Você sabe o que é medicina do estilo de vida? Médica explica

Ela envolve a integração de práticas para diminuir fatores de risco para doenças

Cármen Guaresemin Publicado em 31/05/2022, às 10h00

Sociabilidade: interagir com outras pessoas é algo muito importante para a saúde em geral - iStock

O termo “medicina do estilo de vida” foi usado pela primeira vez como título de um simpósio em 1989 nos Estados Unidos, e em uma publicação como título de um artigo em 1990. Em 1999, o médico cardiologista norte-americano James Rippe afirmou que a medicina do estilo de vida envolve a integração de práticas de estilo de vida na prática moderna da medicina para diminuir os fatores de risco para doenças crônicas e/ou se a doença já estiver presente, servir como coadjuvante em sua terapia.

Para ele, a medicina do estilo de vida reúne evidências científicas sólidas em diversos campos relacionados à saúde para auxiliar o médico clínico no processo de não apenas tratar doenças, mas também promover a boa saúde. Rippe é autor de “Lifestyle Medicine” (Medicina do Estilo de Vida, em tradução livre), considerado o primeiro livro/publicação de referência desse ramo da medicina.

Porém, mais de 20 anos depois, a medicina do estilo de vida ainda é pouco conhecida ou confundida com outras especialidades. Para dirimir algumas dúvidas, entrevistamos a médica cirurgiã plástica Beatriz Lassance, que também é especialista em Medicina do Estilo de Vida pelo American College of Lifestyle Medicine (Harvard), do qual é membro, assim como do Colégio Brasileiro de Medicina do Estilo de Vida.

Por favor, explique o que é medicina do estilo de vida?

Estilo de vida é o que você faz com seu meio ambiente. Segundo o American College of Lifestyle Medicine, “é o uso terapêutico de intervenções de estilo de vida baseadas em evidências para tratar e prevenir doenças relacionadas ao estilo de vida em um cenário clínico. Ela capacita os indivíduos com o conhecimento e as habilidades de vida para fazerem mudanças de comportamento eficazes, que abordem as causas subjacentes da doença”. Consiste numa abordagem multidisciplinar focada em adoção de hábitos saudáveis para não somente prevenir, mas tratar doenças crônicas.

A medicina do estilo de vida surgiu nos Estados Unidos, na tentativa de conter o avanço da obesidade e doenças crônicas relacionadas. A causa dessa “epidemia” está diretamente relacionada ao estilo de vida. Hábitos sedentários, televisão como parte central da vida, automação de tudo cada vez mais presente na rotina, indústria de alimentos diminuindo cada vez mais custos em detrimento de qualidade e saúde, isolamento social piorado com avanço de conectividade e tantos outros avanços tecnológicos levam a gasto energético cada vez menor, consumo calórico cada vez maior e, assim, mais doença e estresse.

De forma organizada, a medicina do estilo de vida separou a “doença” social em pilares, e baseada em evidências científicas, capacita equipes multiprofissionais a mudar hábitos dos pacientes. O tratamento, que até então dependia exclusivamente de medicamentos de forma passiva, passa a ter o paciente como parte ativa, responsável pelas próprias escolhas e consequente melhora da saúde. A primeira intervenção que deve ser feita é educar os pacientes e, de forma acolhedora, explicar o que é estilo de vida e indicar medidas de melhora global nos hábitos.

Quais são os pilares do estilo de vida?

São seis: substâncias tóxicas (tabagismo, álcool, drogas); dieta; atividade física; sono; controle do estresse; sociabilidade e dieta.

Pode explicar, de forma reduzida, cada um deles, por favor?

Tabagismo e álcool estão diretamente ligados ao aumento da mortalidade por diversas causas  -  iStock

Substâncias tóxicas (tabagismo, álcool, drogas): tabagismo e álcool estão diretamente ligados ao aumento da mortalidade por diversas causas. O controle do uso de substâncias tóxicas é complexo e multifatorial. Apenas 15% dos pacientes param de fumar espontaneamente, sem auxílio profissional. A morbidade e mortalidade estão diretamente relacionadas ao estresse oxidativo. Com técnicas de terapia cognitivo-comportamental associadas ao tratamento medicamentoso é possível controlar.

Dieta: obesidade está diretamente relacionada ao aumento da mortalidade global. É considerada epidêmica em muitos países. O controle calórico com dietas muito restritivas já não é mais considerado eficaz, não há aderência do paciente a longo prazo. A medicina do estilo de vida enfatiza o conceito de nutrição comportamental e uma postura mais ativa sobre a escolha dos alimentos. No American College of Life Style Medicine existem cozinhas onde aulas de culinária são oferecidas na tentativa de mostrar aos pacientes a necessidade de apropriação do próprio alimento. Ensinar o prazer de comer saudável é uma tarefa difícil onde a indústria de alimentos oferece opções muito mais saborosas, mais práticas e de custo muito menor.

