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Quase 80% dos assassinatos de trans envolvem requintes de crueldade

Brasil teve três vezes mais assassinatos que o México, segundo lugar da lista - iStock
Brasil teve três vezes mais assassinatos que o México, segundo lugar da lista - iStock

Redação Publicado em 29/01/2021, às 19h43

Em 2020, o Brasil manteve sua posição de líder no ranking dos assassinatos de pessoas trans no mundo. Segundo dossiê divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) neste Dia Nacional da Visibilidade Trans (29), foram contabilizados 175 assassinatos de pessoas transgênero, ou seja, que expressam gênero diferente ao que foi designado no nascimento.

Desse total, 77% dos casos envolviam requintes de crueldade, como espancamento, introdução de objetos no ânus, esquartejamento e mutilação dos corpos, o que deixa claro que se trata de crimes de ódio. A maioria dos suspeitos não tinha relação com a vítima, segundo o levantamento.  

De acordo com o projeto de pesquisa Trans Murder Monitoring (TMM), o Brasil tem sido o país que mais reporta assassinatos de pessoas trans no mundo desde o início do levantamento. No ano passado, nosso país teve quase três vezes mais casos que o México, segundo da lista, e quase seis vezes mais que os EUA.

Aumento de 41%

Em relação a 2019, houve um aumento de 41% no total de homicídios. O número mais recente é o segundo maior desde que a Antra começou a realizar os registros. Apenas em 2017 esse valor foi mais alto, com 179 assassinatos.

O estado com maior registro de homicídios de mulheres trans em 2020 foi São Paulo. Em seguida aparecem Ceará, Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A região com maior concentração de casos é o Nordeste, com 43% das mortes.

De acordo com o levantamento, dos 109 assassinatos em que foi possível identificar a idade das vítimas, 56% tinham entre 15 e 29 anos, 28%, entre 30 e 39 anos, 7%, entre 40 e 49 anos, e 8%, entre 50 e 59 anos. A maior parte das vítimas eram pretas ou pardas (78%) e 90% atuavam na prostituição.

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Gênero é fator determinante

O documento aponta que os suspeitos muitas vezes alegam terem sido vítimas de roubo ou extorsão, justificativas que têm sido aceitas por policiais e pelo sistema de justiça. Como mostra um depoimento publicado no dossiê: “Eles acham que travesti tá aqui pra sair com eles de graça. E como sabem que ninguém se importa, eles matam mesmo. Porque quem se importa com a gente né?”.

A associação diz que não foram encontradas informações de assassinatos de homens trans ou pessoas transmasculinas este ano, o que “reafirma a perspectiva de gênero como fator determinante para essas mortes”.

Em 2020, ainda foram registradas 77 tentativas de homicídio em relação à população transgênero no país, sendo que todas eram mulheres trans ou travestis. São Paulo, Bahia e Santa Catarina foram, respectivamente, os estados com maiores números de casos.

Entre o ódio e o desejo

O dossiê traz um capítulo em que reúne informações divulgadas por sites pornô nos últimos anos, para revelar “o paradoxo de viver entre o desejo e o ódio em relação às travestis e transexuais”.

O primeiro ano em que o  RedTube  colocou o Brasil como o país que  mais consome pornografia com pessoas trans foi em 2016. "Desde então, estivemos sempre presentes na lista e permanecemos na liderança de outros sites internacionais como o maior público para esses vídeos", dizem as autoras.

Buscas por termos como shemale, transgender, brazilian shemale e ladyboy aparecem na liderança dessas plataformas em todos os países, segundo a Antra. "No Brasil, alguns vídeos chegam a mais de 920 mil visualizações no RedTube, 14.5 milhões no PornHub e outros quase 45 milhões no XVideos, com buscas pelos termos travesti, travesti brasileira e suas variações".

De acordo com o relatório de 2018 do PornHub, a busca mundial por  pornografia trans aumentou 167% entre homens e mais de 200% entre os visitantes acima dos 45 anos. Já em 2019, o Brasil ocupou a 11ª posição em acessos na plataforma, com um crescimento surpreendente de 98% na tendência de busca pelo termo transgender — o número mais alto em todo o mundo.

“Existe um processo histórico de hipersexualização e fetichização em relação aos corpos trans, lidos como fantasia, sem subjetividade, vontade ou desejo, mas sempre à disposição para quem nos procura. Muitas vezes objetos de desejo, esses corpos causam simultaneamente repulsa entre quem se percebe compelido a buscá-los ou cogitar envolvimento, afetivo ou sexual, com pessoas trans”, relata o documento.

Suicídios

Em 2020, foram catalogados 23 casos de suicídio, sendo sete homens trans/transmaculinos e 16 travestis/mulheres trans. Em 2019, dos 15 casos de suicídios mapeados, cinco eram homens trans/transmasculinos e 10, travestis e mulheres trans.

Assim como nos índices de assassinato, as travestis e mulheres trans também se destacam em relação aos suicídios, "apesar de serem os homens trans/transmasculines que mais apresentam ideações ou tentativas”.

Subnotificação

A Antra chama a atenção, logo no prefácio, para a existência da subnotificação, tanto de casos de suicídio quanto de homicídios, e ausência de dados governamentais.

Como não há dados demográficos sobre a população trans brasileira, o levantamento, que segue metodologia da ONG Transgender Europe, é feito de forma quantitativa, a partir de pesquisa dos casos em matérias de jornais e mídias vinculadas na internet, de forma manual, individual e diária. Também são utilizadas informações que chegam através de instituições LGBTI ou pela rede de afiliadas da Antra e parceiros.

Pandemia

Além de reportar o aumento da violência a trans que exercem cargos políticos e de ataques transfóbicos nas redes sociais, o dossiê da Antra também critica a ausência de ações para diminuir a vulnerabilidade da população trans diante da Covid-19.

O relatório explica que essas pessoas já têm dificuldade de acessar os serviços de saúde porque há despreparo dos profissionais. Além disso, questões como o uso de álcool, tabaco e outras drogas, inflamações por uso de silicone industrial, uso de hormônios sem acompanhamento médico e prevalência de HIV tornam esse grupo mais suscetível.

“Muitas dessas [pessoas] tiveram dificuldades de deixar o trabalho da prostituição nesse período de pandemia por conta de não ter reservas para o seu sustento longe do trabalho, e as campanhas de arrecadação de donativos supriram uma parte dessa necessidade, mas não conseguiu atingir a toda população”, comenta a presidenta da Antra Keila Simpson Sousa.

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