"Trabalhar com pessoas trans me ajudou a entender mais o ser humano"

Psicóloga Desirèe Cordeiro conta o que tem aprendido com pacientes transgênero

Redação Publicado em 27/01/2021, às 15h00

Desirèe Cordeiro é responsável pelo atendimento de adolescentes trans em ambulatório do HC-SP - Arquivo Pessoal

Questões como "quem sou eu", "como as pessoas me veem", ou "o que as pessoas querem que eu seja" são frequentes na vida de qualquer ser humano, ainda mais na adolescência, uma fase difícil por natureza. Mas nada se compara aos desafios enfrentados por pessoas transgênero, ou seja, que não se identificam com o sexo biológico (reconhecido ao nascimento). 

"Todo mundo passa por uma questão de identidade. Mas a pessoa trans tem que ir além dessa questão", afirma a psicóloga Desirèe Cordeiro, responsável pelo atendimento de adolescentes no Amtigos (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do IPq/HCFMUSP). 

Nova colunista deste site, Desirèe conta, nesta entrevista, que trabalhar com a população transgênero lhe trouxe ensinamentos importantes para a profissão e para a vida, como a capacidade de enxergar o ser humano não apenas com o que os olhos veem, mas também com o olhar que a pessoa tem de si mesma. Sem preconceitos, ou pré-julgamentos. Pois, se para boa parte das pessoas é mais fácil entender questões de gênero e sexualidade a partir de definições como "homem", "mulher", "hétero", "homo" ou "bi", essas "caixinhas" não definem 100% das pessoas, nem cabem no processo terapêutico das pessoas trans, conforme explica a psicóloga. 

O que te levou a ser psicóloga?

Na época do vestibular, eu queria prestar medicina. Não passei e, ao fazer cursinho, percebi que medicina talvez não fosse o que eu queria, porque eu tinha vontade de saber mais, conversar mais, tinha outras curiosidades e acho que a medicina ficaria aquém. Fiz testes de orientação e deu bastante coisa da área de psicologia. No curso, eu me encontrei. No primeiro semestre da faculdade eu vi que era lá mesmo que eu queria estar. Na psicologia achei um caminho completamente diferente de ouvir, entender e questionar.

Como a questão da transexualidade entrou na vida profissional?

No último ano da faculdade eu fazia o núcleo de psicodrama e acabei fazendo um estágio no HC [Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP]. Eu já me interessava por questões de sexualidade na faculdade, tanto que meu TCC [trabalho de conclusão de curso] foi sobre homens homossexuais. Meu supervisor era o Alexandre Saadeh [coordenador do AMTIGOS], que hoje também é um amigo. Havia um grupo de transexuais e eu me dispus a atender, junto com um colega. Desde então eu fiquei. Me interessei muito pelo tema e fui me aprofundando cada vez mais. Desde 2002 eu atendo a população transexual, o que foi muito emblemático na minha vida. Me ajudou muito a entender mais ainda o ser humano, e de um jeito completamente diferente, fora de padrões, fora de caixinhas.

Qual a importância de trabalhar com adolescentes trans?

No meu processo de trabalho com pessoas trans eu comecei com adultos. O ambulatório no HC abriu para crianças e adolescentes em 2010. Eu nunca quis trabalhar com adolescentes, mas no meio desse processo de atender os adultos, a gente via que um ponto importantíssimo era cuidar da adolescência, que é um momento de maior estresse, maior sofrimento e de tentativas de suicídio. A adolescência, de um modo geral, é um momento pesado de vida, de várias crises existenciais. Você perde direitos, porque não é mais criança, mas também ainda não é adulto, então não ganha direitos. Tudo isso me fez querer trabalhar com adolescentes, porque a intervenção, nesse momento, é fundamental! A gente consegue evitar que esses adolescentes se transformem em adultos muito, muito sofridos. Sofrer eles vão, pelo fato de o nosso país ser um dos que mais mata trans no mundo, mas pelo menos vão ter mais estrutura para lidar com isso. Pelo menos não vão chegar na fase adulta tão dilacerados, como algumas pessoas chegaram, porque não tiveram esse acolhimento, essa escuta, esse espaço para falar das questões, para resignificar as questões. Então, a meu ver, a adolescência é um momento crucial para se acompanhar as pessoas trans – tanto para entender se essa questão é de dentro para fora ou de fora para dentro, e se questionar, como para se posicionar e ter os dois pés no chão para aguentar os trancos que a vida traz.

Você sente uma evolução da sociedade, no Brasil, em relação à questão da transexualidade?

Sim. Desde que eu comecei, há 19 anos, para cá, muita coisa mudou. Meu mestrado, por exemplo, que eu defendi em 2012, era sobre a importância do laudo psicológico para mudança de nome de pessoas transexuais. Eu lembro que uma das coisas que eu escrevi na conclusão era que eu torcia para que ele um dia fosse obsoleto, e que não houvesse mais necessidade da judicialização e dos laudos. E isso hoje é uma realidade. Você ter o direito de mudar o nome no cartório sem precisar judicializar esse processo é um ganho absurdo na qualidade de vida dessas pessoas. A gente tem um pouco mais de política pública voltada para pessoas LGBT em geral e para pessoas trans. A gente tem o processo do SUS, que garante um pouco de atendimento a essa população, em específico. As pessoas sabem mais, com informações na mídia. Essas pessoas são mais visíveis na sociedade, e muito por causa da mídia popular, como novela, séries, filmes, músicas e pessoas que se destacam nas redes sociais. Eu acho que a sociedade vai se transformando nesse movimento, a partir dessa gotinha no oceano. Quando há várias gotinhas no oceano, a mudança é maior. E eu acho que é assim que a sociedade está mudando em relação à questão da transexualidade.

O que trabalhar com pessoas trans mudou o seu jeito de ver o mundo?

Mudou muito! As pessoas que eu atendia lá em 2002, quando eu comecei, eram muito muito sofridas. Era um sofrimento que eu nunca tinha visto, muito intenso. Porque a pessoa trans tem o sofrimento de não poder ser quem ela é. Não poder se expressar. E quando ela vai se expressar, tem de validar o tempo inteiro essa expressão. Ela tem que justificar, tem que pertencer a alguma coisa que os outros acham que ela deveria ser. Todo mundo passa por uma questão de identidade. Mas a pessoa trans tem que ir além dessa questão. Esse olhar, como terapeuta, me fez crescer muito. Enxergar que as coisas não necessariamente são como se apresentam.

A gente tem que olhar o ser humano e entendê-lo de acordo com o que ele fala, e não de acordo com o que a gente vê. É preciso romper as barreiras das caixinhas – isso é aqui, isso é ali. É importante a gente saber o nome disso ou daquilo, até para a sociedade entender. Mas essas caixinhas não cabem no processo terapêutico. Isso me fez entender que a gente não sabe nada, ou a gente sabe muito pouco. É preciso romper com os preconceitos e entender a pessoa como ela é, de fato. É preciso ver com o olhar do outro, e não com o nosso olhar. O nosso olhar até serve para ajudar a pessoa a ver como a sociedade pode olhar para ela, em alguns momentos, para trabalhar essas questões. Mas o principal passo, o que transforma, é escutar e caminhar junto. Acho que a população trans me trouxe muito esse aprendizado no meu jeito de ver o mundo, de ver o meu trabalho e as outras pessoas.

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