Um dos princípios da CNV é a consciência de que por trás de qualquer ação há uma necessidade humana universal
Cármen Guaresemin Publicado em 08/07/2022, às 12h00
Você já ouviu a expressão comunicação não-violenta? Ela foi criada pelo psicólogo norte-americano Marshall Rosenberg (1934 – 2015) nos anos 1960, no auge do movimento a favor dos diretos civis e contra a segregação racial nos Estados Unidos, quando ele atuava como orientador educacional em instituições de ensino que eliminavam a segregação. Rosenberg dedicou a vida a entender o que nos separa e nos conecta, o que nos leva à violência e o que nos leva à resolução, paz e coexistência. Durante esse tempo, descobriu que, quando identificamos, entendemos e nos conectamos às nossas necessidades e valores humanos universais, em vez de diagnosticar e julgar, temos uma capacidade muito maior de entender uns aos outros de uma maneira que nos capacita a resolver conflitos sem violência.
Para entender melhor este conceito, especialmente quando se trata do relacionamento pais e filhos, conversamos com Liliane Sant'Anna, pós-graduada em psicologia positiva e ciência do bem-estar, especialista em comunicação não-violenta e cofundadora do Instituto CNV Brasil.
O que é comunicação não-violenta?
Comunicação não-violenta (CNV), ou comunicação consciente, é uma reflexão sobre nossa linguagem. É um corpo de conhecimento que nos conta como as palavras que temos escolhido (tanto para conversas internas quanto com os outros) constroem realidades que estão nos afastando como indivíduos e, por consequência, nos afastando de relações e resultados duradouros.
É uma prática que traz consciência à forma e intenção com que interagimos e nos conduz para uma qualidade de comunicação capaz de criar resultados que beneficiem a todos. O propósito da CNV, então, é trazer conexão suficiente para as relações (tanto profissionais quanto familiares, comunitárias, amizades etc.) de maneira a reacender nosso interesse em colaborar uns com os outros generosamente.
Isso é feito em um formato específico de linguagem que reduz a nossa tendência a ter julgamentos, para encontrar nossa motivação e o que cada um gostaria de cuidar em uma determinada situação. Esse formato pode ser simplificado em quatro componentes: observações, sentimentos, necessidades e pedidos.
Marshall Rosenberg, psicólogo americano, criador dessa prática, trouxe esses componentes como uma sugestão de caminho para facilitar conversas. Se falarmos contemplando o que aconteceu, de forma factual (observações), e como isso nos afeta (sentimentos), e o que queremos cuidar (nossas necessidades) com um pedido específico ao final, aumentamos a probabilidade de sermos escutados a partir de nossa intenção. E se procurarmos por entre as palavras difíceis de alguém, o que aconteceu, seus sentimentos, o que essa pessoa gostaria de cuidar e possíveis pedidos que estão escondidos em sua expressão, também diminuímos a probabilidade de nos engajarmos em respostas reativas. Queremos, com a CNV, fortalecer a nossa capacidade de sermos autênticos, e resgatar a empatia e a conexão humana nas nossas relações.
Como o conceito de CNV pode ajudar pais e filhos de gerações distintas a se entenderem melhor?
Um dos princípios básicos da CNV é a consciência de que por trás de qualquer ação há uma necessidade humana universal (não importa se você tem dois ou 92 anos). Saber que o filho que se tranca no quarto o dia inteiro precisa de espaço e individualidade, pode colaborar com a necessidade de conexão que faz o pai morrer de saudade do filho na mesa de jantar.
É realmente desafiador para alguém que cresceu jogando bola de meia com os amigos na rua entender que uma pessoa que fica o dia no celular está buscando pertencimento e diversão. E é extremamente difícil para um ser humano que tem o mundo em suas mãos entender que o pai quer protegê-lo e cuidar da sua integridade e crescimento quando pede que ele saia do celular.
Buscar as necessidades humanas universais, ou seja, as motivações que todos nós compartilhamos (apoio, segurança, afeto, autonomia, aprendizado, são alguns exemplos) é um caminho incrível para que as gerações comecem a se entender mais, e quem sabe propor outras alternativas para cuidarem dessas necessidades em conjunto.
Eu me lembro bem do dia em que meu pai conseguiu expressar de maneira aberta que se preocupava com o meu futuro quando eu desistia de algo que havia começado (um instrumento musical, um esporte, um projeto…). Foi nesse momento que consegui escutar para além do que recebia como crítica ou implicância, e pude contar quais eram as minhas intenções. Eu queria cuidar da variedade de amigos, interações e descobrir algo que eu realmente gostasse. Foi assim que pudemos combinar alternativas que cuidassem também da minha resiliência.
