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Bebê Rena: stalkers e perseguidos precisam de tratamento

Os atores Richard Gadd e Jessica Gunning, Donny e Martha, em cena de Bebê Rena: tudo começou com um chá - Divulgação Netflix
Os atores Richard Gadd e Jessica Gunning, Donny e Martha, em cena de Bebê Rena: tudo começou com um chá - Divulgação Netflix

De vez em quando surgem algumas obras que mexem com o público e viram assunto em todas as rodas de conversa. A mais recente delas é a minissérie britânica Bebê Rena (Baby Reindeer, 2024) que em poucos dias de exibição na Netflix se tornou um fenômeno. Trata-se de uma adaptação do show solo homônimo de Richard Gadd, criada e estrelada por ele e baseada em fatos que aconteceram na vida real do ator, que foi "stalkeado", ou seja, perseguido por uma mulher por muitos meses.

A palavra stalker, perseguidor, já entrou no vocabulário de muitos brasileiros, na maioria das vezes em tom de brincadeira. Se pensarmos bem, todos já fomos stalkers em algum momento da vida, seja olhando as redes sociais de determinada pessoa, ou indo ao mesmo lugar no qual ela costuma ir com alguma intenção.

Quando isso passa a ser algo doentio e perigoso, como na série?

Para Andreza Thans, psicóloga clínica especializada em psicoterapias de bases cerebrais e neuropsicóloga pela Universidade de São Paulo (USP), a distinção entre um comportamento socialmente aceitável e o stalking patológico reside na persistência, na intrusividade e no impacto emocional sobre a vítima: "O stalking se torna patológico quando há uma fixação que transcende a norma social, caracterizada por uma obsessão que leva a comportamentos invasivos e não consensuais. Essa obsessão frequentemente se baseia em uma falsa percepção de intimidade ou direito sobre a vida da vítima, podendo ser alimentada por fantasias delirantes ou uma necessidade de controle. A transição do comportamento normal para o patológico é marcada por uma deterioração da capacidade de reconhecer e respeitar os limites pessoais e sociais, levando a ações que causam desconforto, medo ou perigo à vítima".

O psicoterapeuta e psiquiatra do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP Luiz Cuschnir explica que buscar um contato mais constante, ou até só vigiar os passos do outro com mais frequência, virtualmente, não entraria na categoria perseguição, pois pode ocorrer sem a pessoa saber. O estar ligado emocionalmente em alguém, de forma positiva ou negativa, pode estimular esse comportamento. Ele ressalva que justamente nesses casos, às vezes de modo impulsivo, pode ocorrer o contrário: a pessoa apaga o contato e se exclui para anular um relacionamento.

"O preocupante é quando essa perseguição fica desmedida. Por que estou usando esse termo? Estar entregue a essa perseguição atingindo realmente a outra pessoa, invadindo, cobrando, amedrontando o outro, é um indício de que está havendo uma atitude agressiva ou perversa que pode trazer danos", diz o psicoterapeuta.

Sem noção

Uma pessoa que persegue uma outra de forma sistemática, extrapolando qualquer limite, tem noção do que está fazendo? Andreza conta que a capacidade de um stalker reconhecer a inapropriabilidade de suas ações varia significativamente e é complicada pela presença de transtornos psicológicos. Por exemplo, indivíduos com transtornos de personalidade ou delirantes podem não perceber a natureza prejudicial de suas ações, vendo-as como justificadas ou até necessárias. Esta falta de autoconsciência é um obstáculo significativo ao tratamento, pois a percepção distorcida da realidade impede o reconhecimento da necessidade de mudança. A intervenção precoce, quando a autoconsciência ainda pode ser acessada e influenciada, é crucial para o sucesso do tratamento.

Para Cuschnir, só se ela perceber que está colocando o que sente em algum lugar errado ou da forma errada. Portanto um mínimo de autoconhecimento acrescido de um dimensionamento do que está ocorrendo consigo e com o outro, pode gerar esse 'cair a ficha'. "Senão, alguém ou algo vai apontar de fora para ela o que está ocorrendo".

Stalking e transtornos mentais

Como se pode perceber, um stalker provavelmente tem algum transtorno mental, e quais seriam os mais comuns? Andreza explica que a relação entre stalking e transtornos psicológicos é complexa. Psicopatia e sociopatia, em particular, são transtornos de personalidade antissocial que se caracterizam por uma falta de empatia, manipulação e comportamento antissocial.

"Stalkers com essas características podem exibir um risco particularmente alto de comportamento perigoso, devido à tendência à impulsividade, falta de remorso e falha em aprender com as consequências de suas ações. O tratamento desses indivíduos é desafiador, exigindo abordagem especializada em eventos traumáticos como as Psicoterapias Americanas de Bases Cerebrais como EMDR (Dessensibilização e Reprocessamento através do Movimento dos Olhos), Brainspotting (técnica de psicoterapia que tenta ajudar as pessoas a processar traumas psicológicos ou outros problemas por meio de movimentos oculares) e Somatic Experiencing (terapia corpo-mente focada especificamente na cura de traumas, ajudando pacientes a chamar a atenção para seus corpos) aliadas à neurociência, que é o que temos de mais moderno e atualizado no mercado de psicoterapias com foco em traumas complexos. A intervenção psiquiátrica se faz necessário, e em alguns casos, supervisão legal", diz a psicóloga.

