a psicóloga Desiree, a cirurgia tem um alto impacto na saúde mental e na vida social das pessoas: "Na minha experiência, o que eu vejo é que, quando as pessoas fazem, elas têm uma melhora de saúde mental. Elas conseguem se socializar mais, se posicionar mais. Elas se sentem mais seguras de si".

Assim como Guto falou, o sentimento é de liberdade. Para João e Bernardo, que aguardam o momento, a expectativa é alta.

Bernardo diz que além de resolver os problemas de saúde, como não ter mais dor na coluna, problemas respiratórios e ferimentos nos seios, ele ainda vai poder praticar exercícios sem medo de ser julgado. “O que vai mudar é que vou ter liberdade. Vou ter prazer em fazer as coisas. Também não vou ter mais medo, que é algo que sinto no dia-a-dia. Medo de ser agredido. Essas coisas, que para algumas pessoas pode ser pouco, pra mim é muito”.

E João finaliza: “Vou poder comprar pão na minha rua sem camisa, vou conseguir tomar banho de mar, vou conseguir estar feliz. Vai mudar tanta coisa na minha vida que nem sei como listar. Mas eu vou ter uma vida feliz, digna. Vou ser menos confundido como uma mulher, vou ser tratado como homem.

Até o momento da publicação dessa matéria, a Vakinha dos dois amigos arrecadou R$ 8.680,00. O valor que eles buscam é de R$ 24.000. Se quiser ajudar, é só clicar aqui.

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