O cérebro acaba sendo um alvo fácil durante o processo de doença por diversos acontecimentos em simultâneo no corpo
Cármen Guaresemin Publicado em 16/07/2021, às 10h00
Desde que a pandemia do novo coronavírus começou, no fim de 2019, a cada dia ficamos sabendo de alguma parte do corpo que é prejudicada por ele. Problemas respiratórios e nos vasos sanguíneos foram os mais apontados no início, porém, o vírus Sars-Cov-2, causador da doença Covid-19, também pode atacar o cérebro, como vários estudos vêm demonstrando desde então.
“O cérebro acaba sendo um alvo fácil durante o processo de doença por diversos acontecimentos em simultâneo no corpo. É exatamente por isso que muitas pessoas que foram infectadas pelo vírus Sars-Cov-2 relataram, após algum tempo, sequelas neurológicas, que incluem fadiga, sensação de falta de ar, dores musculares, cefaleia, tontura frequente, dificuldades de memória e concentração, além de insônia”, explica Gabriel Novaes de Rezende Batistella, médico neurologista e neuro-oncologista, membro da Society for Neuro-Oncology Latin America (Snola).
Ele explica que pelo menos quatro motivos estão ligados a esse ataque ao cérebro: a disfunção sistêmica, a disfunção do sistema renina-angiotensina, a disfunção imune e a invasão cerebral pelo próprio vírus. Abaixo, ele explica cada um:
Batistella explica que, quanto à disfunção sistêmica (o corpo em sofrimento), durante a doença, o organismo pode sofrer de inúmeras formas, mas uma bem chamativa para os médicos e muito temida pelos pacientes é a dificuldade de oxigenação do corpo, por frequente acometimento dos pulmões. Oxigênio é um alimento insubstituível para o cérebro, então, mesmo que ele não seja diretamente atacado pelo vírus, o simples fato de uma menor oxigenação já irá exigir mais trabalho desse órgão.
O novo coronavírus prejudica vários sistemas no nosso corpo, e um deles é um complexo sistema (renina-angiotensina) que faz com que nossas veias e artérias fiquem saudáveis na parte de dentro, na famosa camada do endotélio, uma estrutura que se parece com uma película interna em uma mangueira. O médico conta que essa película tão importante ajuda o sangue a passar sem formar trombos, ou seja, a permanecer no estado líquido, “fino”. Quando essa película fica danificada pode desenvolver tromboses, justificando a frequência desse sintoma nos pacientes.
Já em relação à disfunção imune, Batistella diz que é sabido que o corpo está inflamado (e muito). Isso acaba de certa forma “bombardeando” o cérebro com citocinas e outros fatores pró-inflamatórios, dificultando o trabalho dos neurônios e das células que dão suporte aos neurônios. O que, muito possivelmente, também explica algumas confusões mentais, sonolência, apatia, e até mesmo delírios. Ele diz que os neurologistas acreditam, também, que essa disfunção explica algumas raras doenças neurológicas, como síndrome de Guillain-Barré e outras que costumam ‘caminhar’ juntas durante o processo infeccioso.
No caso da invasão cerebral pelo próprio vírus, isso ocorre e parece ser comum pelos estudos de autópsia, mas, curiosamente, não parece ter relação com a gravidade da doença. “Sendo assim, mesmo que encontremos o vírus no cérebro, isso não diz que será grave, ou que irá desenvolver danos neurológicos. Aparentemente os outros mecanismos que citei mais acima são bem mais responsáveis por tudo o que venha a ocorrer no cérebro”, explica o médico.
Já um estudo, realizado por pesquisadores da Escola de Medicina da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, forneceram evidências de que o Sars-Cov-2 causou profundas mudanças moleculares no cérebro de quem morreu de Covid, mesmo não havendo traço molecular do vírus no tecido cerebral. Segundo os pesquisadores, os sinais que o vírus deixa no cérebro apontam forte inflamação e circuitos cerebrais interrompidos.
Também notaram semelhanças com o que ocorre no cérebro de quem tem a doença de Alzheimer ou outra doença degenerativa. E que havia mudanças importantes nelas em comparação com as amostras de tecido cerebral de pessoas que morreram de outras causas.
“Hoje percebemos que o cérebro é um alvo direto (quando o vírus vai até ele e provoca um dano) e indireto (quando problemas externos geram danos, mas não diretamente pelo vírus) na infecção pela Covid-19. O cérebro responde de forma semelhante aos danos nele causados, seja por trauma, infecção, sangramento e até mesmo por essa doença, pelo visto, como se fosse um processo de cicatrização natural. Sim, o cérebro cicatriza. Muitas vezes o que um patologista encontra é um resultado final desse processo de cicatrização”, admite Batistella.
