Muitos fatos, nas últimas décadas, tiveram impacto significativo na vida sexual das pessoas: dos novos tratamentos contra HIV/Aids à internet móvel. Para quem atua na área de sexualidade, como a psiquiatra Carmita Abdo, livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), é fácil observar como essas mudanças deixaram – e ainda deixam – reflexos na nossa intimidade. E não será diferente com a Covid-19.
"A marca da pandemia sobre a vida sexual já se faz presente", conta a médica, que acaba de lançar o livro "Sexo no Cotidiano" (Editora Contexto), ele próprio um fruto do confinamento. "Até por isso, menos divertido do que poderia ser, porém genuinamente cotidiano, conforme a proposta", descreve. A autora elegeu 26 capítulos para abordar, de forma suscinta, questões relevantes e atuais, como sexo saudável, de risco, virtual ou ausente.
Ainda é difícil avaliar o impacto futuro desse nosso trágico cotidiano para quem, por exemplo, teve que adiar os planos de encontrar um novo parceiro, ou até mesmo o primeiro. Na opinião de Carmita, é possível que algumas pessoas não consigam recuperar essa perda. Outros, em contrapartida, renderam-se à atividade sexual como alternativa ao desânimo e a desesperança provocados pela doença, o luto ou a insegurança econômica. Nesta entrevista, ela traz algumas reflexões presentes no livro, não só sobre Covid-19, mas também sobre internet, pornografia, educação sexual e a eterna busca para "manter a chama acesa".
Desde que começou a atuar nessa área, quais foram os fatos, na sua opinião, que mais geraram impacto na vida sexual dos brasileiros?
De algumas décadas até hoje, muitas situações impactaram a vida sexual dos brasileiros e de toda a população mundial. Vale citar o advento da Aids e seus desdobramentos: a volta da exigência do uso de preservativo para o sexo seguro e a baixa adesão a esse uso, a discriminação dos “grupos de risco”, as dificuldades para o controle da epidemia, as mortes, o coquetel antiviral, o estigma, os sobreviventes e suas sequelas físicas e emocionais...
Merecem destaque, também, os medicamentos eretogênicos (Viagra, Cialis, Levitra, entre outros), os quais acrescentaram décadas à ereção do homem que envelhece, da mesma forma em que multiplicaram os atos sexuais dos jovens em seus encontros ”recreacionais”. E repercutiram sobre a saúde sexual das mulheres mais velhas, pela falta de alternativa medicamentosa que as recuperasse para fazer frente à demanda deles. Ou pelas infecções sexualmente transmitidas por seus parceiros, cuja prática sexual extraconjugal não contemplou o uso de ”camisinha”.
A internet, por meio do sexo virtual e da pornografia, revolucionou a iniciação dos adolescentes e diversificou a prática dos adultos. Por vezes, contribuiu para o sexo compulsivo (dos predispostos a essa condição) e para a baixa autoestima daqueles que se comparam e “perdem feio” para os corpos e respectivas performances exibidos na tela.
Não se pode deixar de mencionar a pandemia do Covid-19, que, em função do confinamento e do isolamento social, atropelou a iniciação de muitos jovens, incentivou o sexo virtual e a masturbação, ao mesmo tempo em que reduziu o índice de infecções sexualmente transmissíveis, mas também a satisfação com a atividade sexual e as possibilidades de sexo seguro sem a proteção da máscara e da evitação de contato facial, com o ânus e com as secreções (passíveis de transmissão do vírus).
Mais de um ano após o início da pandemia, podemos dizer que essa crise também vai deixar algum tipo de marca na vida sexual das pessoas?
A marca da pandemia sobre a vida sexual já se faz presente: a frequência sexual dos casais (supostamente favorecida por “mais tempo livre”) não se acompanhou de maior satisfação, pelo contrário. A insegurança econômica, o medo de adoecer, o luto por parentes e amigos mortos, a falta de uma boa perspectiva a curto e médio prazos impactaram a qualidade do sexo num primeiro momento e, na sequência, reduziram a sua prática. Em contrapartida, a atividade sexual foi uma alternativa ao desânimo e a desesperança, porém para uma parcela menor de parceiros sexuais.
