O que mudou para o amor e o sexo na era digital?

Redes sociais, aplicativos de encontros, curtidas e piscadas online têm sacudido o universo dos relacionamentos há muitos anos. Quem vive de estudar o

Jairo Bouer Publicado em 31/08/2020, às 13h20 - Atualizado em 19/10/2020, às 11h07

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Redes sociais, aplicativos de encontros, curtidas e piscadas online têm sacudido o universo dos relacionamentos há muitos anos. Quem vive de estudar o comportamento humano, seja no meio acadêmico, no consultório ou na mídia, hoje precisa lidar com uma série de novos conflitos que surgem à medida que a tecnologia invade a vida íntima das pessoas, apesar das inegáveis vantagens que ela proporciona.

O fenômeno é chamado por especialistas de “intimidade cibernética”, ou “ciberintimidade”. Vários estudos sobre esse assunto têm sido publicados, o que levou pesquisadores da faculdade de medicina da Universidade Northwestern, nos EUA, a uma revisão que pode ser interpretada como um verdadeiro tratado sobre a influência da tecnologia nos romances. A equipe analisou 72 pesquisas, selecionadas entre mais de 4 mil, e os resultados foram divulgados semana passada no periódico Cyberpsychology, Behavior, and Social Networkinghttps://www.liebertpub.com/doi/10.1089/cyber.2019.0764

De acordo com os autores, a “ciberintimidade” teve impacto profundo nos três principais estágios de todo relacionamento, que podemos classificar como paquera (ou como tudo começa), manutenção (o que as pessoas fazem para manter uma interação positiva) e rompimento (como as pessoas lidam com o fim da relação). Resumo, abaixo, as conclusões que considero mais interessantes:

1) Universalização da paquera online: se antes era preciso entrar no computador e se cadastrar num site para procurar parceiros, hoje essa possibilidade está ao alcance dos dedos. Com aplicativos como Tinder e Grindr, estima-se que um quinto de todos os relacionamentos (de gente de todas as idades) tenha começado na internet. Segundo um estudo do Pew Research Center, o uso dessas ferramentas triplicou entre jovens de 18 a 24 anos de idade, somente entre 2013 e 2015. Mas a tendência não é privilégio das novas gerações: na faixa de 55 a 64 anos o acesso dobrou no mesmo período.

2) (Muito) mais dados no tabuleiro: em vez de começar o jogo do zero, como era antes, quem entra num aplicativo já começa a partida com muito mais recursos. Com novas opções a cada deslizar de dedo, é possível fazer várias apostas ao mesmo tempo. Vale lembrar que, para certos grupos, como o dos não heterossexuais ou dos mais tímidos, a tecnologia trouxe vantagens sem precedentes – a possibilidade de manter um certo anonimato alivia o medo de sofrer preconceito ou de ser rejeitado logo de cara numa investida presencial. Alguns estudos já indicam que metade dos casamentos entre bi e homossexuais começa na internet.

3) Mais “serviços de manutenção”: hoje não basta apresentar o novo parceiro para a família e trocar presentes em datas especiais. É preciso combinar o momento de tornar o relacionamento público nas redes sociais e administrar o ciúme provocado por comentários que amigos e ex-paqueras fazem quando você publica algo. O prejuízo, claro, não é só para quem fica inseguro. Um trabalho com 6.700 casais europeus concluiu que quanto mais as pessoas sentem que seu comportamento online é vigiado pelo parceiro, menor a satisfação com o relacionamento.

4) Maior demanda por autocontrole: a “tecnoferência” durante os encontros virou outro problema para os casais. Mais de um terço das pessoas diz sentir culpa ao trocar mensagens de texto com outros enquanto está com o parceiro romântico. Outros estudos mostram que a interferência dos smartphones em jantares e outros encontros está associada a mais conflitos e menor satisfação com o relacionamento e até com a vida. Em outras palavras, as interações virtuais viraram um obstáculo para as reais, que são muito mais enriquecedoras.

5) Novas interações sexuais: a tecnologia móvel também trouxe mais oportunidades de envolvimento sexual, o que é bom e ruim ao mesmo tempo. Pesquisas sugerem que o consumo compartilhado de pornografia traz mais satisfação para os relacionamentos, mas o consumo individual tem trazido alguns problemas, como ciúme e expectativas irrealistas sobre o sexo. E mais: o sexting ajudou a apimentar os “rituais de acasalamento”, mas tem efeitos colaterais desagradáveis, como o risco de ter imagens íntimas vazadas, inclusive pelo próprio parceiro (o chamado “porn revenge”, ou “pornografia de vingança”). Um dos estudos analisados informa que 20% dos jovens adultos norte-americanos já experimentaram algum tipo de coerção ou ameaça ligada ao sexting.

6) Terminar ficou mais difícil: se já não era fácil administrar a convivência com os amigos em comum depois de um rompimento, lidar com tudo o que ficou registrado nas redes sociais dá um trabalho enorme. É preciso apagar todas as fotos do casal para não espantar novos “crushes”, e mesmo depois de bloquear o perfil do ex é possível se deparar com uma foto da pessoa no perfil de algum amigo seu. Como dizem por aí, pior do que levar um “pé” é ver que seu ex arrumou alguém super rápido, às vezes até algum conhecido seu, enquanto você ainda nem superou a separação.

7) Outras ameaças cibernéticas: assim como o “cyberbullying” e o “porn revenge” amplificaram o sofrimento de quem é vítima de agressões ou vazamento de imagens íntimas, a internet trouxe uma nova dimensão para o “stalking”, uma forma de violência na qual alguém invade a privacidade da pessoa e emprega táticas de perseguição repetidamente. De acordo com o Departamento de Justiça dos EUA, 1,2 milhão de americanos já foram vítimas de “cyberstalking” e, na maioria das ocorrências, o perpetrador é um ex-parceiro.

Apesar de a tecnologia ter invadido a rotina e ter mudado até o modo de pensar, muitas crenças e rituais permanecem inalterados. Muita gente ainda considera mais adequado que o homem tome a iniciativa numa rede ou aplicativo, embora a revisão de estudos aponte que os contatos iniciados pelas mulheres tenham o dobro de chances de resultar numa conexão. E alguns usuários com centenas de amigos e “crushes” nas redes sociais ainda se revoltam quando o parceiro interage com seus próprios amigos e “crushes”, para citar só alguns exemplos.

Outra conclusão dos autores, curiosa e triste, é que a infinidade de opções de paqueras e encontros não se traduziu em decisões mais acertadas. Você pode se conectar com muito mais gente, filtrar candidatos com interesses em comum e aparência desejável, e ainda bloquear aqueles que, numa troca de mensagens, demonstram total falta de tato ou caráter. Mesmo assim, as pessoas continuam a cometer erros. Um trabalho citado por eles até sugere que, nesse aspecto, a quantidade compromete a qualidade: o excesso de candidatos geraria uma demanda cognitiva tão grande, ou tantas distrações, que a seletividade se reduz e leva a escolhas mais precárias. Tomara que os algoritmos consigam resolver parte desse problema, já que a maioria de nós ainda tem muita dificuldade para achar o melhor caminho! Boa sorte!

* Texto extraído da coluna do Jairo Bouer no UOL

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