Como a pandemia de Covid-19 tem intensificado as rotinas de trabalho à exaustão
Thatiana Cappellano Publicado em 24/03/2021, às 15h00
“Eu preferiria não”.
Essa é a recorrente resposta de Bartebly – o escrevente que copia documentos em um pequeno escritório de advocacia, apertado entre paredes úmidas dos arranha-céus de Wall Street. Frente aos insistentes pedidos de seu chefe para que execute inúmeras tarefas, além de seu ofício principal, o personagem central do romance homônimo (escrito em 1853 por Herman Melville, o mesmo autor de Moby Dick), é uma triste figura que resiste passivamente ao mundo do trabalho de sua época. Este bordão, dito de forma monótona e sem vida ao longo de toda a história, provoca tanto a ira quanto a piedade, narcísica (diga-se de passagem), de seu chefe. Bartebly não pode ser considerado uma metáfora inspiradora e consciente da necessária resistência frente aos excessos e abusos que o trabalho impõe às pessoas. Longe disso. Ele apenas diz que preferia não. Parece pouco, mas...
A pandemia da Covid-19 é uma tragédia sufocante que, lamentavelmente, está ceifando dia após dia centenas de milhares de vidas. No Brasil, em particular, esse cenário ganha contornos mais mórbidos face aos disparates e à incapacidade de articulação de uma estratégia coordenada de resposta no âmbito federal. Enquanto o governo bate-cabeça (ou finge tal confusão, deliberadamente, enquanto “passa a boiada”), outra tragédia já está em marcha: a exaustão, física e psíquica, dos trabalhadores de inúmeros setores econômicos em virtude da intensificação das rotinas de trabalho [e, olha, a bem da verdade, a gente poderia falar de três tragédias simultâneas: estas acima e a que se relaciona com o aumento do desemprego e dos índices de miséria e pobreza extrema. Mas, vamos manter aqui o foco da coluna, que é o mundo do trabalho].
E por que falar do romance de Melville e da pandemia num mesmo texto? Porque podemos levantar uma hipótese: em virtude da crise econômica atual, a diminuição do número de postos de trabalho somada ao medo do desemprego pode estar levando os trabalhadores a uma sobrecarga sem precedentes – já que, convivendo com essa combinação explosiva, fica difícil ter coragem de impor qualquer mísero limite.
Pensar sobre esse assunto – o aumento da intensificação do trabalho e a consequente sobrecarga sobre os trabalhadores – permite muitos recortes. Tal situação é evidente quando pensamos em algumas ocupações: os profissionais de saúde na linha de frente de combate ao novo coronavírus, sem dúvida, são o retrato máximo disso. Falta equipe e, também, infraestrutura. Faltam equipamentos de proteção e apoio psicológico. Lidar com a toda essa pressão e com a rotina de mortes diárias é extenuante – e, aqui, não podemos esquecer daqueles trabalhadores que estão na atividade de remoção dos doentes.
Na verdade, é possível pensar nos profissionais das áreas de logística e transporte como um todo [considerando aqui desde os que operam portos logísticos e navios, passando pelos motoristas e condutores de transporte público ou de aplicativos, e chegando aos entregadores na ponta – muitas vezes uma categoria já anteriormente precarizada pela uberização], afinal boa parte da economia passou a girar no e-commerce e em sistemas de delivery, de uma hora para outra. Sem tecnologia de ponta que permite uma sincronia fina das etapas logísticas, tendo que lidar com o trânsito dos grandes centros urbanos e a compreensível ansiedade dos compradores, não espanta que este seja também um grupo de trabalhadores no limite da exaustão.
E os professores? A área da educação era uma das mais atrasadas em relação ao uso da tecnologia e de sistemas digitais. E, do dia para noite, milhares de docentes tiveram que reaprender a dar aula. Lidar com as cobranças, muitas vezes desrespeitosas, dos pais; com a frustração frente ao desinteresse dos alunos – já que muitos não conseguem estabelecer uma rotina de estudos e manter a concentração ou interesse na tela por tantas e tantas horas – pode ser muito exaustivo.
Daria prá ficar aqui elencando profissões e refletindo ad eternum. Afinal, a hipótese vale para todos e é quase matemática: (medo do desemprego) + (diminuição de vagas) = (sobrecarga nos que permanecem no mercado). E, sim, nessa situação, podemos extrapolar a reflexão e pensar sobre todos os que, em ocupações informais, também estão precisando trabalhar mais e mais para manter a renda em dia.
Essa equação pode ser bem ilustrada pelo aumento no volume de pesquisas relacionadas ao termo Síndrome de Burnout¹, no Brasil, nos últimos 12 meses, como mostra ao gráfico do Google Trends abaixo:
Vale fazer, aqui, um aparte a respeito dos trabalhadores que tiveram sua rotina impactada pela adesão massiva à realidade do trabalho remoto, um modelo que ainda era incipiente antes da chagada da pandemia do novo coronavírus.
Até então, tal modalidade de ocupação era tida como privilégio de poucos. Praticada apenas por algumas poucas atividades e funções, o trabalho remoto estava envolto em um paradigma de produtividade. Por isso, a adoção em maior grau desta forma de atuação enfrentava do lado das organizações uma resistência simbólica frente à perda do controle sobre o trabalhador (e sua produção) e, também, devido à necessidade prévia de investimentos massivos em infraestrutura tecnológica adequada para tal – além, claro, das dificuldades de adoção desta prática frente um frágil ou inexistente arcabouço jurídico. Do lado do trabalhador, as angústias e incertezas se relacionavam com a questão do tempo: como se organizar numa rotina que é, por princípio, mais flexível em relação à carga horária padrão da jornada de trabalho?