Para filhos pequenos não funciona de forma muito diferente. Saber que a criança precisa de movimento e diversão, e você de higiene e compromisso, pode lhe fazer criar alternativas divertidíssimas para o banho do dia, por exemplo. “Qual brinquedo você quer levar hoje para o banho?” “Quem chegar primeiro no banheiro ganha um beijo!”. São convites para a higiene e compromissos do dia com o divertimento e movimento que eles precisam. Conto um pouco mais sobre como lido com a CNV na minha maternidade em um e-book disponível no site do InstitutoCNV Brasil.
Qual o papel da CNV quando pensamos em uma relação entre pai e filho que é muito conflituosa?
Todo conflito esconde muitos pedidos. Descobrir quais são facilita o encontro de uma solução que beneficia a todos. Nossa forma de cuidar ainda é baseada na lógica da obediência. Temos muito medo de que, se não impormos nossa autoridade, nosso filho nos desrespeite. A questão é que essa lógica funciona reforçando sentimentos de medo, culpa e vergonha, que, vividos de maneira muito repetitiva, com o reforço de frases de desaprovação interna ou externa, podem nos conduzir a pensamentos de inferioridade, ansiedade, depressão, dificuldade de pertencimento e conexão nas relações.
Quando digo isso não consigo deixar de lembrar que temos os maiores índices de ansiedade e depressão já vistos na história. Essa forma de nos relacionarmos está falida e a alternativa está na construção de confiança. Se eu confio que o meu pai me explica sua intenção e conversa comigo sobre suas motivações, se eu confio que ele escuta as minhas motivações e me dá espaço para incluí-las na solução, eu o respeito e confio que ele se importa comigo. Essa é uma linda meta para a relação de pai e filho.
Mas se a relação chegou em um momento em que as feridas estão grandes demais e o nível de confiança está baixo demais para chegarem nas questões centrais que realmente precisam ser conversadas. Ter paciência e generosidade, perceber que a reconstrução de confiança é um caminho de várias conversas, pode ser essencial para a relação. A CNV nos apoia nesse caminho trazendo a prática da autoconexão como um potente caminho de autocompaixão e acesso aos motivos que nos fazem insistir nessa relação, o que pode contribuir muito com paciência e empatia.
De que forma a CNV pode colaborar para que pais e filhos consigam abordar temas que ainda são tabus em algumas famílias, como sexualidade, drogas e sexo?
Quando vamos falar sobre temas tabu, dificilmente nos damos conta do quanto nossa emocionalidade é impactada por isso. É comum ficarmos nervosos, ansiosos, com medo de ferir ou falar algo que não seja “correto”. A clareza interior do que nos acontece quando esses temas vêm à tona, é fundamental para conseguirmos trazer vulnerabilidade para a conversa. Tudo fica mais fácil quando digo: "Filho, estou um pouco nervosa com esse assunto, pois é muito importante, para mim, a sua segurança e integridade. Adoraria que você me escutasse com essa intenção quando falamos sobre drogas".
Mas é importante destacar também a importância da empatia aqui. Temas como esses geralmente abrem espaço para muita emoção e muitos não-ditos. Escutar com muita atenção legitimando a perspectiva do seu filho é talvez mais fundamental do que qualquer palavra bonita. Apenas garantir que você está realmente entendendo o que o seu filho quer dizer, o que ele está sentindo e suas necessidades, pode ser a coisa mais valiosa que você fará por ele. “Filho, me parece que você está nervoso e, talvez, até com medo de me contar tudo isso, pois para você é importante que eu legitime que somos diferentes, e que vemos o mundo de uma forma diferente, é isso?”, “Filho, você gostaria que eu visse o quanto isso é importante para você e que eu lhe apoiasse nesse processo, é isso?”
Perceba que na CNV não falamos de empatia como “se colocar no lugar do outro”. Se fossemos realmente capazes de nos colocar no lugar de outra pessoa, nem precisaríamos desse tipo de conversa. A proposta aqui é entendermos o mundo do outro, a perspectiva completamente diferente da nossa - como ele a vive, o que sente? O que é importante pra ele em relação a esse assunto ou enquanto conversa comigo sobre isso?
Depois disso podemos chegar em um momento em que a expressão é de extremo valor. Se percebo que meu filho precisa de apoio, posso dizer “Estou aqui com você. Me conte como posso te ajudar?”. Se percebo que ele precisa se expressar, posso dizer: “Você quer me contar algo mais? Quero muito te escutar”. Se percebo que ele precisa de afeto posso oferecer um abraço ou um simples “Eu te amo”. Não existe assunto que fuja a esse nível de conexão.
Como os conceitos de CNV podem ser aplicados no dia a dia e como deve ser esse processo de conhecimento de filhos e pais?
