Leo Fávaro* Publicado em 04/01/2022, às 10h00
Os transtornos de personalidade são condições psiquiátricas que se constituem por meio de padrões de pensamentos, de percepções (de si e dos outros), de ações e de interações que podem causar prejuízos à vida de quem vive com eles. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) da Associação Americana de Psiquiatria, referência clínica para análise e diagnóstico dos transtornos psiquiátricos, estabelece que esses padrões são persistentes e essa experiência interna vivenciada pelo indivíduo se desvia acentuadamente das expectativas de sua cultura. De alguma forma, é dizer que esse comportamento é fora do padrão social esperado.
Juntamente dos transtornos da personalidade antissocial, borderline e histriônica, o transtorno de personalidade narcisista compõe um grupo de condições mentais nas quais os indivíduos com esses quadros costumam parecer dramáticos, emotivos ou erráticos. O narcisista patológico apresenta em seu comportamento um padrão de grandiosidade, de necessidade de admiração e de falta de empatia. As principais repercussões disso são:
Ainda não foram bem estabelecidas as causas do transtorno de personalidade narcisista. Algumas pesquisas observaram em pessoas com o transtorno a redução do volume de massa cinzenta na ínsula esquerda anterior, região cerebral relacionada à empatia, ao funcionamento cognitivo e à regulação emocional. Isso, entretanto, não é bem estabelecido cientificamente.
Além de questões genéticas, aspectos ambientais também podem constituir um narcisismo patológico e há correntes de pensamentos que estabelecem que o trato da pessoa na infância – com elogios, críticas, admiração ou favorecimento em excesso – podem constituir raízes do transtorno. Outras possíveis causas ou desencadeantes incluem história de abuso na infância e convivência em ambiente de comportamento manipulador por parte dos pais e amigos.
É importante observar que todo mundo gosta de se sentir admirado e importante, mas isso não significa ter transtorno de personalidade narcisista. Segundo o DSM-5, traços narcisistas podem ser comuns em adolescentes e jovens adultos e não necessariamente indicam que a pessoa vai desenvolver o transtorno em si. Trata-se de um período no qual a aceitação social, especialmente na escola ou faculdade e entre os amigos, faz com que esses traços se manifestem de forma mais latente, especialmente num contexto onde todos são vistos nas redes sociais.
Mostrar-se de alguma maneira nas comunidades virtuais em troca de likes e de seguidores faz parte do atual cenário social. Isso não significa que quem posta mais, quem tem mais likes ou quem tem o maior número de seguidores desenvolverá ou tem transtorno de personalidade narcisista. No centro dessa condição clínica estão as já citadas avidez por reconhecimento e admiração, a busca por ser influente, a percepção de grandiosidade de si e de seus atos e a falta de empatia.
Os homens são os mais acometidos pelo narcisismo enquanto transtorno psiquiátrico, somando de 50% a 75% das pessoas que sofrem com tal condição. A prevalência da do transtorno pode chegar a 6,2%, a depender da comunidade analisada, conforme informações do DSM-5.
O narcisismo, enquanto condição patológica, surge no início da vida adulta e se caracteriza por meio da manifestação de cinco ou mais dos seguintes critérios:
Pessoas que apresentam o transtorno de personalidade narcisista superestimam cotidianamente suas capacidades e exageram suas conquistas, isto é, floreiam e criam discursos para torná-las maiores (ainda que fantasiosamente) do que elas realmente são, podendo parecer pretensiosas e arrogantes. Isso porque elas acreditam que os outros atribuem o mesmo valor aos seus esforços. Por outro lado, narcisistas subestimam ou desvalorizam as conquistas dos outros ou suas contribuições.
O DSM-5 também estabelece que indivíduos com transtorno da personalidade narcisista se preocupam com fantasias de sucesso ilimitado, poder, brilho, beleza ou amor ideal. Elas, frequentemente, acreditam ser pessoas superiores, especiais ou únicas e esperam que os outros as reconheçam como tal, não sendo incomum que elas se comparem a pessoas famosas ou de referência em alguma área. Assim, esses indivíduos podem supor que suas necessidades são especiais e estão além do conhecimento das pessoas comuns, sendo compreendido apenas por pessoas ou entidades notáveis. Então, tendem a insistir em ser atendidos apenas por pessoas “top” (médico, estilista, advogado, cabeleireiro, personal trainer…) ou em instituições de referência (centros médicos, escritórios, empresas, salões, academias, por exemplo).
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Outra condição frequente é que essas pessoas esperam ser servidas e ficam atônitas quando isso não acontece, como se não estivessem sendo reconhecidas por uma condição que elas mesmas acreditam ser digna de superioridade. No mesmo sentido, elas podem, por exemplo, achar que não precisam aguardar em filas e que suas prioridades são tão importantes que os outros devem dar sua vez a elas, irritando-se depois quando estes não os auxiliam “em seu trabalho tão importante”. Essa sensação de possuir direitos, combinada com falta de sensibilidade aos desejos e necessidades dos outros, pode resultar na exploração consciente ou involuntária de outras pessoas. Elas esperam receber qualquer coisa que desejarem ou sintam necessitar, independente do que isso possa significar para os outros.
