*Marcelo Magalhães Publicado em 23/11/2021, às 14h57
Se você ainda não sabe, o câncer de próstata é o segundo tipo de câncer mais comum entre pessoas nascidas com pênis, atrás apenas do câncer de pele não-melanoma. É, também, o segundo mais letal, perdendo apenas para o câncer de pulmão. 75% dos casos surgem em pessoas com 65 anos ou mais – espere para ver as estatísticas abaixo, até há pouco ignoradas mesmo pelo meio científico.
De acordo com o IBGE, em 2021, temos 102 milhões de brasileiros designados como homens ao nascimento e, destes, cerca de 9% são maiores de 65 anos. Embora não existam fontes precisas, estima-se que 8% da população de homens cis, no Brasil, se considera gay ou bissexual: algo em torno de 8,1 milhões.
Ao extrapolarmos fontes americanas, onde 10% de homens gays e bissexuais apresentam mais de 65 anos, teríamos algo como 810 mil homens gays e bissexuais nesta faixa etária – provavelmente subestimado, por sofrermos mais com a violência ao longo da vida, além da invisibilidade e isolamento de nossos idosos LGBTQIA+.
Novamente extrapolando dados, dos 65.840 diagnósticos de câncer de próstata em 2020, segundo o INCA (Instituto Nacional do Câncer), ao menos 1.320 casos devem ter acontecido entre homens gays e bissexuais com menos de 65 anos e 3.950 entre aqueles com 65 anos ou mais – isto em um único ano! Infelizmente não temos ainda dados seguros, nem para extrapolarmos, referentes à população transgênero.
Que o câncer de próstata é uma grande questão de saúde pública, nós já sabemos. O que quero levantar aqui é: onde estão os mais de 5 mil casos/ano de pessoas LGBTQIA+ com a doença? Estão sendo tratadas? Suas particularidades estão sendo levadas em conta? Sendo um urologista, trabalhando com próstata e população LGBTQIA+, ainda vejo muito pouco delas. Talvez por ainda sofrermos (MUITO) com a falta de acesso à saúde, homofobia e desinformação a este respeito – tanto da população, quanto dos profissionais da área.
Ainda é muito usado o termo “prevenção” do câncer de próstata, enquanto na verdade o que fazemos é uma detecção precoce da doença. Prevenção é o que uma vacina, por exemplo, proporciona: uma ação que evita o surgimento de um problema. Neste sentido, o câncer de próstata é inevitável, mas podemos identificar alguns fatores de risco que aumentam as chances de ele surgir, entre os quais: idade, população negra, história familiar, tabagismo, obesidade e dieta. Além do que normalmente é discutido, algumas dúvidas referentes a fatores de risco são levantadas para pessoas LGBTQIA+:
- TESTOSTERONA: Como a próstata é um órgão sensível a este hormônio, o uso de anabolizantes – comum entre homens cis gays e bissexuais, principalmente – teoricamente aumentaria o risco de câncer neste órgão. Diversos estudos não comprovam esta associação. Inclusive, o uso do hormônio como reposição é possível em pessoas já tratadas e com a doença estável. No entanto, é imperativo que antes do uso de testosterona (independente da indicação deste uso), o diagnóstico do câncer seja excluído – pois pessoas com câncer ativo apresentam pior evolução com o uso concomitante do hormônio, pois este serviria como um combustível à doença;
- HORMONIZAÇÃO: é o processo pelo qual mulheres trans passam para mudar o corpo e ficar mais à vontade consigo mesmas. Neste processo é usado estrógeno, responsável pelo surgimento de características femininas e que por si só diminui os níveis de testosterona próprios. Além disto, em muitos casos também são usados bloqueadores diretos da testosterona, para involução dos pelos corporais, por exemplo. Com isto, a próstata deixa de receber estímulo pela falta da testosterona, o que diminui drasticamente o risco do desenvolvimento de câncer. No entanto, apesar de diminuir, este risco não é nulo. Mulheres trans também precisam realizar check-up de próstata pois o câncer, quando surge, costuma se apresentar mais agressivo;
