“A Filha Perdida”, que estreou em dezembro na Netflix, vem ganhando projeção não apenas por ser um filme que acerta muito bem naquilo que se propõe a discutir, mas também por revelar de forma desconcertante os conflitos pessoais relacionados à maternidade. As atuações são brilhantes, a fotografia é encantadora e o roteiro é uma rosa tão exuberante quanto cheia de espinhos. E é ao abordar as questões existenciais sobre o que se espera de uma mãe que estão esses espinhos.
Baseado no livro homônimo de Elena Ferrante, o filme, o primeiro dirigido pela até então atriz Maggie Gyllenhaal, conta a história da professora universitária Leda (Olivia Colman na maturidade e Jessie Buckley na juventude), que, durante suas férias na Grécia, enxerga na relação de Nina (Dakota Johnson) com a filha a própria história. A princípio, o laço entre mãe e filha parece bem atado, mas, aos poucos, Nina mostra que essa conexão é sufocante, e é nele que a professora se agarra ao reconhecer na relação alheia suas “falhas” como mãe, anos antes. Quando suas filhas tinham 5 e 7 anos de idade, Leda as deixou com o pai e ficou fora por três anos, dedicando-se à sua jornada acadêmica e aos encantos de uma paixão.
Ao se deitar em uma espreguiçadeira à beira-mar e assistir ao vínculo entre Nina e a filha, Leda se entrega e revisita tudo o que passou, submersa em um mar de culpa. As “falhas” da maternidade da personagem principal de “A Filha Perdida” merecem aspas, já que elas se baseiam unicamente em aspectos valorativos, pessoais e culturais - ou seja, cada pessoa que assiste ao filme faz um julgamento com base em suas próprias convicções do que seria a maternidade perfeita, certa ou adequada. Mas esse conceito não existe.
Sthéfany Alvarenga, psicóloga especialista em neurociências e mestranda em psicologia do desenvolvimento, destaca que nem toda mulher se completa exercendo a maternidade. “Atualmente, vemos cada vez mais mulheres renunciando a esse papel [de ser mãe]. Ele exige abdicação de outras escolhas e, muitas vezes, mudanças nas prioridades de vida”. O que se observa, então, é que nem toda mulher nasceu para ser mãe, e que isso não é nenhum problema.
A psicóloga explica: “É necessário entender que há diferença entre ter filhos e ser mãe. Ter filhos é biologicamente possível para muitas pessoas, mas ser mãe é algo construído com base no dia a dia, em erros e acertos, porque filhos não nascem com manuais. Às vezes, o que é válido para o primeiro, por exemplo, não se aplica ao segundo”. Assim, o que se vê no filme é Leda subvertendo uma expectativa atribuída ao papel maternal.
Apesar da culpa que a afoga em suas memórias, ela não se arrepende de ter deixado as meninas, dizendo em uma das cenas que o período no qual ficou longe delas foi maravilhoso. “Algumas mulheres ‘aceitam’ não cuidar tanto de si para se dedicarem aos filhos e deixam, por exemplo, planos profissionais da lado; outras tentam fazer os dois, mesmo que isso cause um desgaste maior; e há ainda aquelas que, como Leda, abrem mão da criação dos filhos para se dedicar a outras coisas que consideram prioridades”.
A maternidade não é polarizada em certo ou errado. O que há são formas diferentes de compreender o “ser mãe” - e elas devem ser respeitadas. No filme, por exemplo, isso fica evidente no contraste entre Callie (Dagmara Dominczyk), que engravidou aos 42 anos, depois de muitas tentativas, e vê a maternidade como uma dádiva, e Leda, para quem essa mesma experiência se mostrou uma responsabilidade sufocante. E, na vida real, existem Callies, Ledas e tantas personagens quantas são possíveis - cada uma com vivências diferentes e nenhuma delas necessariamente "errada".
Além disso, há que se falar em escolhas e consequências. Da mesma forma que Leda optou por abrir mão do contato com suas filhas por três anos, ela decidiu experienciar uma paixão e se dedicar à vida acadêmica. Por outro lado, ela poderia ter escolhido cuidar das filhas (como o senso comum pode levar a crer que seja o mais “adequado”) e deixado de lado sua ascensão profissional - e quem sabe, com isso, passar a viver uma irrealização. “Nem toda mulher deve cumprir o que é esperado para uma mãe, especialmente se aquilo é incompatível com o que ela acredita. Algumas optam por aquilo que é social ou culturalmente esperado, mas vemos maridos e terceiros também assumindo esse papel e, se a mãe biológica estiver de acordo com essa decisão, está tudo bem”, ressalta Sthéfany.
O que se espera culturalmente da mulher, quando ela se torna mãe, é a abnegação completa em prol dos filhos. Longe de afirmar que ser mãe é tarefa fácil ou que não permita outras realizações, mas há um senso arraigado de que a mulher deve abrir mão de suas realizações pessoais, de sua sexualidade e de seu crescimento profissional, para criar os filhos. Ao deixar a criação das filhas por conta do pai, Leda rompe com o verniz social com o qual se pinta a maternidade. Assim, ao subverter o que era esperado socialmente, ela passa a ter que lidar com as consequências de suas escolhas, sejam elas positivas ou não.
