O que a morte prematura do prefeito de São Paulo pode indicar a respeito de nossa relação com o trabalho?
Thatiana Cappellano Publicado em 19/05/2021, às 17h00
Tenho falado por aqui que a cultura contemporânea carrega em si uma ideologia discursiva a respeito do trabalho enquanto atividade suprema da vida e principal indicativo de moralidade que separa os homens entre os que são dignos e os indignos. Sem entrarmos no mérito do legado político do então prefeito de São Paulo, Bruno Covas, morto no dia 16 de maio em decorrência de um câncer no sistema digestivo que evoluiu para uma metástase óssea, observar algumas circunstâncias relacionadas à sua morte pode nos ajudar a compreender essa dimensão quase sagrada que o trabalho tem na nossa sociedade.
Sugiro olharmos para dois fatos [tendo em vista que falar sobre eles não se trata de fazer uma crítica pessoal ao comportamento do então prefeito: a proposta é observar tais questões como sintomas de algo maior].
Primeiro, vale pontuar que o jovem político esteve à frente da Prefeitura da Cidade de São Paulo até o dia 02 de maio – exatos 14 dias antes de seu falecimento, ou 12 dias da declaração de irreversibilidade de seu quadro, feita pela equipe médica que o acompanhava. Sim, d-o-z-e dias! Obviamente, não estou aqui fazendo um juízo de valor, se foi certa ou não tal situação: eu acredito, e de verdade espero, que tenha sido uma escolha deliberada e autônoma dele. A questão é: uma escolha com base em quê?
Mais do que uma possível preferência pessoal por trabalhar até instantes antes da morte, essa situação pode ser sintomática do imaginário que temos a respeito do trabalho [imaginário que ele tinha, que eu tenho, que você tem – que todos nós temos! – e que diz sobre o ideal que acreditamos ser “o certo” e, por isso, buscamos corresponder. O imaginário é um registro formado por inúmeros “modelos”, introjetados em nós desde a mais tenra idade: a mãe ou o pai ideal, o marido ou a esposa ideal, o amigo ideal, o chefe ideal, o irmão ideal, o cidadão ideal. Nesse sentido, pode ser que o trabalho seja uma noção que compõe em grande parte esses modelos ideais]. Se, ao longo de nossas vidas, nos identificarmos fortemente com essa ideologia discursiva do trabalho (que, simploriamente, podemos resumir na famosa sentença o trabalho dignifica o homem), podemos, sim, considerar que tal situação foi natural...
... e parece que é mais ou menos isso que se deu, quer ver só?
O segundo ponto em relação à ideologia do trabalho que chama a atenção no contexto da morte de Bruno Covas, pode ser observado na imensa maioria das homenagens prestadas nas redes sociais e nos jornais. Uma leitura rápida desses conteúdos e é possível notar que os textos trazem a palavra “trabalhador”, seguida de adjetivos como “incansável”, “tenaz”, “dedicado” e outros. Como se, ao destacar esta entre as muitas possíveis características de sua personalidade, fosse a melhor forma de dizer quem ele era e de honrar sua memória [e para não incorrer em erro, tenho que dizer que outro ponto muito ressaltado foi a questão da paternidade: Bruno Covas era pai do adolescente Tomas, de 15 anos, que o acompanhou de perto durante sua luta contra o câncer].
Novamente, não se trata aqui de dizer se isso é certo ou é errado, mas, talvez, de nos questionarmos qual seria uma outra vida possível em face da possibilidade da morte, para qualquer um de nós? Ou, até mesmo, qual é uma outra vida possível em face a qualquer outra situação de nossas vidas – limítrofes, como um câncer, ou tão corriqueiras quanto um dia de domingo? Por que, em tantas vezes, optamos pelo trabalho?
É evidente que o trabalho é parte importante daquilo que somos e, muitas vezes, trabalhar é a melhor forma de ocupar a mente e nos manter sãos [muita gente pensa isso, basta uma voltinha pelo LinkedIn e depoimentos neste sentido se somam aos montes]. A sugestão de reflexão que faço aqui é no sentido de buscarmos observar por que é esta dimensão de nossas vidas em específico – e não nenhuma outra – aquela que ganha relevância quando queremos falar de nós mesmos e dos outros?
O que podemos conjecturar ao observar esse quadro é que trabalhar, enquanto produção, é viver e merecer estar vivo devido à dignidade que esse ato em si carrega - mesmo depois da morte, já que ressaltar o trabalho realizado dignifica até quem já partiu.
Se nos causa estranheza refletir sobre tal proposição, talvez fique mais fácil compreendê-la quando se observa as implicações para aqueles que não trabalham: dessocialização imposta ou voluntária, julgamento social e a aceitação da concepção de que se trata de uma pessoa pouco esforçada, preguiçosa e menos decente – portanto, alguém que deixado à míngua, de múltiplas formas, diretas ou indiretas, por quanto tempo for, não causa espanto e muito menos comoção social. É desta ideologia que as reflexões aqui propostas tratam: a intenção discursiva do sistema econômico de manter o sujeito unicamente no lugar daquele que trabalha, que só é digno por exercer tal atividade e nada além dela.
Como conciliar trabalho e saúde mental neste momento desafiador?
Trabalho: dignidade e vida ou sofrimento e morte?
Colapso físico e mental do trabalhador: a tragédia dentro da tragédia
Por que estamos fazendo o que estamos fazendo?