Redação Publicado em 27/03/2021, às 16h05
Muita gente pode achar estranho um rabino falar sobre sexo, já que, ao longo dos séculos, diversas religiões manifestaram muita repressão em relação ao tema. Mas isso é o que faz o rabino e escritor Nilton Bonder no livro “Cabala e a arte de apropriação do sexo” (Ed. Rocco), o quarto da série “Reflexos e Refrações”.
As funções do sexo e sua importância para uma uma vida plena e satisfatória foram tema de um papo entre Bonder e Jairo Bouer às vésperas do início do Pessach, a festa que celebra a libertação do povo judeu da escravidão, no Egito. Em hebraico, "Pessach" significa “passagem”, e simboliza não apenas a movimentação daquele grupo, mas também o caminho da escravidão para a liberdade, no seu sentido mais amplo.
OK, mas o que sexo tem a ver com judaísmo, e o que seria a “arte da apropriação”, nesse contexto? Em primeiro lugar, é preciso entender que, para a tradição judaica, o sexo não é um tabu, muito pelo contrário. Bonder explica que todo rabino é obrigado a ter uma vida sexual, casar, ter uma família etc. Tanto que uma das poucas justificativas para requerer um divórcio é a pessoa não ter saciedade sexual. E estamos falando de milênios atrás!
“Claro que existem grupos mais radicais, em que há o puritanismo, e a sexualidade feminina é tratada de forma diferente”, explica o rabino. Mas ele esclarece que o Talmude, uma coleção de textos antigos sobre os costumes judaicos, aborda o sexo de maneira muito direta.
Em seu novo livro, Bonder usa o sistema de interpretação da Cabala, popularmente conhecida como o "misticismo judaico", para olhar o sexo e a libido não só do ponto de vista físico, mas também emocional, intelectual e espiritual, ou existencial. “Tudo está interligado nessa experiência, tudo é sexualidade, essas coisas se entrelaçam sistemicamente”, descreve.
O escritor brinca que aquele seu amigo musculoso, que sai toda noite, pode até ser uma fonte de pesquisa para entender o que é o sexo no sentido libidinal, mas é possível que essa pessoa tenha extrema dificuldade de formar vínculos de intimidade, ou até tenha problemas profundos de identidade de gênero.
É com a história acima que o rabino dá uma ideia clara sobre as diferentes dimensões do sexo, também sugeridas no subtítulo do livro. Sexo tem a ver com libido, sim, mas também com intimidade, gênero e nubilidade. Este último conceito, aliás, é extremamente importante para entender os argumentos do escritor. O que é ser núbil? No sentido amplo, ou jurídico, significa alcançar uma idade adequada para casar. Mas, de acordo com a Cabala, a nubilidade simboliza aquele desejo inexplicável e fortíssimo que as pessoas têm de se unir a alguém que também possua esse desejo profundo de se entregar e formar um relacionamento.
A dinâmica de cada uma das dimensões do sexo também é diferente: “A libido, o desejo sexual, é febril; a intimidade não é febril, ela é uma floração”, comenta Bonder. “A flor fica exuberante de cor, de fragrâncias, para atrair o outro”, continua. Mas as pessoas, muitas vezes, cometem o erro de destruir a intimidade ao acender a luz e perguntar “como foi para você?”, segundo o rabino. É a mania, clássica, de invadir algo que precisa florescer com aspectos febris.
Por incrível que pareça, Bonder afirma que a nubilidade também é febril. Assim como quem morre de desejo sexual é capaz de fazer uma loucura, a pessoa núbil tem de estar como que embriagada para fazer essa aposta de se unir a alguém, “investir dinheiro e sacrificar sua liberdade para poder curtir essa dimensão erótica que existe em todos nós”.
Porém, para usar uma frase bastante comum, “a gente faz tudo errado”. O autor acredita que a pior coisa que se pode fazer é casar por amor ou por tesão. Pois assim que o amor passa e a vida sexual vira rotina, o relacionamento começa a ter problemas. Diferente de uma união que se estabelece pelo desejo erótico da nubilidade.
Mas o amor não é incondicional? Bonder garante que não. "O amor é um sentimento que está condicionado a, por exemplo, o outro ser amoroso comigo", alfineta. Até com os filhos é assim, no seu entendimento: “O vínculo é incondicional, mas eu não tenho que amar meu filho se ele me agride.”
E quanto à apropriação? Esse é outro conceito que precisa ser explicado aqui, já que, à primeira vista, o título do livro pode fazer algum desavisado achar que fazer sexo é se apropriar de alguém. Para Bonder, é exatamente o oposto. Em primeiro lugar, ele diz que o sexo é uma disposição, não uma emoção. Tanto que ele considera "fazer amor" uma expressão equivocada. A libido ocorre dentro de cada um, embora a experiência sexual seja vivida a dois e o tesão possa ser despertado pelo outro. Donde se extrai a principal mensagem do rabino: o sexo é um dos elementos (não o único, veja bem) que permitem que a gente se aproprie de si mesmo.
Nos outros livros da série, Bonder se aprofunda sobre a alegria e as ambições, que para ele também são "disposições", assim como o sexo – algo que existe em todos nós, mas que exige um movimento nosso para se concretizar. Segundo a Cabala, se tivermos uma vida alegre, com ambições, e também tivermos sexo saudável, poderemos nos apropriar de nós mesmos. E, com isso, não haverá espaço para aquelas crises existenciais comuns, em que a pessoa não consegue se encontrar, ou se reconhecer no personagem que ela escolheu encarnar.
No fim da live, Jairo Bouer provoca o autor do livro com a pergunta de um espectador sobre a questão da nubilidade – seria ela a disposição para “ser preso”? Bonder responde essa e outra pergunta, de Bouer, sobre o que o Pessach simboliza num momento trágico como o atual, de pandemia e isolamento.
Por incrível que pareça (de novo), o rabino consegue conectar os temas. Bonder conta que, ao serem libertados do Egito, aqueles escravos não saíram para curtir a vida feito playboys, e aproveitar tudo o que era possível. Eles decidiram viver de acordo com os “Dez Mandamentos”, o conjunto de leis que Moisés teria recebido de Deus, no Monte Sinai, e que também fundamenta o cristianismo.
Da mesma forma que aquela escolha representava um compromisso com a vida em comunidade, Bonder relata que, para quem é núbil, o compromisso liberta, em vez de aprisionar. “Claro que ao se casar a pessoa vai ter alguém no seu caminho (...), mas isso é um enriquecimento enorme para a vida”, avalia. Mesmo aquelas pessoas que se casam várias vezes sabem o quanto o compromisso aprofunda a vida a dois. Ser maduro, afinal de contas, é isto: se libertar, mas com compromissos, aprofundamentos e vínculos.
Bonder concorda que, neste momento pandêmico, estamos aprisionados. Mas, do ponto de vista da oportunidade de se comprometer, como cidadão, este é um período extremamente rico, na visão dele. “Claro que a gente quer o fim dessas mortes (...), a gente não quer mais ser os escravos, como eram aqueles do Egito, mas eu espero que, ao voltar à normalidade, a gente tenha amadurecido um pouquinho", finaliza. É torcer para que as pessoas não sigam seu instinto infantil de fugir das coisas e optar pelo que é mais confortável.
Veja a live completa: