Henrique Cardoso Cecotti* Publicado em 10/02/2022, às 13h00
No último dia 03/02, faleceu a enfermeira Edmara Abreu, de 42 anos, após ser diagnosticada com hepatite fulminante. Na tentativa de salvar sua vida, foi realizado um transplante hepático, mas ela acabou não resistindo.
Durante a investigação do motivo da doença, a família descobriu que Edmara fazia uso de um chá emagrecedor com 50 plantas e ervas medicinais que prometia “perda de peso”. O produto não tinha registro para comercialização pela Anvisa.
O que chamou a atenção em sua história não foi só o seu fim catastrófico. Foi também o fato de que a enfermeira morreu tentando resolver um problema corriqueiro – perder peso – com uma solução não menos comum - uso de plantas, chás naturais, tidos como menos tóxicos.
Essa cena é tão frequente, que vale pararmos um pouco para refletir sobre as inúmeras vezes em que tomamos atitudes como as da enfermeira Edmara e entendermos do que ela foi vítima.
Que o uso de produtos naturais faz parte de nossa cultura, não temos nenhuma dúvida. Tribos indígenas usavam folhas e ervas para curar doenças e nossas avós nos davam chás para resolver de pedra nos rins a dor de cabeça. Talvez do fato de estarem no nosso cotidiano venha a ideia de que são mais “leves” ou “que não farão mal para a saúde”.
Acontece que produtos naturais como chás e ervas são compostos por substâncias químicas. Quando buscamos suas ações farmacológicas, ou seja, de modificação de alguma função do corpo (chás diuréticos, guaraná para ter energia etc.), estamos utilizando-os justamente como medicações. E, assim como com qualquer medicação, natural ou não, existe dose ideal, metabolização e efeitos colaterais.
Então o que diferencia um remédio natural de uma medicação sintética ou de farmácia? A principal diferença está na segurança: nas medicações de farmácia, a substância que se quer usar está isolada, com dose conhecida, já foi testada e tem sua ação, metabolismo e efeitos colaterais mapeados, além da fiscalização do processo de produção em si. Já quando usamos um chá, por exemplo, mesmo que ele tenha a mesma substância, não conhecemos sua concentração e aí está o risco. O que diferencia um remédio de um veneno é justamente a dose.
Isso sem falar nas interações e riscos de contaminação. Substâncias com as que Edmara usou, com uma mistura de dezenas de tipos de ervas, podem ter interações entre si e com outras medicações, além de substâncias não declaradas para garantir o resultado, com efeitos colaterais imprevisíveis e até mesmo fatais, como foi o caso. As substâncias da fórmula "50 ervas emagrecedor", usadas pela enfermeira, eram sabidamente tóxicas para o fígado.
Confira:
Agora, se nos distanciarmos do processo farmacológico em si e olharmos numa perspectiva mais ampla, encontraremos ainda um segundo fator responsável pela morte de Edmara: a própria busca pela fórmula de emagrecimento.
Muitas pessoas podem pensar agora que talvez a morte da enfermeira tenha ocorrido por um motivo banal – a busca por um corpo mais magro. Edmara foi, no entanto, mais uma entre milhares de homens e mulheres insatisfeitos com o próprio corpo e peso, e que buscou uma solução para o seu problema.
Nossa sociedade enaltece corpos magros e jovens. Ao mesmo tempo, obriga as pessoas a trabalharem por longas horas, estressadas, com muita cobrança, bombardeadas por propagandas de fast-food, o que as leva exatamente na direção oposta da magreza.
Edmara foi uma vítima cotidiana de um mundo que permite um corpo normal – de uma pessoa que trabalha, dá plantão, cuida de família, da casa e de si própria – mas que exige um corpo magro padrão para chamar de bonito. E ela, possivelmente, assim como tantas outras, não queria viver insatisfeita. Todo mundo quer se sentir bem com aquela roupa que viu no shopping, e se sentir bonito ou ir à praia sem se sentir julgado. Para resolver isso, as pessoas estão dispostas a achar um meio.
Infelizmente, nessa insatisfação muita gente vê uma oportunidade de lucro. Não apenas a empresa que vendia irregularmente a fórmula que Edmara comprou (que já teve seu comércio negado em 2020 pela Anvisa), mas também médicos e profissionais charlatões. O segredo do sucesso: a venda de um resultado fácil e certo. A fórmula em questão tinha em seu rótulo “emagreça sem dieta”. É fácil entender que alguém caia nessa armadilha quando o descontentamento com o corpo vem de muito tempo.
Nesse ponto, mesmo profissionais sérios têm sua parcela de culpa. Obesidade e ganho de peso muitas vezes são vistos como culpa da pessoa, mesmo por médicos e nutricionistas bem formados. Os pacientes raramente são orientados de que obesidade é uma doença crônica, que requer tratamento de longo prazo, multidisciplinar e, frequentemente, com medicações. Do ponto de vista do indivíduo, é natural, então – uma vez que a culpa "é dele", que vá atrás de suas próprias maneiras de resolver o problema, sem saber dos riscos que corre.
Casos como os de Edmara poderiam acontecer todos os dias. Ela foi vítima do encontro explosivo e fatal de uma mistura de chás e ervas com pressão estética, desinformação intencional e falta de informação de qualidade.
*Henrique Cardoso Cecotti é endocrinologista