Severance trata da ruptura entre a vida pessoal e o “eu” laboral

Nova série traz um cenário sinistro em que os funcionários têm separadas as suas memórias pessoais e de trabalho

Fausto Fagioli Fonseca Publicado em 28/04/2022, às 16h00

A corporação Lumen implementa no cérebro dos funcionários um microchip capaz de separar as suas memórias em “caixinhas” - Divulgação

A série estadunidense Severance (Ruptura, em português), lançada em fevereiro deste ano pela Apple TV+, é uma das mais aclamadas pelo público e pela crítica em 2022. Dirigida por Ben Stiller e com nomes de peso, como Adam Scott, John Turturro, Christopher Walken e Patricia Arquette no elenco, o thriller distópico se passa nas Indústrias Lumen. Lá, um programa de “ruptura” é usado para separar as memórias dos funcionários entre memórias de trabalho e memórias pessoais.

Para tal, a corporação de biotecnologia usa um procedimento cirúrgico em que implementa no cérebro dos funcionários um microchip capaz de separar as suas memórias em “caixinhas”. Assim, quando estão nas dependências da indústria, os trabalhadores não têm nenhuma memória externa, formando uma persona interna (inner). Já quando estão fora, vivem suas vidas normais como persona externa (outie).

Assim que adentram a empresa, os funcionários têm de guardar seus pertences (como carteira, relógio e celular) em um armário. Então, no elevador que leva aos andares superiores, há um processo de mudança de personalidade (ruptura), com a persona interna “tomando o controle” do corpo. Assim, o inner assume a responsabilidade pelas demandas de trabalho enquanto o outie (e suas memórias externas) fica suprimido.

Choque de dois mundos

A série gira em torno de Mark Scout (Adam Scott), que sofreu um grande abalo após a morte de sua esposa. Com dificuldade para lidar com o sentimento de luto causado pela perda, Mark decide fazer parte do experimento das indústrias Lumen buscando, assim, uma forma de suprimir a dor, ainda que de forma temporária já que, apesar de o seu inner não se lembrar de nada do mundo exterior, seu outie segue experimentando um sentimento de profunda depressão.

O que começa como uma proposta de avanço social, com a possibilidade de os funcionários não misturarem os problemas relacionados ao trabalho com as suas vidas pessoais, porém, se mostra problemático (e sinistro). Afinal, ainda que as personas externas sigam vivendo (aparentemente) as suas vidas normais sem nenhuma interferência do trabalho, as internas se veem presas dentro da empresa sem a possibilidade de experienciarem qualquer coisa relacionada ao mundo exterior. São, portanto, prisioneiras ou, por que não, escravas daquele sistema.

No ambiente de trabalho, o foco é no Departamento de Microdados, onde Mark trabalha com outros dois parceiros, Dylan (Zach Cherry) e Irving (John Turturro). A equipe contava com mais um funcionário, o líder da equipe Petey (Yul Vazquez), que misteriosamente é demitido de um dia para o outro. Para cobrir a falta de Petey, Helly (Britt Lower) é contratada, passando, logo na cena inicial da série, por um questionário teoricamente simples, mas do qual ela não sabe as respostas (como o seu nome e a cor dos olhos de sua mãe). É seu inner que estamos vendo.

Helly é integrada e Mark é promovido a líder da equipe. Enquanto acompanhamos o time de refinamento de microdados, cuja função é bastante misteriosa (eles têm de selecionar números aleatórios em uma tela com base em sua aparência e refiná-los), não temos a perspectiva de outros departamentos, apesar de a empresa aparentar contar com muitos funcionários (o estacionamento está sempre repleto de carros).

Nas dependências da Lumen, os corredores são como labirintos, longos e totalmente brancos, sem janelas para o mundo exterior. Basicamente, os trabalhadores vivem dentro de uma sala com acesso extremamente restrito à interação com outras pessoas. 

