Especialista explica quais os critérios devem ser considerados na escolha da clínica
Léo Fávaro Publicado em 21/06/2021, às 09h00
A dependência química (tecnicamente chamada de transtorno por uso de substância) existe quando uma pessoa faz o uso de droga sem conseguir controlar seu consumo, de modo que coloque sua integridade ou a de outras pessoas em risco. O Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais da Academia Americana de Medicina (DSM-5) elenca dez grupos de substâncias que se relacionam aos chamados transtornos aditivos, dentre elas o álcool, a Cannabis (como maconha, haxixe e skunk), os estimulantes (como crack e cocaína), medicamentos sedativos, hipnóticos e ansiolíticos, dentre outros.
Cada substância age de forma diferente no organismo, mas todas elas, de modo geral, ativam o sistema de recompensa no cérebro e produzem sensações de prazer - “barato”, “onda”, “trip” e “vibe” são alguns dos nomes dados a elas. Essas ativações cerebrais ocorrem de forma tão intensa que levam a pessoa a conduzir boa parte de sua vida em torno do uso da substância, a ponto de negligenciar atividades normais e cotidianas, como estudar, trabalhar e estabelecer relações sociais de forma saudável.
O tratamento da dependência química envolve uma abordagem multidisciplinar e varia de acordo com a individualidade de cada caso. Intervenções farmacológicas e psicológicas geralmente são a base do tratamento. Os modelos de assistência ao dependente químico são diversos e a adaptação desses modelos às necessidades do paciente são determinantes para o sucesso de seu tratamento. Para isso, devem ser levados em consideração a singularidade psíquica e biológica do indivíduo, o tipo da droga da qual se faz uso e seu contexto socioambiental. Outra possibilidade, também, é a família marcar uma consulta com especialista para traçar um plano terapêutico.
Em alguns casos, o acompanhamento ambulatorial com psiquiatra, isto é, atendimentos em consultórios médicos, hospitais ou unidades de saúde, pode ser suficiente. Já em outros casos, pode ser necessário que o indivíduo fique internado em hospitais ou clínicas especializadas. “A internação em casos de transtorno por substâncias é indicada quando há grave risco à integridade da pessoa, ou quando outros tratamentos extra-hospitalares não se mostram efetivos para aquele caso”, explica o psiquiatra e especialista em dependência química Thiago Ferro.
Ferro explica que há duas modalidades de internação: voluntária, que acontece com a concordância da pessoa, e involuntária, na qual a pessoa é contrária à internação.
“No caso da internação voluntária, a pessoa que busca o tratamento deve se perguntar ‘eu vou conseguir sair desse ciclo sozinho?’ ou ‘a ajuda que tenho aqui fora é suficiente para tratar a dependência?’ Se a resposta for negativa, a internação numa clínica pode ser uma possibilidade terapêutica”. Isso porque, conforme afirma o especialista, uma das grandes dificuldades em relação ao transtorno decorre de alterações cerebrais causadas pela substância, de modo que parar o consumo e ficar em abstinência pode significar um esforço hercúleo, com eventuais episódios de recaída.
“O transtorno fala muito alto, já que é uma doença do cérebro, neurobiológica. Assim, é necessário o acompanhamento com psiquiatra, psicólogo e também grupos de apoio, como Narcóticos Anônimos. Se a pessoa com problema com drogas não conseguir o suporte necessário, seja por conta própria, o que é muito mais difícil, seja com essa rede de apoio, a internação pode ser sugerida”, completa.
Ao dizer que a internação em clínica de reabilitação pode ser sugerida, Ferro destaca outros modelos que podem ser efetivos antes da terapia baseada em internação. “Cito como exemplo o hospital-dia, no qual o indivíduo fica lá durante parte do dia e faz atividades terapêuticas. Ele participa de oficinas de arteterapia e de musicoterapia, integra grupos com psicólogos, faz reuniões só com os pacientes, e ao fim do dia volta para casa. Infelizmente, esse tipo de tratamento nem sempre é acessível a todos por questões financeiras e também porque pode depender da liberação do trabalho, se for o caso do indivíduo”. Além do hospital-dia, o psiquiatra cita os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) III AD, que dão suporte terapêutico especializado em intervenções relacionadas ao uso de substâncias e que oferecem acolhimento noturno.
“A internação involuntária, por sua vez, pode ser recomendada quando a pessoa com problema com drogas não quer se internar, mas tanto a família quanto o médico que o acompanha já notaram riscos. Aqui estamos falando de integridade física, mental, moral, profissional, patrimonial ou de qualquer natureza. Não é o melhor modelo de internação, mas ele pode ser necessário”, explica Ferro.
A lei número 13.840, de 2019, estabelece que a internação involuntária acontece sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), com exceção de servidores da área de segurança pública, que constate a existência de motivos que justifiquem a medida. Para isso, é necessária a formalização da decisão por médico responsável e o tratamento dura no máximo 90 dias, dentre outros critérios legais.
Confira:
As internações podem ser breves ou longas e nelas o tratamento é usualmente conduzido por uma equipe multidisciplinar, multifocal e que observa as necessidades e os casos de cada paciente, individualmente. Um dos modelos de assistência ao dependente químico é a Moradia Assistida, que oferece serviços de atenção social e de saúde um período que varia de três meses a um ano. Nessas ambientes, o acompanhamento do indivíduo é feito geralmente por profissionais de saúde e tem por objetivo a reinserção social e prevenção à recaída – alguns deles exigem que o paciente se mantenha sóbrio para a continuidade. Elas são indicadas sobretudo para estágios mais avançados de recuperação, nos quais o paciente geralmente obteve mais ganhos em relação ao tratamento, e para indivíduos com demanda de acolhimento social.
