Só uma picada de abelha pode matar, como na série Bridgerton?

As abelhas que mais causam reações alérgicas são a Apis melífera (Abelha Europeia) e a Bombus terrestris

Cármen Guaresemin Publicado em 15/04/2022, às 11h00

Entre 2010 e 2021 foram registrados 157.891 ataques de abelhas, sendo que 454 pessoas morreram - iStock

Quem assistiu à série Bridgerton, da Netflix, deve ter se impressionado com a cena na qual o patriarca da família, que dá nome à atração, é picado por uma abelha e, em poucos minutos, morre. Isso seria ficção ou real? Para pessoas alérgicas, a reação à uma ferroada pode ser mais intensa, podendo até mesmo ser fatal se ocorrer anafilaxia, reação alérgica generalizada, de instalação rápida e que pode ser mortal, como visto no episódio.

Existem mais de 400 espécies de abelhas no planeta. No Brasil, são cerca de 300, sendo o país com a maior diversidade de ASF (abelhas sem ferrão) do mundo. Alexandra Sayuri Watanabe, Coordenadora do Departamento Científico de Imunização da Asbai (Associação Brasileira de Alergia e Imunologia), conta que as abelhas que mais causam reações alérgicas são a Apis melífera (Abelha Europeia), que é a que produz mel, e a Bombus terrestris, maior e mais encontrada em áreas de mata.

No Brasil temos abelhas europeias africanizadas. Primeiro, trouxeram as da Europa para produzirem mel. Porém, como a produção não era muito grande, por volta de 1950 trouxeram outras da África para o interior de São Paulo. Porém, ocorreu um acidente, elas escaparam e começou um processo de africanização das que já estavam aqui. Hoje temos abelhas europeias africanizadas, que herdaram o comportamento agressivo das africanas”, explica Alexandra.

Nos últimos anos, os ataques de abelha têm crescido no país. Entre 2010 e 2021 foram registradas 157.891 ocorrências, sendo que 454 pessoas morreram, segundo o Datasus. Para se ter uma ideia, só em março de 2022, foram cinco vítimas fatais. Segundo especialistas, isso acontece porque as abelhas estão migrando do campo para as cidades. Os motivos para esta migração são o uso de agrotóxico, o grande desmatamento e a falta de flores que forneçam néctar e pólen. Nos meses mais quentes, essa mudança aumenta ainda mais.

“O que nós, médicos, sabemos é que abelhas têm ninhos e, quando eles crescem, elas se mudam para formar novas colmeias. Nesta saída, com a nova rainha, elas podem encontrar pessoas no caminho e acontecerem incidentes. E, claro, a urbanização está invadindo os espaços delas. Não tem jeito, elas têm um comportamento agressivo e podem perseguir uma pessoa por até cerca de 800 metros”, afirma Alexandra.

Dores e reações alérgicas

Sentimos dores quando somos picados pelas abelhas porque elas liberam uma substância chamada melitina que ativa receptores de dor na pele.

Ocorre também inchaço e vermelhidão devido à histamina presente no veneno, que causa vasodilatação e coceira”, explica a médica Camila Benatti, alergologista do Hospital Albert Sabin (HAS).

Ela conta que as reações vão desde lesões no local da picada até sistêmicas, como urticária, sintomas respiratórios (falta de ar, chiado no peito), gastrointestinais (náusea, vômitos, dor abdominal) e cardiocirculatórios (taquicardia, pressão baixa, perda de nível de consciência). Em alérgicos pode ser fatal, mesmo se forem picados por somente uma abelha.

Alexandra acrescenta que o veneno da abelha tem vários componentes com propriedades diferentes. Alguns desencadeiam reações alérgicas, outros lesão das células e alguns podem se ligar a receptores de dor.

Podemos ter reação alérgica a algum componente que pode provocar respostas locais extensas, provocando inchaço e vermelhidão. E pode haver reações sistêmicas, como anafilaxia, que causam falta de ar, chiado, tosse e o acometimento do sistema cardiovascular, provocando desmaio, perda da consciência e quedas”, afirma.

Não é ficção

Cena em que Edmundo Bridgerton morre nos braços da mulher e do filho mais velho após ser picado / Netflix

Bridgerton se passa entre 1813 e 1827, quando a medicina era precária, mesmo para os nobres. Portanto, não havia como socorrer Edmund Bridgerton com rapidez. Mas será que no mundo atual uma pessoa alérgica poderia ser salva?