Além dos quatro trabalhadores de microdados, de início, temos conhecimento de outras duas pessoas da Lumen: Milchick (Tramell Tillman), um rigoroso e sinistro supervisor, e da ainda mais sinistra Harmony Cobel (Patricia Arquette), que é uma espécie de chefe geral da empresa.

Ficção ou realidade?

Mark vive em um condomínio alocado pela Lumen e tem dificuldades em lidar com a perda de sua esposa. A sua irmã, Devon (Jen Tullock), parece ser a única pessoa com quem divide uma maior intimidade. O protagonista leva uma vida solitária, monótona e vazia; enquanto outie, não consegue se desvencilhar do sofrimento que torna a sua “vida exterior” um labirinto tão sufocante quanto o interior da Lumen.

A partir dessa premissa, a série se desenvolve entre as duas personas de Mark e entre os conflitos internos e externos dos personagens, aprofundando-se de forma tão sufocante quanto instigante em um emaranhado de enigmas que apenas começarão a ter explicação nos últimos episódios da primeira temporada.

Severance não é apenas uma série de ficção científica descolada da realidade. Ainda que o microchip de alternância de personas não exista (por enquanto) no mundo real, as problemáticas decorrentes deste procedimento apresentadas pela série têm uma sinergia assustadora com o mundo concreto.

Afinal, além da frágil noção de ética da nossa sociedade, o que impede que a tecnologia desenvolvida por grandes entes privados não seja cada vez mais usada não para atender interesses comuns, mas para suprir interesses individuais ou de determinados grupos, fazendo, assim, como que a exploração do trabalho seja contínua mesmo em um cenário de avanço tecnológico e de automação? 

Sem uma rigorosa mudança de perspectiva social, o ambiente proposto pela série soa mais como um vislumbre aterrador de um futuro não tão distante da nossa realidade, ainda que sem o viés ficcional tão acentuado, do que uma simples fábula televisiva…

Alienação laboral e sofrimento psíquico

Para concluir, pego emprestado um trecho da colunista Thatiana Cappellano, relações públicas especializada em semiótica psicanalítica e mestre em ciências sociais em um artigo neste mesmo site intitulado “Saúde mental e trabalho: pimenta nos olhos dos outros é refresco”.

... os trabalhadores de chão de fábrica [diga-se de passagem, uma expressão bastante pejorativa no mundo corporativo] sempre estiveram expostos a uma forte sobrecarga psíquica, uma vez que seus corpos e suas mentes foram historicamente forçados à adaptação frente à realidade fabril – que é hostil por sua natureza altamente prescrita, ou seja, violentamente organizada, programada, quantificada, objetificada e determinada (...) não é apenas o corpo que se molda ao ritmo das máquinas; é, também, no limite, a mente que colapsa em virtude do confronto com a produtividade ilimitada almejada pelo sistema econômico.”

Na Lumen, os inners, que não estão literalmente no chão de fábrica, mas têm, objetivamente, uma experiência laboral completamente alienada, experienciam um cenário ainda mais sufocante, afinal, a única realidade com a qual têm contato é esta “organizada, programada, quantificada, objetificada e determinada”, sem nenhum acesso a experiências relacionadas ao mundo exterior. 

Apesar de terem corpos físicos, emoções e uma mente funcional (ainda que sem a memória externa), são tratados como máquinas, cuja única função é o cumprimento do dever laboral. O que recebem em contrapartida? Nada além de um acesso restrito a uma máquina de snacks e a prêmios irrisórios, como bugigangas, além de, eventualmente, serem “premiados” com waffles e frutas.

Os trabalhadores da Lumen têm invisibilizados os seus sentimentos, os seus desejos e as suas ideias; servem, apenas, para refinar os dados sem nenhuma possibilidade de saírem do labirinto do trabalho que executam - e, inevitavelmente, eles colapsarão.

trabalho série Severance

Leia também

Sobrecarregar o cérebro não faz mais sentido, é preciso descansar


Estresse ocupacional e burnout: qual a diferença?


Saúde mental das profissionais brasileiras não vai bem, aponta pesquisa


5 sintomas comuns do burnout