Atividade física: o sedentarismo também pode ser considerado epidêmico. Controle remoto, estacionamentos gigantes, carros mais baratos, automação da casa, são exemplos de facilidades da vida moderna nas quais existem um objetivo de economizar energia do ser humano. Exercício físico, de forma cada vez mais intensiva, fica restrito à academia e ao esforço pessoal de sair para se exercitar. Atividades com gasto calórico (NEAT- non exercise activity termogênese) estão restritas quase que exclusivamente a trabalhadores braçais. Atualmente, existem empresas que já adotam medidas para melhorar a saúde do trabalhador, como ginástica laboral; oferecer apenas um bebedor para todo o andar, e mudá-lo de lugar periodicamente; estimular o uso de podômetros e promover atividades ao ar livre, como reunião em movimento. A prescrição de exercícios físicos deve ser factível àquela pessoa, deve estar dentro da capacidade individual promovendo aumento de gasto energético progressivo e de forma estimulante.

Sono: a falta dele também é multifatorial. Obesidade está relacionada à apneia do sono, estresse oxidativo e, portanto, a doenças crônicas. Melhora da dieta, exercícios físicos, perda de peso e controle do estresse certamente melhoram a qualidade do sono. Educar os pacientes sobre a importância do sono é obrigação de todo profissional da saúde.

Controle do estresse: sabemos da consequência deletéria ao organismo dos níveis elevados de cortisol de maneira crônica. Atividades diárias laborativas trazem sempre algum grau de estresse. Boletos, metas, chefes, crises econômicas e, agora, pandemia e guerra. Conceitos de "busca pela felicidade" e "trabalhar com o que faz feliz" também podem ser motivos de insatisfação e estresse. O controle pode ser feito, por exemplo, nos descansos. Minidescansos ao longo do dia,  ao longo da semana ou do final de semana e ao longo do ano. Sair da rotina, executar atividades prazerosas, que incluam música, arte, atividade física e meditação são medidas que podem ser prescritas. Ensinar que existe a necessidade física de se desconectar, mesmo por alguns instantes, também deve estar nos consultórios médicos.

Sociabilidade: principalmente na atualidade, o isolamento social tem se mostrado fator de adoecimento. O mundo é apresentado de forma cada vez mais vívida e interessante pelas telas de TV e celular. Uma realidade que tende a piorar com a chegada do metaverso. A sociabilidade, a interação com o próximo é vital ao ser vivo, não somente ao ser humano. Grupos de apoio, comunidades religiosas, esportivas, praças de convivência são medidas públicas já adotadas em muitos países, inclusive no Brasil. Obviamente, a pandemia fez retroceder, e muito, as atividades neste sentido, e tem sido motivo de discussões como retomar essas medidas de forma segura e permanente.

Qual a importância dessa área para a saúde?

Prevenção e tratamento de doenças crônicas. Uma literatura científica crescente, exponencialmente, mostra remissão de inúmeras doenças crônicas com intervenções no estilo de vida como obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão, doenças cardiovasculares e depressão.

As pessoas confundem a medicina do estilo de vida com a medicina preventiva? Por que isso ocorre?

Na verdade, a confusão é válida. A medicina do estilo de vida pode ser considerada preventiva, mas é muito mais abrangente e nem toda medicina preventiva trata do estilo de vida.

O SUS já utiliza a medicina do estilo de vida?

Alguns grupos utilizam a medicina do estilo de vida em seu núcleo de atuação de forma isolada. Não há uma política estruturada sobre o assunto dentro do SUS. O site https://apsredes.org mostra algumas ações já em andamento.

No que ela pode ajudar o SUS?

Atividades comunitárias são de custo muito mais baixo que hospitalares. A medicina do estilo de vida tem se desenvolvido muito nos Estados Unidos com políticas públicas para exatamente conter gastos com saúde. Pacientes obesos são aposentados por invalidez ainda jovens, por exemplo. 

O que a levou a se interessar pela medicina do estilo de vida, já que se especializou como cirurgiã plástica?

Sendo cirurgiã plástica, encontrei na medicina do estilo de vida uma forma de melhorar meus resultados a longo prazo. Pacientes que veem na cirurgia plástica uma forma de modificar o corpo, entendem que é mais que isso. Mudando hábitos em preparo pré-operatório de forma imperativa e tendo a cirurgia como meta, descobrem inúmeros benefícios e permanecem com atitudes mais saudáveis mantendo o resultado por muito mais tempo. Mesmo com pacientes de cirurgias de face tenho tido surpresas sensacionais com mudanças de hábitos e melhores resultados. Acredito na medicina do estilo de vida como ferramenta em todo consultório médico.

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