Todas essas dúvidas foram por terra com a chegada da pandemia. Segundo uma nota técnica divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no mês de maio de 2020, em resposta ao início das iniciativas dos governos estaduais de restrição à circulação, cerca de 8,7 milhões de trabalhadores migraram para a modalidade de trabalho em home office (aproximadamente 13,3% da população economicamente ativa, que corresponde a 17,4% da massa de rendimentos total). Apenas para comparação, vale destacar que antes da pandemia eram 3,8 milhões de trabalhadores² neste modelo. Esse número foi caindo ao longo do tempo, mas não deixou de ser expressivo. [Ah, alto lá: é bom deixar claro que o modelo de trabalho remoto – ou teletrabalho, como é nomeado na CLT, a Consolidação das Leis do Trabalho – é algo que vai muito além do Home Office, que efetivamente foi o que aconteceu em razão da pandemia. Então, não só por preciosismo teórico, mas também para que a gente possa compreender o quadro que estamos refletindo aqui, é importante fazer essa distinção].
Essa parcela considerável da força de trabalho se viu, da noite para o dia, confiada em suas residências, enfrentando múltiplos desafios: a falta de estrutura adequada ao trabalho (desde a internet lenta, a cadeira improvisada e a mesa em local com péssima iluminação); passando pelo acúmulo das tarefas doméstica (bem representada pela pilha de louça que parece nunca diminuir na pia da cozinha); pela adaptação ao ensino a distância dos filhos; pelos desafios da convivência 24x7 com outros membros da família, ou as auguras da solidão aos que moram só; até às infindáveis discussões no grupo de WhatsApp do condomínio por causa da furadeira logo no horário da videoconferência. Foi o rompimento definitivo entre vida pessoal e profissional, e ninguém estava preparado para isso.
Por todas estas questões, esse começo não foi fácil. Para termos uma ideia, vale olhar alguns dados de pesquisas realizadas lá no começo dessa situação:
Mas, até agora, continua não sendo fácil mesmo passados 12 meses do início dessa realidade.
É preciso considerar que o agravamento da pandemia e seu prolongamento por um período sem previsão de término tem relevância. Não por menos, a OMS (Organização Mundial da Saúde) utilizou a expressão “fadiga pandêmica”, em outubro de 2020, para descrever a sensação de cansaço, de apatia e impotência que começava a assolar a humanidade, já cansada de tantos sacrifícios e sofrimento. Essa fadiga é como um pano de fundo sobre o qual todas as pessoas, independente do país em que moram ou da idade, estão deitadas. Esse quadro maior afeta a todos, trabalhadores ou não.
Mas, em relação aos que estão empregados, valem algumas reflexões críticas a respeito dos dados acima.
Primeiro, o tal ganho de produtividade apontado pelas pesquisas pode não ter sido, exatamente, produtividade. Explico: a noção de incremento de produtividade relaciona-se, simultaneamente, a dois fatores. De um lado, o aumento do uso da tecnologia aplicada ao ambiente produtivo ou de serviços; de outro, à capacitação da mão de obra que passará a lidar com essas novas tecnologias no dia a dia. Sem isso, não se pode falar em incremento da produtividade. Portanto, considerando que não foram esses (tecnologia e capacitação) os fatores preponderantes ao longo do período da pandemia, é de se imaginar que esse “aumento da produtividade” veio em decorrência do puro e simples aumento da carga horária de trabalho.
Segundo, a falta de preparo dos líderes no gerenciamento de equipes remotas levou a um aumento dos mecanismos de controle sobre o trabalho – o que, por si só, é a antítese da ideia do trabalho à distância! Desde formas indiretas (como agendar reuniões logo no começo do dia e, também, no último horário possível) até a adesão a ferramentas que escaneiam a face do empregado quando este se posta em frente ao computador, indicando a hora de início de suas atividades. Essas práticas têm impactos severos sobre a subjetividade dos trabalhadores, além de minar a construção de relações baseadas em confiança (que é o elemento vital para estabelecimento do trabalho remoto). Além disso, é preciso que a empresa – via diretoria de gestão de pessoas – estanque os abusos: reuniões sequenciadas sem intervalos, compromissos fora do horário comercial e aos finais de semana, chuva de e-mails na madrugada e afins. Mas, nesse sentido, o que se observa são iniciativas isoladas e pontuais.
Terceiro, o agravamento do desemprego sempre sobrecarrega a força de trabalho ativa, afinal é comum às empresas a prática de reduzir postos sem reduzir as atividades (ou investir em tecnologia!).
Por tudo isso, considerando todo o cenário exposto, é urgente que essa problemática comece a ser discutida de maneira consistente e sistêmica, unindo diversas frentes da sociedade e do mercado, para evitar a tragédia que se anuncia dentro da tragédia.
¹Síndrome de Burnout (SB): Derivado do verbo inglês to burnout, que na tradução para o português significa queimar ou consumir-se, é um estresse laboral crônico manifesto por um sentimento de fracasso, acompanhado de exaustão: um esgotamento de energia ocasionado pelo excesso ou condições de trabalho. Em 2001, o Ministério da Saúde, definiu a SB como uma doença do trabalho, estabelecida pelo decreto 3048/99, de acordo com o artigo II dos Agentes Patogênicos causadores de Doenças Profissionais ou do Trabalho. É citada pela Organização Mundial de Saúde na Classificação Internacional das Doenças (CID) – sob o CID 10, como uma "sensação de estar acabado" ou "síndrome do esgotamento profissional". Por vezes, a doença é diagnosticada e tratada como depressão, e quando há a necessidade de afastamento do empregado, também é classificada como tal.
²IBGE, 2018.
* Esta coluna não reflete, necessariamente, a opinião do Site Doutor Jairo
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