Jairo Bouer Publicado em 11/10/2020, às 08h00 - Atualizado às 08h44
Aos 15 anos de idade, Júlia Mussak decidiu que queria morrer. Ela tentou suicídio quatro vezes, para não falar nas ocasiões em que “dançou com a morte” ao misturar remédios e álcool. De onde vem essa dor que supera o instinto de viver? Ela descreve no e-book “Eu e Meu Monstro – A vida de uma menina presa no inferno de sua própria mente”.
O título e os capítulos inspirados em fantasia, com belas ilustrações de Daniel Mustafa, contrastam com o relato da jovem, que é extremamente realista e honesto. “Criei o pesonagem do Monstro como materialização da dor invisível, dor da alma, para que todos pudessem entender como transtornos mentais são cruéis”, conta ela, hoje com 21 anos.
Você já deve estar se perguntando qual o nome do monstro de Júlia, ou melhor, seu diagnóstico. Mas a resposta é complicada, o que já é uma lição importante para leigos: diagnósticos psiquiátricos são complexos e não se resumem a um rótulo simples, que alguém adquire numa única consulta ao médico e muito menos em testes de revista.
Segundo o psiquiatra e a psicóloga, Júlia tem traços do transtorno de personalidade borderline, uma condição complexa que envolve impulsividade, instabilidade emocional e um medo descomunal de rejeição. Ela também sofre de transtornos alimentares e traços obsessivo-compulsivos. Seus maiores inimigos atuais, porém, são a insônia e a ansiedade: “Eu sofro com vício absurdo em medicamentos hoje, trabalho com meu psiquiatra para lidar com isso, mas tem sido difícil.”
Esta é outra lição importante do livro: assim como o diagnóstico é complexo, não existe solução fácil ou rápida para transtornos mentais. Alguns remédios usados em situações emergenciais podem, mesmo, causar dependência. É por isso que o tratamento deve envolver psicoterapia (fundamental para modificar crenças e comportamentos), visitas regulares ao psiquiatra, mudanças no estilo de vida e, muitas vezes, ajuda de outros profissionais, como clínico geral, nutricionista ou educador físico.
Um dos recursos que ajudou Júlia foi a terapia comportamental dialética, um tipo de psicoterapia criado justamente para pacientes com transtorno de borderline, e que também tem apresentado resultados positivos para quem sofre de transtornos alimentares. Um dos pilares são os treinos de habilidades: “Eu aprendi a reconhecer meus comportamentos de risco, meus pensamentos disfuncionais, e percebo quando vou entrar em crise. Assim, consigo evitar que o Monstro me dê uma surra”, explica.
O trabalho voluntário com crianças com câncer (elas têm um destaque especial no livro) também teve importância para Júlia. Segundo ela, ensinou que nunca vamos entender a morte, e que uma dor não deve ser ignorada só por ser invisível.
Por falar nas crianças, vale comentar que O Monstro apareceu cedo na vida de Júlia: “Aos 5 anos, me olhei no espelho por alguns minutos e me questionei o motivo de estar viva. Nada fazia sentido para mim. Eu não via graça em nada, nem na escola, nem nos brinquedos, em nada”.
Para muitos pais, nem passa pela cabeça a ideia de que uma criança possa desejar a morte, mas isso é algo que precisa mudar – a taxa de suicídios na faixa dos 10 a 14 anos, no Brasil, embora baixa, tem crescido muito nos últimos anos. Em outros países, como os EUA, o número já supera o de mortes por acidentes nessa faixa etária.
A maioria dos transtornos mentais se inicia na juventude. Mas também não é fácil, para pais e cuidadores, diferenciar os sintomas de um transtorno mental do sofrimento típico da adolescência. Afinal, é uma fase marcada por pressões na escola, dúvidas sobre o futuro, comparações constantes com os colegas, desilusões amorosas, anseio pelo sexo e acesso a álcool e outras substâncias que trazem alívio temporário para a dor emocional, o tédio e a timidez.
Em muitos aspectos, a vida de Júlia não é muito diferente da vida de qualquer adolescente de classe alta. Mas é justamente nestas experiências comuns para tantos jovens que se escondem alguns fatores de risco importantes para os transtornos mentais. É o caso das diferentes formas de violência doméstica, do abuso de álcool e remédios para dormir, e até das crenças sobre masculinidade que fazem homens acreditarem, desde cedo, que mulheres estão disponíveis para o sexo só porque bebem.
Vale dizer que, no contexto do transtorno de borderline, sexo e relacionamentos tendem a ser ainda mais complicados, já que a necessidade acentuada de validação esbarra sempre na instabilidade da autoimagem e na raiva de si mesmo. A preocupação excessiva com a imagem corporal, presente nos transtornos alimentares, também prejudica muito esse aspecto da vida. Júlia dá uma ideia dessas dificuldades ao revelar que “se desligava” na hora do sexo, e que se esforçava para não reclamar de posições que, para ela, eram “traumatizantes”.
Ainda que não tenha esse objetivo, o livro toca em questões culturais e emocionaispresentes na vida não só dos adolescentes, e que têm impacto direto na saúde mental. Negligenciá-las vai permitir que muitos monstros sejam alimentados por aí.
“Eu e Meu Monstro – A vida de uma menina presa no inferno de sua própria mente”
E-book disponível na Amazon ou no Kindle Unlimited
Versão física disponível no Mercado Livre
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