Sofrer pela morte de um pet é exagero? Especialistas respondem

Quando a convivência com o pet é intensa, sua perda também pode ser bastante difícil

Cármen Guaresemin Publicado em 03/07/2021, às 12h00

Quando a convivência com o pet é intensa, perdê-lo pode ser tão difícil quanto ficar sem uma pessoa próxima - iStock

Os animais de estimação, a cada dia, tornam-se mais e mais próximos de nós, humanos. Em tempos de pandemia, como agora, em que é preciso ficar isolado fisicamente, muitas pessoas que moravam sozinhas pensaram em adotar um pet. Motivos para isso não faltam: além de combater a solidão, essa convivência traz vários benefícios para a saúde física e mental. E, para muita gente, o novo companheiro vira um membro da família.

Para quem não se apega muito a animais, esse status pode ser considerado um exagero. Já para quem tem ou já teve um bicho querido, não causa estranhamento ver amigos ou até famosos se abalarem com a morte de um pet e publicar homenagens nas redes sociais, como se faz quando parentes ou amigos (humanos) morrem. Até o presidente dos EUA Joe Biden cumpriu o ritual no mês passado, ao perder seu cão mais velho, Champ, que tinha 13 anos.

Houve comunicado oficial na Casa Branca sobre o acontecimento, bem como um post emocionado de Biden e sua mulher no Twitter: “Em nossos momentos mais alegres e em nossos dias de maior tristeza, ele estava lá conosco, sensível a todos os nossos sentimentos e emoções não ditos”. O fato de ter enfrentado a morte da primeira mulher e da filha, ainda bebê, num trágico acidente de carro, e a do filho mais velho, para o câncer, não tornou Biden imune à dor de perder um bicho

Para a veterinária e terapeuta Melanie Marques, perder um companheiro de quatro patas pode, sim, ser levado tão a sério quanto perder um ente querido. Ela explica que rituais de passagem, como velar o corpinho, se despedir, homenagear aquele que dedicou a vida a amar e brincar com o tutor, pode minimizar a dor, dando um espaço para a morte ser compreendida e um tempo para ser elaborada pela família. “Inclusive as fases do luto, como negação, raiva e aceitação, por exemplo, são completamente normais quando se refere à perda de um animal”, diz.

Ela mesma perdeu recentemente uma cadela Akita de 17 anos, que viu nascer, quando tinha 20 anos. “Convivi minha vida adulta inteira com ela. Quando comuniquei a partida às pessoas, o que mais ouvi foram frases como ‘ah, ela era velhinha, né?’, ‘ficarão as boas lembranças’, ‘parou de sofrer e está em um lugar melhor’. Ouvi, basicamente, as mesmas frases de quando perdi minha mãe. Isso confirma, para mim, o quanto existe de semelhança entre os processos de luto”.

Our family lost our loving companion Champ today. I will miss him. pic.twitter.com/sePqXBIAsE

— President Biden (@POTUS) June 19, 2021

Lugar na sociedade

Para o psicólogo Aurélio Melo, professor e pesquisador nas áreas de psicologia do envelhecimento, psicologia do luto e psicologia da morte, o luto por um animal de estimação não é um exagero, se você considerar o lugar que ele ocupa hoje na sociedade, ainda mais com tanta gente que mora sozinha com um ou mesmo com vários deles.

“O luto pela perda é consequência do lugar em que se coloca o animal. Não se pode esperar algo diferente, se você o trata como membro da família. Portanto, quando ele morre, a perda será igual ou superior à de um humano, isso porque o que caracteriza o sofrimento do luto é a relação que temos com o ser que perdemos”, conta ele.

Para a psicóloga e mestre em antropologia social Bárbara Snizek Ferraz de Campos, a dor de cada sujeito é particular e não pode ser interpretada a partir do senso comum ou das experiências de outras pessoas. O laço que cada um cria com o animal de estimação pode estar estabelecido dentro de variadas nuances e intensidades. Não cabe determinar um padrão de normalidade ou dizer o que está certo ou errado.

“Quando a convivência com o pet é intensa, a vivência da perda também pode ser bastante difícil e dolorosa. Afinal, o laço estabelecido era de muita importância. Sim, há quem ache exagero, pois algumas pessoas não têm grande apego por animais. Sendo assim, apresentam mais dificuldade para entender o vínculo que alguns estabelecem com os pets”, diz ela.

A pessoa que cresceu com um pet não vai esquecê-lo, porque ele foi o primeiro objeto de amor dela - iStock

O primeiro amor

Na opinião de Melanie, o amor de um pet preenche lacunas invisíveis na vida do tutor e, geralmente, os sentimentos estão mais ligados à infância, aquela parte pouco conhecida que fica guardada no inconsciente da pessoa: "O animal pode suprir o afeto ou a presença de uma mãe ou um pai, pode simular os cuidados que a pessoa teria com um filho que ela não pôde ter, ou preencher o vazio de um casamento que vai mal ou as lacunas de uma solidão desconhecida pela própria pessoa."

