Sofrimento psíquico do trabalho é problema há décadas; por que o tema só ganhou relevância na pandemia?
Thatiana Cappellano Publicado em 30/06/2021, às 10h00
Nunca se falou tanto de saúde mental e trabalho quanto agora. A realidade do aumento da intensidade da carga de trabalho em virtude da pandemia do novo coronavírus (que já se arrasta por longos e extenuantes 15 meses no Brasil) jogou luz sobre este tema. Mas, insisto, é preciso refletir a respeito disso com cautela. Cabe buscar compreender o que é diferente agora, ao ponto de fazer este assunto ganhar notoriedade, uma vez que a temática em si não é, nem de longe, uma novidade.
O sofrimento psíquico provocado pelo trabalho é objeto de estudo há meio século – ao menos desde os anos 70. É nesta década que Hebert J. Freudenberguer inicia seus estudos a respeito do que ele veio a nomear por Burnout [aliás, uma origem bastante controversa do termo, já que Freudenberguer o adotou a partir dos relatos sobre a experiência vivida pelos ex-combatentes da Guerra do Vietnã, migrando-o para descrição dos sintomas de exaustão relatados por trabalhadores, incluindo ele mesmo]. É também nesta época que o psicanalista francês Christopher Dejours vai estudar o sofrimento mental relacionado ao trabalho – com o objetivo de compreender as estratégias de defesa adotadas pela classe trabalhadora na busca por perverter tal sofrimento em prazer. Ele consolida este estudo em seu livro "A Loucura do Trabalho", publicado originalmente na França, em 1980. Mas aqui há um detalhe bastante importante: a observação feita pelo médico francês se deu sobre os trabalhadores operários alocados em linhas de produção industriais.
Ao considerarmos isso, fica fácil compreender que os trabalhadores de chão de fábrica [diga-se de passagem, uma expressão bastante pejorativa no mundo corporativo] sempre estiveram expostos a uma forte sobrecarga psíquica, uma vez que seus corpos e suas mentes foram historicamente forçados a adaptação frente à realidade fabril – que é hostil por sua natureza altamente prescrita, ou seja, violentamente organizada, programada, quantificada, objetificada e determinada. Basta lembrarmos da ilustração feita por Charlie Chaplin, no filme "Tempos Modernos", de 1936. Ali, não é apenas o corpo que se molda ao ritmo das máquinas; é, também, no limite, a mente que colapsa em virtude do confronto com a produtividade ilimitada almejada pelo sistema econômico.
Isto posto, torna-se inevitável questionar: por que somente agora o tema ganhou destaque na primeira página da grande mídia?
Respondo: porque, historicamente, a sociedade nunca se importou de forma verdadeira com este perfil de trabalhador. Sempre houve certo desprezo pela classe operária, em virtude da natureza braçal de sua atividade; uma enorme massa de empregados considerada menos importante quando comparada com os trabalhadores alocados em atividades administrativas, logo de esforço intelectual.
Não me julgue por causa da afirmação anterior. Se diferente fosse, não teríamos uma discrepância tão abissal entre a remuneração total (que corresponde ao valor do salário nominal somado às verbas trabalhistas e aos custos indiretos do pacote de benefícios) de um operário e a de um membro de diretoria. Também não observaríamos uma diferença tão gritante quando comparada a qualidade das instalações onde estão as áreas produtivas e os escritórios: de um lado, unidades muitas vezes degradadas pelo tempo, com ambiente insalubre (temperatura, ruído, umidade) e uma pior oferta de alimentação; e, do outro, escritórios confortáveis, com ar condicionado de última geração, climatização, vending machines com vários snacks e uma rotina diária de limpeza com direito aromatizadores elétricos e arranjos florais suntuosos na entrada. Exagero? Um pouco. Mas é bom carregar na tinta para que possamos nos dar conta deste disparate.
Por isso, meu palpite para responder à pergunta inicial deste artigo é: com a pandemia do novo coronavírus, o sofrimento psíquico do trabalho jogou sua sombra macabra sobre a classe de trabalhadores administrativos, que antes se pretendia isenta de tal mazela (ou, se portava como). Talvez isso explique porque, em uma pesquisa sobre o tema[1], realizada em meados de 2020, 61% dos CEOs entrevistados concordam com a afirmação que diz que a problemática da saúde mental no trabalho é um assunto que deve ser tratado pelo "C-Level" e não somente por Recursos Humanos – o que é ótimo, claro. Mas só poderemos comemorar essa súbita tomada de consciência do alto escalão se as ações implementadas para conter o avanço deste quadro forem realmente sólidas e verdadeiramente inclusivas.
Uma vez que, agora, os afetados por esta realidade do sofrimento psíquico do trabalho são os empregados administrativos – desde o estagiário, passando por todas as lideranças intermediárias e culminando no pico da pirâmide hierárquica onde estão os CEOs – são os trabalhadores white collar[2] que se veem enlouquecendo em virtude do confronto de seus corpos e suas mentes com a intensificação do trabalho. Ou seja, são aqueles que correspondem ao imaginário social do trabalho digno e glorificado. É isso o que torna a pauta importante. Enquanto eram somente os blue collars que padeciam, este assunto ficou marginalizado das discussões estratégicas dos negócios.
Neste sentido, a pandemia não apenas nos iguala enquanto seres humanos frente à possibilidade da morte (lembrando que as estatísticas do Covid-19 mostram que as populações vulneráveis foram muito mais atingidas do que os grupos privilegiados), mas também nos equipara enquanto classe trabalhadora - uma oportunidade para compreendermos que, se não estamos no seleto grupo dos 1% mais ricos do mundo, somos todos – trabalhadores operários e administrativos – uma mesma mão de obra explorada pelo sistema econômico.
Referências:
[1] THIRD ANNUAL Workforce Attitudes toward Mental Health. Ginger
[2] White collar (colarinho branco) e blue collar (colarinho azul) são expressões norte-americanas utilizadas para designar, respectivamente, os trabalhadores em atividades administrativas-burocráticas e os trabalhados em atividades operacionais-fabris.
Esta coluna não reflete, necessariamente, a opinião do Site Doutor Jairo
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