Para médica, escetamina intranasal pode ser considerada o "Botox da psiquiatria"
Tatiana Pronin Publicado em 24/07/2022, às 09h00
Kaue*, 48 anos, sentiu a depressão chegar pela primeira vez entre 2014 e 2015. “Tive uma queda acentuada por problemas financeiros, meu casamento já estava em declínio, foi aí que eu procurei ajuda de um psiquiatra”, conta. O médico prescreveu o antidepressivo fluoxetina, mas não teve melhoras. Depois, a fluvoxamina: “Tomava 3 comprimidos de 100 mg e, como não tinha condições de custear, eu pegava na prefeitura da cidade onde eu moro”. O medicamento trouxe uma melhora inicial, mas após algum tempo ele sentiu que o efeito foi revertido. “Fiquei confuso, fui tentando alternativas, mas eu estava pior do que o estado de origem”, lembra.
Em 2016, a separação foi outro duro golpe: “Minha esposa saiu de casa, levou meu filho e foi morar bem longe, em uma cidade a 400 ou 500 km de mim, e foi aí que eu caí. Fiquei bem ruim mesmo, ficava dormindo o dia inteiro... Não pensei em tomar nenhuma atitude, mas a sensação era a de querer dormir e não acordar mais”, lembra, reforçando que sempre foi um cara muito ativo.
Em janeiro de 2017, já se sentindo no limite, ele decidiu procurar outra psiquiatra, uma profissional renomada que já atendia sua mãe. A médica passou outra medicação e lhe convidou a participar de um estudo clínico da farmacêutica Janssen com a escetamina intranasal, um novo tipo de tratamento aprovado recentemente no país para depressão resistente ao tratamento (DRT) – termo usado quando a pessoa não responde a pelo menos dois tratamentos anteriores, mesmo depois de ajustes na dose e espera suficiente (antidepressivos levam algumas semanas para fazer efeito).
A escetamina intranasal é um derivado bem mais fraco da cetamina, um anestésico utilizado em humanos e animais de grande porte que passou a ser usado ilegalmente em raves por causa de seus efeitos psicodélicos.
Em doses baixas, e com ação mais específica, a escetamina não chega a dar barato, mas pode provocar sintomas leves de dissociação, que não duram mais do que 40 minutos, segundo a psiquiatra Cíntia Perico, professora da Faculdade de Medicina do ABC que participou das pesquisas clínicas com o novo fármaco. “A mão pode parecer um pouco maior do que é; parece que a TV está dentro da cabeça, pode dar sonolência, tontura e náusea”, exemplifica. Por isso, a aplicação só pode ser feita numa clínica habilitada, com acompanhamento: “O procedimento dura até 1,5 hora, e o paciente vai embora bem”.
Enquanto os antidepressivos agem nas monoaminas (como serotonina, noradrenalina e/ou dopamina), a escetamina age no glutamato, um neurotransmissor excitatório que promove a sinaptogênese, ou seja, aumenta as conexões cerebrais. As aplicações eventuais, associadas ao uso diário de um medicamento, causam uma potencialização que beneficia as pessoas que não respondem aos antidepressivos. Mas ainda há outra vantagem importante: “Há uma resposta mais precoce, e para casos graves isso é uma grande diferença; 24 horas após a aplicação a resposta clínica já é visível”, comenta a psiquiatra.
O início de ação rápido e a boa tolerabilidade fazem do novo fármaco um possível grande aliado no tratamento do Transtorno Depressivo Maior com ideação suicida, como informa o psiquiatra Humberto Corrêa, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para os casos graves de depressão resistente, a melhor alternativa é a eletroconvulsoterapia (ECT), que ainda gera muito medo e estigma.
Segundo dados do Vigitel 2021, do Ministério da Saúde, 11,3% dos brasileiros têm sintomas depressivos. E, de acordo com um estudo observacional realizado na América Latina com quase 1.500 pacientes, cerca de 40% dos pacientes têm depressão resistente ao tratamento. Além disso, mais de 11 mil pessoas tiram a própria vida a cada ano no país.
Para os profissionais de saúde mental, ter uma nova opção terapêutica é um grande marco: “Costumo dizer que é o Botox da psiquiatria”, comenta Cíntia Perico. Mas ainda existem obstáculos para a população: o custo é alto, apesar de não se comparar a um tratamento oncológico. E não há expectativa de inclusão no SUS (Sistema Único de Saúde) tão cedo – vale lembrar que apenas dois dos muitos antidepressivos aprovados no país estão disponíveis para os usuários do sistema público.
Para participar do estudo, Kaue teve que se deslocar para outra cidade diversas vezes, fazer uma porção de testes, como de sangue e urina, além de preencher a questionários. No início, recebeu a medicação três vezes por semana – em cada ocasião, a escetamina é aplicada três vezes (uma dose em cada narina, com alguns minutos de intervalo entre cada uma). Após algum tempo, ele passou para duas aplicações por semana, depois uma, até chegar a apenas uma aplicação por mês, esquema que tem seguido há algum tempo.
Kaue conta que na hora da aplicação a sensação é boa. Cerca de 30 minutos após a terceira dose do spray, ele diz que se sente mais criativo, com mais coragem, como num “brainstorming” – e isso parece perdurar, de alguma forma, ao longo do mês. Além do tratamento com a escetamina, ele continua fazendo uso diário do antidepressivo duloxetina, além de fazer terapia uma vez por mês, por falta de tempo. Ainda toma uma medicação leve para dormir, o que tem feito muito bem. Toma os remédios direitinho e procura evitar álcool, ingerindo pouca quantidade, “só socialmente”.
“Posso falar que a minha vida mudou (...). Depois que eu comecei o tratamento, em 2017, comecei a trabalhar de novo e conheci uma pessoa com quem estou até hoje. Trabalho em uma multinacional, viajo tanto para encontrar clientes como para fazer cursos fora do país, estou num relacionamento bem firme, emagreci 20 ou 25 kg, estou malhando, estou me sentindo bem, sou outro”. Sente que está “ajustado” para trabalhar, para ser assertivo, cobrado, para as relações familiares e tudo mais. “Tem a turbulência do dia a dia, mas você está bem, está firme”, resume.
*Kaue é um nome fictício, a fim de preservar a identidade do paciente
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