Alguns internautas têm escrito para o site narrando que, após terem a doença, não conseguem ter uma ereção duradora. Haveria mesmo uma ligação entre os problemas? Batistella diz que infelizmente, sim, há um link: “A Covid-19, como dito previamente, machuca a película interna das veias e artérias do corpo todo (isso inclui o pênis), podendo prejudicar a ereção. Mas não é somente esse mecanismo, um estudo italiano investigou outros fatores como o estresse, redução dos hormônios masculinos pelos testículos (hipogonadismo) e função pulmonar diminuída. Vai ser necessário um foco grande nesses pacientes, em longo prazo, para que possamos entender e ajudar quem tiver um prejuízo da função sexual”.
Segundo o médico, hoje sabemos que as sequelas neurológicas são muito frequentes durante a infecção, e podem durar semanas ou meses após o paciente se curar da doença, o que pode soar assustador. Os sintomas mais comuns são os já citados: fadiga extrema, respiração curta e sensação de falta de ar, dor no peito, dificuldades de memória e concentração, insônia, tontura, formigamentos, dores nas juntas, depressão e ansiedade, alterações na pele, dores de estômago, entre outros.
“Existem pacientes que ficam mais de três meses com sintomas neurológicos, e não eram necessariamente aqueles que tiveram a versão mais grave da doença. Isso mostra que precisamos aprender muito sobre os sintomas tardios dela. É muito cedo para dizer que as sequelas podem ser eternas, mas sabemos que, por exemplo, sangramentos e derrames podem, sim, ser sequelas permanentes. Felizmente, as causas de déficit permanente são muito raras. Curiosamente, se a doença do paciente foi mais leve ou mais grave não parece influenciar aqui, até o momento não sabemos identificar com clareza quais pacientes terão sintomas por mais tempo, devemos conseguir identificá-los no futuro com maior precisão conforme estudos forem sendo publicados”, diz o médico.
Porém, quando o paciente precisou ser internado, existem sintomas mais frequentes após a recuperação. Caso da encefalopatia, um distúrbio global do sistema nervoso central, que causa diversos sintomas neurológicos em diversos sistemas cerebrais do paciente. Ela está presente em 55% dos pacientes graves, e é usada como um preditor de desfecho negativo nos pacientes que estão hospitalizados.
Batistella conta que dores musculares, dores de cabeça, tontura e fraqueza generalizada puderam ser identificados em cerca de 1/3 dos pacientes na China, Europa e Estados Unidos. A famosa redução do olfato (anosmia), possivelmente pela invasão do nervo olfatório pelo vírus e sua inflamação, e as alterações da percepção do sabor (disgeusia), podem chegar a representar 48% dos pacientes, e hoje é vista bem inicialmente no processo infeccioso.
Casos mais raros, e bem graves, como o acidente vascular cerebral (AVC) e hemorragia cerebral (o AVC hemorrágico), assim como a trombose venosa cerebral (TVC) também podem ocorrer, mas representam apenas 0,4% a 2,7% dos pacientes internados. Além disso, em geral, sobreviventes de doenças críticas têm um alto nível de sintomas mentais após apresentarem melhora da condição. Depressão, ansiedade e transtorno pós-traumático estão entre os eventos psiquiátricos mais relatados entre pacientes nessas situações.
Falando em saúde mental, pesquisas têm apontado uma piora tanto em quem teve a Covid-19 quanto dos que precisaram fazer quarentena e se manter afastados fisicamente de amigos e parentes. O médico diz que alguns sintomas podem vir de pacientes muito graves. Porém, ele lembra que o fato de estarmos em uma pandemia horrível, com muitas mortes, medo, restrições e mudanças bruscas inevitáveis do nosso cotidiano gerou estresse, ansiedade e angústia em muitos pacientes. “Não devemos nos esquecer disso, muito menos menosprezar esses sintomas. Prefiro imaginar meu paciente sendo obrigado a conviver com os dois lados, um emocional e outro orgânico (estrutural), e focar no tratamento em ambos, para não ‘comer bola’ de forma alguma”, admite.
Outro problema que parece ter sido muito comum durante a pandemia: pessoas se descontrolado em relação à alimentação. Elas estão em risco de desenvolver algum tipo de distúrbio alimentar durante ou após a pandemia? Batistella afirma que as pesquisas nessa área ainda são pequenas, mas, aparentemente, tanto a compulsão alimentar quanto a redução na vontade de comer (hiporexia) ocorrem em alguns pacientes. “O distanciamento social e a quarentena parecem contribuir para ambos os casos. Vale a pena citar que pacientes acompanhados por telemedicina conseguiram melhorar desses sintomas, ou seja, mais uma confirmação de que esse modo de atendimento deve ganhar mais espaço”.
Para tratar as sequelas, Batistella diz que o médico pode dar um suporte direcionado para qual sintoma prevaleça e impacte mais na vida do paciente. Porém, lembra que é fundamental buscar um equilíbrio em todos os lados, como uma boa alimentação, exercício físico regular, cuidados com a mente (psicoterapias, meditação etc.) e reabilitação das funções que foram prejudicadas, como as do pulmão. “Isso será imprescindível, e depende quase que absolutamente do paciente, então seja proativo e cuide de você mesmo, enquanto a ciência trabalha para facilitar nossa recuperação pós-Covid-19”, finaliza.
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