Os indivíduos com narcisismo patológico também tendem a ter relações de amizade ou de romance somente se a outra pessoa parecer possibilitar o avanço de seus propósitos ou, então, aumentar sua autoestima. Eles apresentam falta de empatia e dificuldade de reconhecer os desejos, as experiências subjetivas e os sentimentos das outras pessoas e podem entender como seus, por se sentirem superiores, privilégios especiais que não lhes são normalmente devidos. No discurso, monopolizam conversas e tendem a discutir suas próprias preocupações de forma detalhada e prolongada, ao mesmo tempo que falham em reconhecer que os demais também têm sentimentos ou necessidades e pouco ligam para assuntos que não lhe dizem respeito. Quem vê de fora diz que essas pessoas são frias e que não têm interesse recíproco.
Os narcisistas tendem a invejar os outros ou a acreditar que estes as invejam, enxergando de modo ruim o sucesso ou os pertences dos outros, sentindo que elas são as reais merecedoras dessas conquistas, admiração ou privilégios. Assim, podem ser arrogantes, desdenhosos e desvalorizar as contribuições dos outros, sobretudo quando essas pessoas receberam reconhecimento ou elogio pelo que realizaram.
Apesar de carecerem de admiração excessiva, a autoestima desses indivíduos é quase sempre muito baixa, de modo a se preocuparem com quão bem estão se saindo e quão importante os outros os consideram. Isso costuma assumir a forma de uma necessidade constante de atenção e admiração, por exemplo, esperando que sua chegada a um lugar seja festejada ou, de modo negativo, ficando decepcionados quando os outros não cobiçam seus pertences. É comum, então, que eles busquem elogios, em geral com muita sedução.
Junto dessa avidez por admiração está a fragilidade em sua autoestima, o que torna os narcisistas mais sensíveis a críticas ou derrotas (aqui, entenda-se como derrota, por exemplo, um elogio feito a outra pessoa, a não concordância com alguma fala sua ou a normalização de algo que ele considera grandioso). Nem sempre evidenciadas claramente, essas “feridas no ego” podem fazer com que os narcisistas se sintam humilhados ou com uma sensação de vazio e, em alguns casos, podem manifestar reações de desdém ou de contra-ataque.
Por essa dificuldade em aceitar opiniões que não “inflem seu ego” e pelos rompantes de soberba, quem vive com transtorno de personalidade narcisista pode ter comprometimento nas relações interpessoais. Além disso, as relações sociais costumam ser afetadas devido a problemas resultantes da crença no merecimento de privilégios, da necessidade de admiração e da relativa desconsideração das sensibilidades dos outros.
O DSM-5 também salienta a possibilidade de baixo desempenho no trabalho, refletindo falta de disposição de se arriscar em situações competitivas ou em outras em que há possibilidade de derrota. Assim, a autocrítica, associada a sentimentos de vergonha ou humilhação podem se refletir no retraimento social, no humor deprimido e em manifestações de depressão, como a distimia (transtorno depressivo persistente) e o transtorno depressivo maior. Por outro lado, períodos de sensação de “grandiosidade” podem estar associados a humor hipomaníaco, manifestado por meio de agitação, euforia e impulsividade.
O transtorno da personalidade narcisista pode, ainda, estar associado a anorexia nervosa e a transtornos por uso de substância, especialmente relacionados à cocaína. Em alguns casos, o narcisismo patológico também pode ser associado a outros transtornos de personalidade, como histriônica, borderline, antissocial e paranoide.
A dificuldade no tratamento de quem sofre com transtorno de personalidade narcisista é a falta de reconhecimento de sua própria condição. Uma vez não reconhecendo que estão “erradas”, essas pessoas dificilmente procuram ajuda para isso. E geralmente só procuram um profissional de saúde mental quando há outras manifestações associadas, como depressão e abuso de substância.
A terapia medicamentosa é indicada apenas para tratar sintomas associados a depressão e ansiedade, mas não diretamente o transtorno de personalidade. A principal via terapêutica é a psicoterapia. Diversas abordagens podem ajudar no controle do quadro, como psicoterapia psicodinâmica, terapia cognitivo-comportamental e psicoterapia focada na transferência. Além disso, algumas mudanças podem ser trabalhadas ao longo do tratamento, como aceitação e tolerância a críticas, zelar por um relacionamento saudável com a família e com amigos, compreender e administrar seus sentimentos e não estipular objetivos irreais.
*Leo Fávaro é acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo
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