Hoje, 29 de janeiro, é o Dia Nacional da Visibilidade Trans e é nesse contexto que a saúde, em seu sentido mais amplo, tem de ser trazida ao centro das discussões sobre os direitos e o respeito às pessoas trans.
Você já deixou de ir a algum lugar por medo de como as pessoas naquele ambiente iriam te receber? Agora imagine deixar de procurar atendimento médico por receio de que os profissionais não estejam preparados para entender seu corpo e, sobretudo, não acolher você de maneira respeitosa apenas pelo fato de ser uma pessoa trans. Para pessoas cis, parece até algo muito fora da realidade não procurar um hospital quando precisa, mas isso é rotineiro e muito presente entre homens e mulheres trans.
O criador de conteúdo digital Luca Scarpelli conta que já deixou de buscar atendimento médico por medo de que ocorresse alguma violência com seu corpo. “Estou precisando fazer um exame de ultrassom que está atrasado há mais de um ano, mas até agora não fui fazer porque não sei como vai ser esse atendimento e isso acaba me bloqueando muito”.
Pessoas não podem ser resumidas a uma genitália porque você não é só o seu pênis ou a sua vagina. Nesse sentido, uma pessoa trans também não pode ser vista apenas pela óptica do ginecologista ou urologista, por exemplo. Um simples procedimento estético é desejo de muitas pessoas, mas se torna uma questão e motivo de preocupação para quem não é cisgênero. “Como a equipe vai me tratar enquanto eu estiver sedado? Como aquelas pessoas irão lidar com meu corpo enquanto eu não tiver consciência do que está acontecendo?”, pontua Scarpelli.
Só quem é alvo de preconceito dia após dia consegue adquirir a infeliz perspicácia de reconhecer violências, que, muitas vezes, podem passar despercebidas pela maioria das pessoas. Um olhar diferente, uma risada sarcástica, um comentário maquiado de piadinha e por aí vai. São muitas as formas de discriminação contra a população LGBTQIA+ em diferentes ambientes e situações.
Luca conta que quando começou a sua transição, aos 26 anos de idade, buscou atendimento ginecológico em uma clínica particular de Belo Horizonte por achar que naquele ambiente seria acolhido; contudo, não foi isso o que aconteceu.
“Entrei no consultório e o médico começou o atendimento com uma série de piadas e comentários do tipo ‘Ah, mas você é tão bonita. Por que fazer isso?’ Eu estava acompanhado da minha mãe e ele não me explicou nada sobre o exame que faria em mim. Apenas mandou eu me deitar e abrir as pernas. Quando ele foi fazer o exame ginecológico de fato, me senti um pedaço de carne. Doeu demais. Saí de lá chorando.”
Essa situação descrita ocorreu em um ambiente particular, que Luca, mesmo tendo um atendimento ruim, pagou por essa consulta no anseio de que o valor pudesse garantir uma abordagem minimamente respeitosa.
O Ministério da Saúde, através do Sistema Único de Saúde (SUS), criou em 2003 uma Política Nacional de Humanização, que, entre outros objetivos, visa acolher @ paciente e atendê-l@ de forma resolutiva através da garantia de seus direitos. Mesmo passados anos desde sua implementação, essa política precisa ser implementada de maneira efetiva entre os profissionais, as equipes e os serviços de saúde. É desafiador gerir e garantir bom atendimento a todos os usuários do SUS, no entanto, direitos básicos devem ser respeitados e isso começa desde a recepção do hospital, por exemplo. No caso de pessoas trans, o respeito ao nome social e o uso correto dos pronomes já acolhe ou as afastam daquele ambiente. O acolhimento e o bom atendimento nos serviços de saúde, portanto, envolvem um desenvolvimento multiprofissional que impacta diretamente na adesão a um tratamento de saúde de um homem ou mulher trans que buscam atendimento e que, na maioria das vezes, estão vulneráveis e precisam de atenção às questões relativas à sua saúde.
Mais do que uma relação médico-paciente, o atendimento deve considerar a existência de uma pessoa ali e não um “ser desviante”. Para entender e atender de maneira correta, é preciso começar pelo básico, que é conviver com pessoas trans, principalmente quando falamos de profissionais de saúde.
“Dá para você ir a um centro de acolhida, conversar, olhar para aquelas pessoas enquanto ser humano. Porque isso traz uma série de sensibilidades e uma experiência de cidadania, mais do que uma relação profissional em um ambiente de hospital, por exemplo.” (Luca Scarpelli)
Ter uma pessoa trans na equipe de saúde também é uma forma de estruturar o serviço, porque quando uma pessoa que tem vivência integra a equipe, ela está muito mais sensível a todos os pontos que envolvem um atendimento a alguém não cis. Além do respeito aos pronomes, Luca também sugere a possibilidade de marcar agendas com pacientes trans em horários alternativos, em que a sala de espera não esteja lotada por homens ou mulheres cisgêneros. “É bastante constrangedor eu, um homem trans, estar em uma recepção repleta de mulheres esperando para serem atendidas pelo ginecologista.”
No Brasil de 2022 alguns ainda falam sobre sexualidade de uma forma pejorativa e imbuída de muita ignorância. Destruição das famílias e ideologia de gênero são duas das falácias mais repetidas de norte a sul, passando por Brasília e o Palácio do Planalto. Até porque falar mal de minorias que têm pouca representatividade e força política ainda dá voto, mesmo sendo um equívoco que custa muitas vidas, aliás.
Confira:
O relatório de 2021 da Transgender Europe (TGEU), que monitora dados globalmente levantados por instituições trans e LGBTQIA+, 70% de todos os assassinatos registrados aconteceram na América do Sul e Central, sendo 33% no Brasil, seguido pelo México, com 65 mortes, e pelos Estados Unidos, com 53. Os dados apontam também que, nos últimos 13 anos, pelo menos 4.042 pessoas trans e de gêneros diversos foram assassinadas entre janeiro de 2008 e setembro de 2021.
Há uma sucessão de negação de direitos – que não são privilégios – à população LGBTQIA+ no Brasil; porém, quando se fala em pessoas trans a realidade tende a ser um pouco mais dura. A taxa de desemprego entre as pessoas que integram a comunidade é de 17,15%, mas, quando analisadas apenas as pessoas trans, o percentual sobe para 20,47%.
Segundo um levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transsexuais (Antra), 90% dessa população no Brasil tem a prostituição como fonte de renda e possibilidade de subsistência, ou seja, é a rua quem “acolhe” diante de portas fechadas e oportunidades negadas. Nesse sentido, não é muito difícil pensar que a marginalização dessas pessoas acarreta mais desigualdade social e de saúde também. Então, ser uma pessoa não cis no Brasil é tentar sobreviver todos os dias em meio a “tiro, porrada e bomba”.
O conteúdo foi atualizado em 31/01/2022, às 10:07.
Esta coluna não reflete, necessariamente, a opinião do Site Doutor Jairo.
Veja também:
Anderson José
Estudante de medicina na Ufac (Universidade Federal do Acre), autor do podcast Farofa Médica e da página de Instagram @oiandersao