Cuschnir diz que pesquisando um pouco a história da pessoa, encontramos de onde vem esse caminho que gerou a perseguição. Ela pode ter sido desvalorizada ou rejeitada e passou a valorizar alguém com a ilusão de que, dessa forma, recuperaria o que sente que perdeu de um modo insistente, pressionando o outro. A atitude de stalkear dá um poder falso que se imagina transformando essa rejeição. "Situações que ocorreram com essa pessoa, sem respeitar as suas limitações, podem gerar uma retaliação ao objeto de interesse ou até ser transferida para uma outra relação, muitas vezes na sequência de um mesmo tipo de relacionamento. Por exemplo, um namoro que segue após um outro".

Na série, tudo começa quando Donny, trabalhando em um pub, oferece um chá para uma mulher, Martha, que entrou chorando, e sem dinheiro no local. Ela se encanta com ele. E ele sente empatia por ela. Porém, mesmo com a perseguição passando a ser descabida, o rapaz não consegue delatá-la à polícia. À certa altura, ele comenta que ela o fez deixar de se sentir invisível.

Sentir-se lisonjeado

Este tipo de reação pode ser considerada normal? Em um primeiro momento o stalkeado se sentir lisonjeado com a situação? Isso mostra que ele também pode ter algum "problema" ou estar passando por uma fase complicada?

"Não é normal, mas pode acontecer. Há pessoas que têm uma certa imunidade e se blindam muito bem para não entrarem na situação. Outras iniciam com culpa ou pena de quem está fazendo isso e acham que vão conseguir 'consertar' a pessoa e transformar a situação. E podem estar se sentindo culpadas em deixar a pessoa tão carente", observa Cuschnir, que completa: "E há aquelas que se alimentam das investidas para se autovalorizarem ou até fazerem a 'autopropaganda' do quanto são desejadas (comum em homens). Isso equivale a necessidade de preencher-se pelo oposto, por precisarem disso, pois não estão satisfeitas com o que acham de si próprias. Se não forem muito procuradas, no fundo estarão se sentindo não confirmadas, interessantes, etc.".

Andreza lembra que a experiência de ser stalkeado é profundamente perturbadora e pode ter um impacto duradouro na saúde mental e no bem-estar da vítima. Inicialmente, a atenção pode ser interpretada de forma positiva, mas essa percepção muda rapidamente à medida que o comportamento se torna mais intrusivo e ameaçador. “A vítima pode desenvolver ansiedade, depressão, transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), entre outros problemas. O apoio psicológico para vítimas de stalking deve ser sensível e abrangente, abordando o trauma vivenciado e fornecendo estratégias para recuperar o senso de segurança e autonomia”, admite.

Tem tratamento?

Uma das dúvidas que surge é se as pessoas que se tornam stalker têm tratamento que possa fazer com que parem de agir desse modo. Andreza diz que ao abordar a terapia para indivíduos envolvidos em situações de stalking, tanto para o stalker quanto para a vítima, é crucial reconhecer a necessidade de uma abordagem psicoterapêutica abrangente como as mencionadas por ela acima (Psicoterapias de Bases Cerebrais) e que vão além das intervenções psicoterapêuticas tradicionais. O tratamento deve ser personalizado, considerando as circunstâncias únicas e as necessidades psicológicas de cada indivíduo.

Ela diz que paa o stalker, o tratamento frequentemente requer uma combinação de psicoterapia de base cerebral, medicação (quando transtornos psiquiátricos coexistentes estão presentes) e, em alguns casos, programas de intervenção específicos para agressores. As psicoterapias americanas EMDR, Brainspotting e Somatic Experiencing (explicadas acima) podem ajudar o indivíduo a reconhecer e modificar padrões de pensamento distorcidos que contribuem para o comportamento de stalking, enquanto a medicação pode ser útil no tratamento de transtornos de humor ou ansiedade subjacentes que exacerbam o comportamento obsessivo-compulsivo.

“Além disso, é essencial abordar questões de autoestima e habilidades sociais no tratamento de stalkers. Muitos indivíduos que exibem comportamentos de stalking lutam com baixa autoestima e dificuldades nas relações interpessoais. Programas que focam no desenvolvimento de habilidades sociais e na construção de uma autoimagem positiva podem ajudar a reduzir a dependência do indivíduo na obsessão como meio de validação”, define a psicóloga.

Ela frisa que o apoio psicológico é vital para quem foi stalkeado, o que inclui as psicoterapias de bases cerebrais, como as mesmas citadas para o stalker, para ajudar a vítima a processar a experiência traumática, desenvolver estratégias de enfrentamento e reconstruir a sensação de segurança. A terapia pode também focar no fortalecimento da autoestima, que muitas vezes é erodida pela experiência de ser perseguido e sentir-se impotente.