Ao ver em Nina características que suscitam memórias de como ela era e o que fez quando jovem, Leda inicia um processo reparativo - o que muitas vezes reabre cicatrizes e mexe com os sentimentos de forma extenuante. Na cena final, vê-se a mãe ligando para as filhas e, desta vez, conversando aliviada e prazerosamente com elas, em oposição ao que havia sido apresentado antes. É como se Leda tivesse elaborado e superado os conflitos passados.
Apesar de Leda conseguir reconhecer e superar o episódio que gerou o processo de culpa, o filme não elucida como essa ausência maternal foi para as filhas. Na vida real, entretanto, as consequências de uma situação como a de “A Filha Perdida” são mais claras e também diversas. A psicóloga explica que “a ausência de pai ou de mãe, ou até dos dois, pode produzir um abismo entre eles e o filho, sentimentos de rejeição e transtornos emocionais diversos. Mas ter figuras parentais presentes e infelizes também pode provocar o mesmo efeito”.
Louise Verônica*, de 40 anos, conhece de perto a realidade apresentada no filme. A empresária conta que seus pais se separaram quando ela tinha sete anos e que, apesar de inicialmente ficar com a mãe por ser mais apegada a ela, em pouco tempo notou que havia um abandono afetivo e que passava mais tempo sob os cuidados da empregada, o que a levou a morar com o pai.
“Talvez minha mãe tenha feito de tudo que ela podia fazer, afetivamente falando. Mas isso era muito pouco, fez e ainda faz muita falta para mim. Muitas vezes acho que eu não amo minha mãe, não temos o elo da vivência. Mesmo sendo minha mãe, é a pessoa que menos me conhece”, conta Louise. Com um filho de 10 anos, a empresária destaca que depois da maternidade enxerga o “ir embora” como uma forma de questionar o próprio sentimento que há entre mãe e filhos. "Fico me perguntando se minha mãe não sentia por mim o gigantesco amor que eu sinto pelo meu filho. A maternidade cansa, restringe, mas eu não me vejo sem ele; quero estar com ele, fazer parte da vida e cuidar dele até vê-lo caminhar sozinho, mas sabendo que faço questão de vibrar a cada vitória dele e que se der alguma tristeza, estarei aqui”.
Em se tratando de influência parental, a imprevisibilidade de como essa ausência (ou presença infeliz, como citado por Sthéfany) é processada pelo filho faz com que a indagação de “e se…?” seja deixada de lado. “É como a situação do pai usuário de álcool que tem dois filhos, um que segue o mesmo caminho e outro que faz o oposto. Não há como prever as repercussões. Diversos estudos apontam que contextos familiares violentos, física ou psicologicamente, e negligência parental produzem danos importantes aos filhos. Assim, enquanto pais, precisamos oferecer estabilidade aos filhos”, alerta a psicóloga.
Para Louise, além da dor, o abandono materno também trouxe outras características: buscar amor nas pessoas e demonstrar o sentimento para aqueles que ama. “Apesar desse lado positivo, também há carência e, por vezes, percebo que faço tudo para os outros achando que assim vou ter amor em troca. Diferente do que aconteceu no filme, minha mãe não reconhece o que fez e nunca acolheu essa dor do abandono que eu sinto. Hoje, vejo que ela tem um perfil egocêntrico e não consegue reconhecer o quanto a ausência dela me feriu como criança”, conta Louise.
Desta forma, muitas vezes sem se dar conta de como agem, algumas mães podem estabelecer uma relação tóxica com os filhos e cortar os laços não é incomum. A empresária, entretanto, enxerga outro caminho para lidar com a situação. “Acredito que o primeiro passo para a reparação é que o outro compreenda que causou essa fragilidade emocional, ao mesmo tempo que aquele que se sentiu fragilizado acolha também a mãe. É um exercício mútuo e verdadeiro de empatia que também demanda tempo e maturidade. Sempre é tempo de cuidar do outro”, finaliza Louise.
Aparentemente Leda não apresentava nenhum transtorno psiquiátrico. Por sua postura egoísta (como a própria personagem se descreve em um dado momento), algumas pessoas podem suspeitar de algum transtorno de personalidade narcisista, contudo, ele se caracteriza principalmente por uma demanda excessiva de admiração e por uma sensação grandiosa de sua importância, o que ela não demonstra. Também não há que se falar em depressão pós-parto, aquele transtorno que se manifesta logo após o nascimento do filho ou até alguns meses subsequentes. Nesses quadros, a mãe apresenta tristeza profunda, vontade de fazer mal ao bebê ou a si própria, ansiedade, preocupação excessiva, sensação de culpa e alterações no sono, dentre outras manifestações, o que não se verifica na vida da personagem.
Leda é uma mulher normal que decidiu priorizar outros aspectos de sua vida e não sua entrega à maternidade (isto é, nos três anos em que ficou longe das filhas). Todo o incômodo que o filme gera é por quebrar o que nós, culturalmente, atribuímos às mães, como uma dedicação quase que integral aos filhos.
“Equilíbrio é a melhor saída quando se fala em maternidade, e equilíbrio não significa o mesmo para todos, bem como nem sempre é possível saber se nós estamos equilibrados. Assim, precisamos entender que antes de ser mãe há uma mulher que também tem seus desejos que precisam ser atendidos”, finaliza a psicóloga.
*O nome verdadeiro foi alterado a pedido da entrevistada
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Léo Fávaro
Ex-advogado, jornalista e, atualmente, acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo. Escreveu por bastante tempo sobre música, cultura pop e moda, e atualmente se dedica a escrever sobre saúde. Está nas redes sociais como @leofavaro