Há um conceito (quase mantra) que pode ajudar a trazer a comunicação não-violenta para as interações do dia a dia: “sentimentos são mensageiros de necessidades”. Quando compreendo que todo sentimento é uma mensagem de necessidades humanas, eu posso investigar quais necessidades estão se manifestando quando me emociono. "Estou com muita raiva, pois estou precisando de empatia e apoio agora" ou "Estou extremamente frustrada, pois valorizo muito comunicação e honestidade".
E posso, ainda, quando vir uma pessoa emocionada (com raiva, triste, com medo, ou com qualquer outra emoção forte e presente) procurar trazer hipóteses de necessidades que procuram ser atendidas ali. "Será que ele está com raiva pois gostaria de cuidar da sua autonomia agora?" ou "Será que ele está nervoso porque quer cuidar da conexão na nossa relação?". Para conseguir fazer isso precisamos lembrar que estamos jogando um novo jogo, o jogo da colaboração, onde ganha quem acha soluções criativas que atendam o maior número de necessidades, e não o jogo do certo e errado.
Certo e errado existe?
Vão me chamar de doida se eu disser que não. É claro que existe! Porém, é justo a forma como lidamos com essa distinção que tem nos colocado em tantos desafios relacionais e sociais. Precisamos reconhecer que a noção de limites, daquilo que serve à vida de um ser, indivíduo, grupo ou comunidade precisa se diferenciar daquilo que não serve. Foi para preservar esses limites que nos ancoramos à distinção de certo e errado. Ter essa diferença simples e clara facilita a convivência social e a educação.
O problema aparece quando nos perdemos da raiz dessa distinção. Diferenciar algo entre certo ou errado é um acordo social para cuidar das necessidades de um grupo, para proteger. Dizemos que matar é errado para cuidar da segurança de todos. Dizemos que estudar é certo para cuidar de evolução e ordem. Dizemos uma série de certos ou errados apenas na intenção de nos proteger ou proteger o futuro de nossos filhos. Mas você já deve ter percebido que há alguns grupos que acreditam que matar é correto (pena de morte é uma delas). E esse grupo também diz isso possivelmente para cuidar da sua segurança, ordem ou evolução. Quando percebemos esse conflito entendemos que “certo e errado” é simplesmente uma perspectiva, uma redução de uma narrativa muito mais complexa, que acaba incentivando conflitos sem diálogo.
Trazendo essa reflexão para a relação de pais e filhos, quando digo “É errado falar de boca cheia”, estou tentando proteger meu filho de possíveis impactos sociais caso ele continue com esse hábito. Mas não é isso que dizemos. Seguimos no automático respondendo “Porque é feio”, “Porque eu mandei”, incentivando o medo e a vergonha como motrizes para aprendizagem. Essa direção, porém, em vez de colaborar, tem atrapalhado o aprendizado e a construção lógica de nossas decisões.
A proposta da comunicação não-violenta é voltarmos a conversar sobre os motivos que nos fazem acreditar que algo é certo ou errado. Isso aumenta a probabilidade de que sejamos escutados e de escutarmos também. Eu me lembro do dia em que eu estava com o carro estacionado esperando que minha filha de dois anos recolocasse o cinto de segurança. “Enquanto você não colocar o cinto eu não posso sair”, “Colocar cinto é importante”, tentei muitas alternativas até dizer: “Filha, se você não colocar o cinto e a mamãe frear muito rápido você pode bater a cabeça aqui. Veja como usando o cinto isso não aconteceria”. Nunca mais ela deixou de usar o cinto e, hoje, me avisa quando há alguém no carro desprotegido (incluindo suas bonecas). Ela tinha apenas dois anos. Nós subestimamos a capacidade de nossos filhos de entender nossas motivações e somos demasiados acostumados a proteger reproduzindo “certos e errados”. Mas será que esse caminho realmente protege?
Como a CNV pode ajudar no processo de autoconhecimento das pessoas e na formação do caráter de jovens e adolescentes?
Ela nos ajuda a nomear o que estamos sentindo e o que precisamos. Nos ajuda a diminuir a tendência de acreditarmos em nossos julgamentos como sendo verdades absolutas e a fazer pedidos claros para o que precisamos. É um processo de autoconhecimento profundo e de um amadurecimento incrível. Não há como conhecer a CNV sem perceber que somos responsáveis por nossas necessidades, pela forma como nos comunicamos e pelo impacto das nossas ações. Imagine jovens crescendo com essa habilidade!
Fonte: Liliane Sant'Anna, pós-graduada em psicologia positiva e Ciência do bem-estar, especialista em comunicação não violenta e cofundadora do Instituto CNV Brasil
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