"Maconha medicinal" existe?

Psiquiatra alerta para riscos de produtos com CBD, componente da maconha com potencial terapêutico

Sergio Nicastri* Publicado em 15/09/2021, às 13h56

Como qualquer droga, o CBD (canabidiol) também pode produzir efeitos colaterais - iStock

A maconha é a substância ilícita mais consumida em todo o mundo, com uma estimativa de 200 milhoes de indivíduos referindo seu uso nos últimos 12 meses em 2019, segundo o Relatório Mundial sobre Drogas de 2021 (do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime – UNODCP). O termo “maconha” tradicionalmente se refere a preparações secas contendo ramos, folhas e flores de plantas do gênero Cannabis, envolvendo mais de 100 substâncias conhecidas como canabinoides. Dentre estes, são o THC (delta-9-tetra-hidro-canabinol) e o CBD (canabidiol) os mais conhecidos. Outro produto que vem se tornando cada vez mais comum é o haxixe, resina extraída da planta que concentra níveis mais elevados de THC.

Enquanto o THC é uma droga com potencial de abuso, responsável pelos efeitos que os usuários procuram e associado a diversos riscos (incluindo alterações cognitivas duradouras, prejuízos de motivação e risco de quadros psícóticos como a esquizofrenia), o CBD tem demonstrado potencial no tratamento de diversas condições de saúde, não sendo uma droga de abuso (não tem efeitos agudos e intensos sobre o estado mental).

Nos Estados Unidos, o CBD é aprovado no tratamento de duas formas graves de epilepsia em crianças (Síndromes de Dravet e Lennox-Gasteau), tendo sua utilização reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina do Brasil no tratamento de epilepsia de crianças e adolescentes como uso compassivo (isto é, quando tratamentos convencionais não produziram os resultados desejados). O CBD tem sido estudado como tratamento potencial para diversas condições de saúde, incluindo (além de epilepsia), esclerose múltipla, dor crônica, doença de Parkinson, esquizofrenia, autismo e outras desordens psiquiátricas (incluindo depressão e transtornos de ansiedade). Entretanto, os resultados das pesquisas ainda são relativamente escassos e elas precisam continuar.

Se as evidências de que o CBD funciona como tratamento ainda não são muito robustas, precisamos considerar que, como qualquer droga, o CBD também pode produzir efeitos colaterais. Ele pode ser tóxico para o fígado, interagir com medicamentos que o indivíduo possa estar utilizando (prejudicando seus efeitos terapêuticos ou aumentando seus efeitos colaterais), ou ainda potencializar o efeito do álcool e substâncias sedativas (como as utilizadas para tratar ansiedade, estresse e insônia), aumentando o risco de quedas e ferimentos. Também foram descritas alterações no nível de alerta (com tontura ou sonolência), efeitos gastrointestinais (como diarreia e diminuição de apetite) e alterações mentais (como irritabilidade e agitação). Ainda existem dúvidas sobre consequências do uso continuado por longo prazo, qual dose pode produzir os efeitos colaterais descritos e como os diferentes métodos de utilização (ingerido, fumado ou “vaporizado”) podem interferir nos efeitos do CBD.

Existem diversos produtos contendo CBD não aprovados por agências reguladoras, que podem incluir cosméticos, alimentos, suplementos alimentares ou qualquer produto apresentado como “medicinal” (óleos, por exemplo). Alegações errôneas, falsas ou sem evidência científica podem induzir os usuários a negligenciar o atendimento adequado, incluindo um diagnóstico preciso do problema e o tratamento correto. Além disso, a qualidade de diversos produtos contendo CBD pode ser problemática, devido à falta de controles e práticas corretas de produção. Alguns produtos não contêm o nível de CBD anunciado, e outros possuem níveis preocupantes de contaminantes, incluindo pesticidas, metais pesados e THC.

Infelizmente, no campo do uso terapêutico de substâncias provenientes da Cannabis, o debate tem sido enviesado por interesses de diversas naturezas. Podemos lembrar que há grandes grupos econômicos buscando legalizar diversos usos da maconha (inclusive para fins recreativos), que procuram enfatizar os benefícios medicinais como uma estratégia de diminuir a rejeição à droga, com a finalidade de gerar lucro.

A percepção de quanto é arriscado consumir maconha vem caindo nos últimos anos, ao mesmo tempo em que o teor de THC na planta apreendida tem aumentado (quadruplicou nos últimos 10 anos), ou seja, ela está ficando mais perigosa. A discussão sobre a plantação de maconha “apenas para fins medicinais” parece não levar a sério a possibilidade de desvio da finalidade, aumentando a oferta de droga a populações vulneráveis ao abuso. O problema é que não se planta CBD, planta-se maconha. É importante distinguir CBD (uma substância) da maconha (a planta toda). Maconha medicinal NÃO existe.

Para mais informações (em inglês): https://www.fda.gov/consumers/consumer-updates/what-you-need-know-and-what-were-working-find-out-about-products-containing-cannabis-or-cannabis

 

Sobre o autor

* Sergio Nicastri é doutor em medicina pela Universidade de São Paulo, mestre em Saúde Pública pela Universidade Johns Hopkins (EUA) e médico psiquiatra (especialista pela Associação Brasileira de Psiquiatria)

 

 

Esta coluna não reflete, necessariamente, a opinião do Site Doutor Jairo

 

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