“O fortalecimento da autoestima é particularmente importante, pois o stalking pode deixar a vítima sentindo-se vulnerável, desvalorizada e isolada. Trabalhar para reconstruir a confiança em si mesmo e nas próprias percepções é crucial para a recuperação. Isso pode ser alcançado por meio de técnicas que promovam a autoafirmação, o estabelecimento de limites saudáveis e o desenvolvimento de um senso de controle pessoal”, aconselha a psicóloga.

Além da terapia individual, ela lembra que grupos de apoio podem oferecer um espaço valioso para vítimas de stalking compartilharem suas experiências e estratégias utilizadas para lidar com a situação. E podem proporcionar um senso de comunidade e compreensão que é muitas vezes perdido no isolamento causado pelo stalking.

Internet facilitou o stalking?

A internet, e as redes sociais, acabaram facilitando a vida dos stalkers ou não? “Não diria que ampliaram. Acho mais que serviram como uma plataforma que pode ser usada como muita facilidade para que isso ocorra. A maior exposição e a facilidade de obter as informações são um terreno fértil para o stalker”, diz Cuschnir.

Andreza concorda: “A proliferação das tecnologias digitais e das redes sociais transformou o panorama do stalking, oferecendo novos meios para a perseguição e o assédio. Essas plataformas permitem que eles monitorem e interajam com suas vítimas com um anonimato e uma persistência sem precedentes. O desafio para profissionais e legisladores é desenvolver estratégias eficazes que abordem a natureza mutável do stalking na era digital, incluindo a educação sobre segurança na internet, o desenvolvimento de leis que acompanhem as tecnologias emergentes e a criação de recursos de apoio acessíveis para vítimas de cyberstalking”.

Ela acrescenta que a abordagem ao stalking, portanto, requer uma compreensão profunda e multifacetada que abrange aspectos psicológicos, legais e tecnológicos. A colaboração entre profissionais de saúde mental, autoridades legais e tecnólogos é fundamental para desenvolver estratégias eficazes de prevenção e intervenção, garantindo a segurança e o bem-estar das vítimas enquanto se aborda a complexidade do comportamento dos stalkers.

Presos, mas sem tratamento

Muitos stalkers acabam presos e não chegam a ter um tratamento psicológico adequado, o que faz pensar que, ao saírem, podem continuar a ter o mesmo comportamento. “Se não for um desvio incurável da personalidade e do caráter, sempre há a possibilidade de um aprendizado, se vai ser por um meio jurídico. O ideal é que haja uma psicoterapia psicodinâmica que trabalhe a raiz da situação e não somente aprender como deveria se comportar, assim a chance é grande de mudanças”, diz o psicoterapeuta.

Andreza concorda que a intervenção legal é uma ferramenta crucial no combate ao stalking, proporcionando proteção imediata às vítimas por meio de ordens de restrição e outras medidas. “No entanto, sem abordar as causas subjacentes do comportamento do stalker, as soluções legais oferecem apenas um alívio temporário. A integração de estratégias legais e terapêuticas é essencial para um tratamento eficaz, visando não apenas deter o comportamento imediato, mas também reduzir o risco de recorrência a longo prazo”.

A psicóloga acrescenta que em ambos os casos, a colaboração entre profissionais de saúde mental, autoridades legais e organizações de apoio é fundamental para fornecer uma rede de segurança e suporte. Para o stalker, essa colaboração pode incluir a supervisão para garantir a adesão ao tratamento e prevenir a recorrência do comportamento. Para a vítima, pode envolver assistência na navegação pelo sistema legal para obter proteção, bem como acesso a recursos de segurança e recuperação.

"Em resumo, o tratamento do fenômeno do stalking exige uma abordagem global e multifacetada que aborde tanto as necessidades psicológicas do stalker quanto da vítima. O fortalecimento da autoestima, o desenvolvimento de habilidades sociais e interpessoais, e a reconstrução do senso de segurança e autonomia são componentes cruciais dessa abordagem, visando uma recuperação completa e a prevenção de futuros incidentes", finaliza Andreza.

Fontes:
Andreza Thans: psicóloga clínica especializada em psicoterapias de bases cerebrais e neuropsicóloga pela USP, diretora da clínica Limbikus, palestrante e escritora.
Luiz Cuschnir:  psicoterapeuta e psiquiatra, autor de 17 livros, Chefe do Grupo de Psicoterapia Gender Group no Instituto de Psiquiatria do HC da FMUSP. Autor do seriado “Solidão e o Despertar do Ser – à luz da Física Quântica e Espiritualidade" (em pré-produção)

Cármen Guaresemin

Cármen Guaresemin

Filha da PUC de SP. Há anos faz matérias sobre saúde, beleza, bem-estar e alimentação. Adora música, cinema e a natureza. Tem o blog Se Meu Pet Falasse, no qual escreve sobre animais, outra grande paixão.  @Carmen_Gua