- SEXO ANAL: sabemos que o pênis estimula a próstata da pessoa que pratica o sexo anal receptivo e, com isto, é questionado se há impacto no risco de câncer. Diversos estudos conduzidos neste sentido não conseguiram comprovar aumento ou diminuição nas chances de a doença acontecer. Porém, esta questão deve ser levada em conta pois o sexo anal receptivo aumenta os níveis de PSA no sangue, exame utilizado no diagnóstico do câncer. Este aumento não é prejudicial, mas pode confundir o urologista durante a avaliação da saúde prostática. Antes de realizar o exame de PSA, o recomendado é a abstenção sexual de pelo menos 3 dias;
- ISTs: também sabemos que a população LGBTQIA+ é mais vulnerável às Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs), por falta de campanhas educativas ou facilidade em ter relações casuais – por exemplo – e alguns estudos tentam associar a ocorrência destes tipos de infecções com o surgimento do câncer de próstata. Os resultados são controversos, mas nenhum deles é categórico em afirmar que sífilis, gonorréia, herpes, HPV ou HIV poderiam agir como indutores de câncer na próstata. Por outro lado, alguns achados sugerem que indivíduos que tiveram mais de 20 parceiros sexuais na vida apresentaram risco até 2 vezes maior de evoluir com câncer, comparados àqueles com menos de 20 parceiros.
No lugar de prevenção, dizemos rastreamento: uma busca ativa pelos casos de câncer. Isto porque os resultados de cura e menor morbidade após o tratamento do câncer são melhores quando a doença é descoberta em fases mais iniciais, onde não existem sintomas que levam à suspeita deste problema. Este rastreamento é feito basicamente com o PSA e o toque retal –exame simples, rápido e sem custo, feito no próprio consultório.
Imagine o impacto deste cuidado, sabendo que este é o segundo câncer mais comum e o segundo mais letal em pessoas nascidas com pênis. O rastreamento deve ser realizado anualmente e a partir dos 50 anos em todas as pessoas com próstata – isto inclui travestis e mulheres trans, mesmo aquelas que realizaram cirurgia de redesignação sexual. Pessoas com próstata e que possuem história familiar de câncer devem iniciar este check-up mais cedo, a partir dos 45 anos.
Confira:
Cansei de escutar: “Ah, câncer de próstata não muda nada se a pessoa é hetero, gay, bi ou o que for. A doença é a mesma!”. Aqui preciso discordar completamente.
Sabemos que o nome “Novembro Azul” vem de uma cultura onde “meninos vestem azul e meninas vestem rosa”, deixando de lado toda a nossa diversidade. Embora o câncer seja o mesmo em nível molecular e celular, diversos pontos relevantes são ignorados quando o assunto é o paciente LGBTQIA+ com câncer de próstata. Em uma mulher trans, por exemplo, que tenha passado boa parte da vida sem testosterona e ainda assim desenvolve o câncer, este já poderia ser considerado resistente a hormônios – ou seja – ele aprendeu a crescer mesmo sem o estímulo hormonal necessário aos demais casos. Isto inclusive limita as opções de tratamentos a uma mulher trans, já que a castração química é uma alternativa para homens cis que apresentam câncer de próstata avançado.
A cirurgia, chamada Prostatectomia Radical, é ainda o tratamento mais realizado para a cura do câncer de próstata, seguido pela Radioterapia. Tais tratamentos carregam consigo até 5-8% de chances do surgimento de incontinência urinária (perda do controle de urina) e até 40-50% de chances de impotência sexual (dificuldade em ter ou manter uma ereção firme). Tudo bem que estes problemas acontecem em graus diferentes de severidade e, claro, existem formas de contorná-los, mas ainda assim afeta a qualidade de vida do paciente.