É evidente a repercussão dessa pandemia sobre a vida sexual dos que “adiaram” a iniciação sexual presencial, dos namorados que tiveram que se manter afastados, dos casais que desistiram de seu projeto de gravidez, dos viúvos, viúvas, separados que interromperam as tentativas de uma nova oportunidade... Mais um legado da pandemia que terá consequências não só imediatas (como as que acabei de citar) como futuras e sobre diferentes aspectos da vida. Basta imaginar o quanto é frustrante e crucial para alguém em idade avançada adiar a possibilidade de refazer sua vida afetiva e sexual, enquanto preciosos meses transcorrem. Talvez nunca consiga recuperar essa perda.
O livro aborda a importância de se iniciar a educação sexual mais cedo e de forma mais ampla (com inclusão, discussão sobre direitos e deveres etc). Como acha que o país está, nessa questão? O que seria necessário para melhorarmos?
No livro há um capítulo integralmente dedicado a esse aspecto. No meu modo de entender, a melhor educação sexual é aquela que se inicia dentro da própria família, a partir das primeiras perguntas da criança, as quais começam a ser formuladas antes até dos 3 anos de idade. O país pode melhorar nesse quesito, se entendermos a importância de uma educação sexual personalizada, ou seja, dirigida para cada criança e adolescente, considerando seu perfil, sua capacidade de compreensão, seu grau de amadurecimento, seus limites e suas possibilidades.
Adultos sexualmente “resolvidos” educam filhos e alunos para uma vida sexual saudável e, portanto, gratificante. Adultos sexualmente “resolvidos” dependem de educação sexual de qualidade, durante o seu desenvolvimento, desde a infância.
Para melhorar a educação sexual do Brasil, como de qualquer país, é necessário o educador conhecer de que forma e em que etapas da vida o sexo impacta a evolução das pessoas, genericamente falando. Depois, é necessário conhecer quem está sendo educado, para poder fazer frente às suas demandas específicas.
Educação sexual não é um capítulo à parte. É um tema que permeia todos os capítulos de nossa vida. Para saber mais, leia "Sexo no Cotidiano".
No livro, você questiona se a "assexualidade seria uma quarta orientação sexual". Como diferenciar essa característica de uma falta de interesse em sexo que seja provocada por algum problema físico ou emocional?
Diferenciar assexualidade (quarta orientação sexual?) de uma disfunção sexual, por falta de interesse em sexo, não é difícil. Enquanto o assexual convive bem, sem conflitos com essa sua característica, o disfuncional sofre por sua falta de desejo e pelo seu baixo desempenho. Essa falta de desejo, acompanhada de desempenho prejudicado, decorre de depressão, ansiedade, estresse pós-traumático, deficiência hormonal ou outras doenças sistêmicas. Essas doenças, por outro lado, não são as determinantes da assexualidade.
Relacionamentos abertos, poliamor, trisal... tudo isso tem sido discutido de maneira mais aberta hoje em dia. Você acredita que essas possibilidades podem ajudar na difícil tarefa de "manter a chama acesa"?
Ainda não se encontrou a receita para “manter a chama acesa”. Relacionamentos abertos, poliamor, trisal... são tentativas que até funcionam por algum tempo. No entanto, a chama eternamente acesa é um desafio, ao mesmo tempo que fisicamente impraticável.
Chama acesa significa paixão. E a paixão é efêmera, para que a vida seja preservada. O corpo não suportaria mais do que alguns meses (ou poucos anos) sob o impacto desse estado de intensa solicitação e intenso desejo, reação e desgaste. Além disso, nossa libido se restringiria a uma só situação, se apenas essa chama se mantivesse acesa. Dedicaríamos nossa existência a uma única causa. O que seria do nosso trabalho, dos nossos amigos, de nossa contemplação do mundo, nossos filhos, nosso sono? O que seria da nossa espécie?
"Sexo no Cotidiano - Atração, sedução, encontro e intimidade"
Autora: Carmita Abdo
IBSN: 978-65-5541-062-4
160 páginas
Editora Contexto
Tatiana Pronin
Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY e é membro da Association of Health Care Journalists. Twitter: @tatianapronin