“Provavelmente, na série, ele foi picado pela Apis melífera. E, sim, com apenas uma ferroada um indivíduo pode morrer. Uma pessoa sensibilizada precisa formar anticorpos. Quando este tipo de reação ocorre, é porque, provavelmente, a pessoa já havia sido picada e não houve nada. Porém, desde então, o organismo começou a montar uma resposta IgE específica contra algum componente do veneno (a imunoglobulina IgE, por ser determinante de reações alérgicas, atua no combate de substâncias responsáveis por desencadear alergias constantes no organismo). Em uma próxima picada, mesmo uma só - até brinco com pacientes, falando que meia ferroada basta - pode desencadear uma reação sistêmica”, exemplifica Alexandra.

Ela diz que reações anafiláticas são imprevisíveis e que toda ferroada tem chance de provocar o problema. Em adultos que já passaram por isso, são 60% de possibilidade de se repetir a reação anafilática. E não há como saber se será grave ou não. “O que sabemos é que quanto mais se retarda o uso da adrenalina, maior o risco de a reação ser grave. O atendimento tem de ser muito rápido. Por isso, pessoas que já tiveram problemas são orientadas a portar uma caneta de adrenalina, pois, em caso de novo incidente, elas mesmas podem aplicar”.

Se a pessoa for socorrida de forma adequada e imediata, pode, sim, ser salva mesmo em caso de anafilaxia. Hoje há disponível a adrenalina autoinjetável, sendo prescrita a pacientes já diagnosticados. E se a pessoa for encaminhada a um serviço de emergência, o quadro pode ser tratado”, afirma Camila.

Enxames ou sozinhas

Alexandra explica que há dois tipos de reações sistêmicas, a tóxica e a alérgica (anafilaxia). Na primeira, dependendo da quantidade de veneno injetado no organismo, ela só ocorre se uma pessoa recebe múltiplas ferroadas. Na segunda, alérgica, independe de quantidade.

Como o mais comum é sermos picados por uma abelha e não haver uma grave reação, mas ficar dor e inchaço, Camila indica, se ocorrerem somente lesões locais, o uso de anti-histamínico e corticosteroide via oral. Em pacientes que tiveram reações sistêmicas graves, ela indica a imunoterapia para dessensibilização, que é realizada com base em uma vacina de alérgenos, os mesmos que causam a alergia naquela pessoa. Ela eleva a imunidade do indivíduo para que este apresente menos sensibilidade àquela substância.

Alexandra diz que temos de diferenciar as reações. No caso da alérgica, temos um tratamento específico: imunoterapia veneno específica, em que tentamos fazer com que o organismo comece a tolerar o veneno. “Tentamos modular o sistema imune para que o anticorpo não cause uma reação sistêmica. Deve ser feita com acompanhamento de especialista. É um tratamento longo (3 a 5 anos) e de custo elevado”.

No caso de a pessoa ser picada por várias abelhas ao mesmo tempo, Camila explica que, quando isso ocorre, há uma reação tóxica devido à quantidade de veneno inoculado, causando hemólise (destruição dos glóbulos vermelhos do sangue), alterações neurológicas, como torpor e coma, hipotensão arterial e insuficiência renal aguda. E o atendimento médico deve ser imediato.

Pesquisadores do Centro de Estudos de Venenos e Animais Peçonhentos da Unesp (Universidade do Estado de São Paulo) estão desenvolvendo um soro antiapílico, porém, Alexandra explica que ele servirá para reações tóxicas, neutralizado o veneno, e não terá relação com a parte alérgica.

O que fazer em caso de ataque?

A recomendação em caso de ataque de abelhas é se afastar imediatamente do local e quando estiver longe delas remover os ferrões com uma lâmina. No caso de pessoas alérgicas ou se forem muitas picadas, chamar serviço de emergência médica o quanto antes”, aconselha Camila.

Alexandra diz que as abelhas tentam se proteger liberando um tipo de feromônio que atrai as demais. Assim, o jeito é correr e se fechar em algum local: “Trancar-se em um cômodo, fechar janelas e portas. Se estiver na natureza e tiver chance, pule em um rio ou lago. Fumaça também as afasta, mas é difícil consegui-la rapidamente, a menos que tenha um extintor por perto”.

Ela também enfatiza que as abelhas são muito importantes para o planeta. E aconselha o que nunca se deve fazer em relação às abelhas: provocá-las ou mexer em um ninho, pois ao se sentirem ameaçadas, elas atacam. “Nunca faça isso, se surgir uma colmeia onde você mora, peça ajuda a pessoas especializadas”, finaliza.

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