Em tempo de pandemia, em que o contato com os amigos se torna menos constante, vale revisitar a “Teoria da Felicidade da Savana”
Guilherme Ravache Publicado em 23/12/2020, às 12h05
Pessoas altamente inteligentes experimentam menor satisfação com a vida quando socializam com amigos com mais frequência. É o que relatam os pesquisadores Norman Li e Satoshi Kanazawa, da London School of Economics do Reino Unido e da Universidade de Administração de Singapura, em artigo publicado no British Journal of Psychology.
Para chegar a essa conclusão, os pesquisadores analisaram as respostas da pesquisa de 15.197 indivíduos com idades entre 18 e 28 anos. Seus dados faziam parte do National Longitudinal Study of Adolescent Health - uma pesquisa longitudinal feita com gerações de adolescentes nos EUA, que mede a satisfação com a vida, inteligência e saúde. A análise desses dados revelou que estar perto de um grande número de pessoas geralmente leva à infelicidade, enquanto a socialização com amigos geralmente leva à felicidade - isto é, a menos que a pessoa em questão seja altamente inteligente.
A dupla propõe a Teoria da Felicidade da Savana. Segundo essa teoria, a felicidade das pessoas não estaria ligada somente aos fatores que a cercam em determinada situação, ou em um dado momento. Mas iria além, envolvendo também fatores ancestrais que podem interagir com a inteligência. Ou seja, milhares de anos de evolução do cérebro ajudaram a moldar nosso comportamento, e como as pessoas mais inteligentes tendem a ter comportamentos e valores “menos” usuais , acabam encontrando menos felicidade no grupo. Por outro lado, as pessoas menos inteligentes tendem a seguir com mais facilidade o comportamento do grupo e se sentem mais recompensadas pelas relações de amizade, a exemplo dos ancestrais na savana.
Conhecido como o Princípio da Savana, a hipótese do legado evolutivo ou a hipótese da incompatibilidade, esta observação sugere que o cérebro humano tem dificuldade em compreender e lidar com entidades e situações que não existiam no ambiente ancestral, nos tempos em que habitamos a savana africana durante a Época Pleistocena.
O Princípio da Savana pode explicar, ainda, por que algumas teorias científicas elegantes do comportamento humano, como a Teoria dos Jogos, frequentemente falham ao serem aplicadas nas pessoas. Basicamente, porque postulam entidades e situações que não existiam no ambiente ancestral. Por exemplo, quase metade dos jogadores do Dilema do Prisioneiro (usado para exemplificar a teoria) fazem a escolha teoricamente irracional de cooperar com seu parceiro, em vez de traí-lo. O Princípio da Savana sugere que isso pode ser possível porque o cérebro humano tem dificuldade em compreender a troca social completamente anônima e absolutamente nenhuma possibilidade de conhecer as interações futuras (que, juntas, tornam o jogo verdadeiramente único, e a deserção a única escolha racional). Nenhuma dessas situações existia no ambiente ancestral, onde todas as trocas sociais eram pessoais e potencialmente repetidas; no entanto, elas são cruciais para a previsão teórica do jogo da deserção universal.
“Escolhemos dois fatores variados que caracterizam as diferenças básicas entre a vida ancestral e a vida moderna - densidade populacional e frequência de socialização com amigos - como casos de teste empíricos”, escrevem os pesquisadores. E segundo eles, conforme previsto pela teoria, a densidade populacional é negativa e a frequência de socialização com amigos é positiva, associada à satisfação com a vida. Mais importante, as principais associações de satisfação com a vida com densidade populacional e socialização com amigos interagem significativamente com inteligência e, neste último caso, a principal associação é revertida entre os extremamente inteligentes. Indivíduos mais inteligentes experimentam menor satisfação com a vida com socialização mais frequente com amigos. Ou seja, quanto mais inteligente, maior a tendência a ser infeliz em meio a um grande grupo.
O estudo também revela que pessoas mais inteligentes acreditam se beneficiar menos das amizades. E mais, escrevem os pesquisadores: “Acredita-se que a inteligência tenha evoluído como um mecanismo psicológico para resolver novos problemas - o tipo de desafios que não faziam parte da vida normal. Para nossos ancestrais, o contato frequente com amigos e aliados era uma necessidade que lhes permitia sobreviver. Ser altamente inteligente, no entanto, significava que um indivíduo tinha mais chances de resolver problemas sem a ajuda de outra pessoa, o que, por sua vez, diminuía a importância de suas amizades”.
Uma das questões recorrentes é por que as pessoas nas grandes cidades parecem cada vez mais infelizes mesmo tendo mais dinheiro e melhores condições de vida em geral. Ao aplicar a Teoria da Felicidade da Savana, somos lembrados que nosso cérebro, por milhares de anos, nunca teve de lidar com grupos superiores a 150 pessoas. O tamanho típico das aldeias neolíticas na Mesopotâmia era 150–200; o tamanho médio das comunidades agrícolas huteritas no Canadá é 107; e o tamanho médio das paróquias Amish no centro da Pensilvânia é 112,8. O tamanho típico da unidade militar no exército romano clássico era de 120-130, e o tamanho médio da companhia de exércitos na Segunda Guerra Mundial era de 180.
Ou seja, como nas savanas os grupos dificilmente superavam 150 pessoas e nos adaptamos a isso, agora o cérebro sofre para administrar grupos maiores. “Como a principal restrição no tamanho do grupo humano é cognitiva, é possível que, à medida que a densidade populacional se torna muito alta, o cérebro humano se sente inquieto e desconfortável, e tal mal-estar e desconforto podem se traduzir em reduzido bem-estar subjetivo”, escrevem os pesquisadores.
Outra possibilidade levantada pelos pesquisadores é que as cidades tendem a reunir, na média, indivíduos com maior média de inteligência, porque os indivíduos mais inteligentes são mais capazes de viver em ambientes “não naturais” de alta densidade populacional.
Importante dizer: isso não significa que se você tem muitos amigos é mais ou menos inteligente. O que o estudo aponta é que os solitários não necessariamente são mais tristes e podem até ser mais felizes assim. Um dado fundamental em uma sociedade e em muitos livros de autoajuda que parecem fazer da felicidade não apenas um estado, mas uma obrigação.
*Este texto é opinativo e não expressa necessariamente a opinião do Doutor Jairo Bouer
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