É justamente na sexualidade onde identificamos ainda mais diferenças. Estudos mostram que embora a população LGBTQIA+ apresente resultados melhores de satisfação sexual após o tratamento do câncer de próstata, ao comparar com homens cis heterossexuais, isso seria decorrente de uma mentalidade mais aberta, inovadora, flexível e comprometida com a recuperação desta função. É visto que pessoas que antes praticavam apenas sexo anal insertivo, com a dificuldade em ter ou manter a ereção, passaram a praticar e sentir prazer com o sexo anal receptivo, por exemplo.
Além de historicamente já sofrer com menos acesso à saúde, profissionais da área ainda assumem que o paciente LGBTQIA+ é heterossexual e estes acabam recebendo tratamento heteronormativo. Médicos muitas vezes falham em perguntar a orientação sexual dos pacientes, presumem que não são sexualmente ativos ou, pior, estão despreparados para atender um paciente LGBTQIA+ e entender suas reais necessidades, recebendo-os com preconceito ou falta de acolhimento.
Comparado a homens cis heterossexuais, a população LGBTQIA+ sofre mais com a falta suporte da família e da sociedade de uma forma geral, em especial dos profissionais de saúde. É mais provável, também, que não tenha um relacionamento estável ou não tenha uma rede de amigos bem estruturada – estes pacientes tendem a enfrentar a doença muitas vezes sozinhos.
É importante uma rede de apoio e acolhimento, grupos de discussão e compartilhamento de experiências vividas no enfrentamento do câncer. Já aqueles com parceria fixa devem encarar a doença como uma questão de casal – uma vez que o tratamento pode afetar o bem-estar do paciente e sua parceria. A participação e comprometimento de ambos é necessária para uma melhor recuperação da função sexual.
Independente de gênero ou orientação sexual, o tratamento do câncer de próstata pode reduzir o senso de virilidade, identidade e autoestima. Somados a todos os estigmas sociais, o paciente pode se sentir menos interessante sexualmente por ter uma autoimagem corporal inferior e desconhecer a doença que enfrenta. Imagine uma travesti que perde urina durante o ato sexual; um homem cis gay que não consegue manter uma ereção firme ou tem orgasmo, mas não ejacula mais (a próstata e vesículas seminais, órgãos que produzem o esperma, são removidas durante a cirurgia). Outro ponto quase não discutido é que a remoção da próstata retira, também, uma fonte de prazer sexual, especialmente para pessoas que praticam sexo anal receptivo. Consegue ter ideia de como se sentem?
Não estou afirmando aqui que o tratamento do câncer seja mais prejudicial que benéfico, pelo contrário, precisamos lembrar que este é o segundo câncer mais letal entre pessoas com próstata. No entanto, como este é um tipo de doença indolente (que demora para evoluir), existem situações em que o tratamento definitivo pode ser adiado, aumentando, assim, o tempo com uma qualidade de vida melhor. Isto se aplica em casos bem específicos, para doenças bem iniciais, mas é algo que nem todos conhecem ou tem acesso. E, mesmo tendo indicação inequívoca de tratamento, nossos pacientes precisam ser informados e vistos com a ótica LGBTQIA+, para que as decisões sejam feitas de forma consciente e compartilhada.
Por fim, levanto aqui a minha bandeira: acredito que o Novembro deveria ser de todas as cores. Nós, profissionais de saúde, aprendemos desde cedo os mecanismos moleculares e celulares, a anatomia e fisiologia do corpo humano, mas não aprendemos que há um ser humano por trás disso tudo. E cada pessoa tem a vivência diferente para uma mesma questão de saúde. Cada um tem sua realidade, seja pela sua cor, identidade de gênero, orientação sexual, classe social ou idade. Isto se aplica não somente ao câncer de próstata, mas em todos os transtornos físicos ou emocionais pelos quais passamos. Saúde da população LGBTQIA+: ainda temos muito o que melhorar.
*Marcelo Magalhães é médico urologista
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