A psiquiatra Tânia Alves, coordenadora do Ambulatório de Luto do IPq – Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, usa o termo “objeto de amor” ao falar sobre luto. Ela explica que a dor da perda não precisa ser necessariamente por um ser vivo, pode até mesmo ser um objeto que represente algo muito importante para a pessoa, e essa perda também trará dor.

“O luto precisa ser vivido, em todas as etapas, e a gente nunca esquece aquele objeto que amou. A pessoa que cresceu com um animal de estimação não vai esquecê-lo, porque ele foi o primeiro objeto de amor dela. Foi a primeira vez em que ela se sentiu segura para falar eu te amo”, diz Tânia.

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Heresia?

Seria uma heresia comparar a perda de um humano com a de um animal de estimação? Para Bárbara, é importante observar como cada um se relaciona com o animal que morreu. Só assim é possível avaliar o impacto da perda que, em alguns casos, será muito sofrida e dolorosa. No caso da morte de entes queridos, poder viver os rituais é algo que ajuda a enfrentar o luto.

“No caso dos pets, estão surgindo locais e serviços também apropriados para esses rituais, como cremação, homenagens e outros, o que tende a ajudar as pessoas a passarem por esse momento da perda e ainda deve contribuir para mudar a visão da sociedade sobre o luto de um pet”, acrescenta Bárbara. 

Melo aponta que quando alguém sofre mais com a perda de um animal do que com a de uma pessoa, muitos interpretam isso como desprezo pelo ser humano. E cita a frase “quanto mais conheço os homens, mais admiro os animais”, atribuída ao poeta português Alexandre Herculano, muito ouvida em vários momentos, como um argumento de quem prefere os bichos.

“O grau de intensidade da dor ao se perder um objeto de amor é diretamente proporcional ao grau de amor investido e construído naquele vínculo. Essa medida é subjetiva e pode atingir alta intensidade. Se para uma pessoa o gato é um filho, a perda dele é como a perda de um filho. Se o cão for como um amigo, a perda é como se tivesse perdido um amigo”, exemplifica Tânia.

Bárbara lembra outro ponto, quando é preciso tomar a difícil decisão de se praticar a eutanásia em um animal que esteja sofrendo e sem perspectiva de sobreviver. Ela diz que esta decisão, apesar de correta, gera um grande sentimento de culpa: “É importante considerar o bem-estar do animal nesse momento. A eutanásia é uma das maneiras de oferecer um final de vida com o menor sofrimento possível para o pet tão amado e, portanto, também pode representar uma atitude de amor”.

Se para uma pessoa o  gato é um filho, a perda dele é como a perda de um filho

Quando é preciso procurar ajuda

Um ponto em comum para todos os entrevistados é que alguém que fica muito tempo de luto, seja pela morte de um ser humano ou de um animal de estimação, precisa procurar ajuda. Para Bárbara, o primeiro passo é entender que o processo do luto é necessário e faz parte da vida, quando há uma perda de alguém querido e importante. Se, após algum tempo, a pessoa não apresentar sinais de elaboração dessa perda, é recomendável buscar ajuda de profissionais de saúde mental. 

Melo afirma que se costuma falar em meses para uma pessoa superar uma perda. Porém, lembra que o luto é um fenômeno universal, que varia de cultura para cultura e de pessoa para pessoa. Há critérios, parâmetros e limites. “A partir do momento em que a pessoa não retoma a rotina, para de produzir a vida – trabalhar, estudar, se comunicar –, ou seja, fica deprimida, improdutiva, é hora de procurar ajuda profissional de um psicólogo ou até mesmo de um psiquiatra, pois às vezes é necessário o emprego de medicamentos”.

Ele também lembra que testemunhou casos de pessoas que perderam um cachorro e, dois dias depois, procuraram um igual para tentar não sentir a perda, o que ele considera pouco saudável.

Luto & catarse

Cerimônias têm sido mais rápidas, especialmente agora, com a pandemia - iStock

Melo, que é especialista em luto, diz que se trata de um fenômeno psicossocial, presente em todas as culturas e em diferentes momentos na história do mundo. Ele cita o mito de Antígona, que brigou pelo direito de enterrar o irmão Polinices, como um dos exemplos mais antigos da importância dos rituais de despedida.

Para ele, há uma questão do ritual fúnebre, da perda, do luto, que é fundamental para a liberação da catarse, da descarga emocional, da diminuição das tensões e do sofrimento. E ele cita Philippe Ariès, historiador francês que escreveu um importante estudo sobre a morte, que apontava que um dos problemas das sociedades modernas é o esvaziamento dramático dos rituais fúnebres, com cerimônias mais rápidas e superficiais. O que vem ocorrendo especialmente agora, na pandemia. Para Ariès, isso esvazia a carga dramática dos rituais, o que dificulta ao indivíduo elaborar emocionalmente a perda.

“Os rituais fúnebres são fundamentais para o bom desenvolvimento do luto, para que ele tenha começo, meio e fim, fazendo o trabalho de nos ajudar a nos separar do ser que perdemos. Eu diria que estamos em um momento ruim da humanidade, quando as pessoas precisam se apressar a enterrar os mortos”, finaliza o psicólogo.

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