Já a internação em clínicas privadas geralmente acontece de forma particular ou por planos de saúde e, nelas, a pessoa com problema com substância é inserida num programa de tratamento. “A grade de atividades é diferente para cada tipo de demanda e nela a pessoa passa a desenvolver disciplina, que muitas vezes é difícil para quem tem o transtorno. Assim, todo mundo tem horário para acordar, para fazer as atividades conforme o cronograma proposto, para fazer as refeições, por exemplo, e também é cobrada a presença nas atividades" sintetiza Ferro.
O psiquiatra ainda explica que nesse modelo de internação não se fala apenas das substâncias em si, mas de recuperação, de ferramentas para não acontecerem recaídas e de trabalhos de motivação, mostrando uma nova maneira de se viver. “Enquanto o paciente se ocupa com as atividades, palestras e depoimentos, a medicação faz efeito”, explica o psiquiatra, se referindo aos medicamentos usados no tratamento da dependência química.
Cada clínica tem seu formato de condução das terapias para transtornos por uso de substância. Nesses casos, conforme analisa o psiquiatra, a internação por dependência química idealmente deve ser mais longa por conta do processo de detoxificação e neuroreabilitação. Durante o processo, também é feito um trabalho de ressocialização, que se faz necessário para quando a pessoa sair da clínica e voltar para sua rotina, evitando recaídas. Uma das estratégias que pode ser adotada é o Projeto Terapêutico Singular (PTS), que se baseia num conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas para um indivíduo ou um grupo que resulta da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar. Assim, psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e conselheiros terapêuticos avaliam as melhores estratégias para o sucesso do tratamento.
As Comunidades Terapêuticas (CT) também constituem opções para a abordagem clínica de pacientes que são dependentes químicos. O modelo tem sua origem no Reino Unido e nos Estados Unidos, em meados do século XX, e chegou ao Brasil em 1968, quando a primeira CT foi fundada em Goiânia. As CTs são entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizam o acolhimento em regime residencial, em caráter voluntário, de pessoas com problemas associados ao uso nocivo (como o risco de agressão a si ou a outra pessoa) ou dependência de substâncias psicoativas. As pessoas ali acolhidas geralmente têm baixo nível de suporte social ou existência de fatores de risco na comunidade.
Nessas comunidades, as pessoas também recebem assistência à saúde para interromperem o uso da substância e apoio para retomar sua vida social. Segundo informações da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, a depender da complexidade de cada instituição, podem fazer parte da equipe dela psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e educadores. Por vezes, médicos integram o corpo clínico ou se associam à organização como prestadores de serviço ou voluntários.
Algumas CTs são vinculadas a entidades religiosas e seu objetivo, em linhas gerais, é a interrupção completa do consumo de álcool e outras drogas por meio da abstinência. Assim, a pessoa acolhida se compromete, porquanto ela estiver na CT, a permanecer abstêmia. No ano passado, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) regulamentou o acolhimento de jovens de 12 e 18 anos incompletos dependentes de álcool e outras drogas em CTs. O acolhimento deve ser feito de modo voluntário e com autorização prévia dos responsáveis legais pelo menor, após avaliação pela rede de saúde.
Segundo dados do Ipea, no Brasil há mais de 1800 CTs e, conforme informações do Ministério da Cidadania com dados de 2020, 487 delas recebem recursos federais, acolhendo mais de 10,5 mil pessoas.
Thiago Ferro salienta que “é importante ter a opinião de um psiquiatra de confiança sobre qual clínica buscar. Se não for possível ouvir a opinião do especialista, saber da experiência de alguém que já passou pela clínica pode oferecer um direcionamento mais assertivo na hora da escolha”. Entretanto, Ferro alerta que, a depender da gravidade do quadro da pessoa, o acesso a uma clínica se torna mais importante do que a espera por boas indicações e que a rede pública de saúde carece desse tipo de atendimento.
Outro aspecto a se observar na hora de escolher um espaço para internação é saber se ele é regulamentado e segue os protocolos da Anvisa e outros ditames legais específicos para seu funcionamento. Uma vez considerado isso, é necessário avaliar se ele é adequado para o tipo de intervenção clínica que o paciente precisa, uma vez que nem toda clínica de reabilitação é especializada no tratamento de transtornos por substâncias. Além disso, é importante considerar que o dependente ficará por um período de tempo ali, assim, a infraestrutura deve ser adequada às suas necessidades da vida diária, bem como ter condições de prestar atendimentos de emergência, caso seja necessário.
Saber sobre a rotina do paciente durante seu período de acolhimento na clínica e a proposta de manejo de cuidado, isto é, quais os protocolos são seguidos para o caso do paciente e quanto tempo leva seu tratamento pode orientar a família. No mesmo sentido, também é primordial conhecer as pessoas que compõem a equipe terapêutica, como médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais da rede de apoio, saber de sua disponibilidade tanto para atender o paciente quanto para receber e esclarecer dúvidas da família e a possibilidade de contato do paciente com sua família por meio de visitas ou ligações, por exemplo.
Por fim, o tratamento deve respeitar a individualidade do paciente e isso deve ser levado em consideração. Portanto, conhecer as abordagens feitas por aquele espaço terapêutico não apenas durante o período de internação, mas também após a saída da reabilitação pode ser determinante tanto para a pessoa com problemas com drogas quanto para sua família em relação ao sucesso do tratamento.
*Leo Fávaro é acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo.
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