Thatiana Cappellano Publicado em 09/03/2021, às 18h07
Se você se deteve ao título desta coluna e está percorrendo estas linhas iniciais, acredite: é só o começo de uma longa travessia, “sem pódio de chegada ou beijo de namorada” (como diz a canção de Cazuza) ao final. Refletir sobre a atividade do trabalho não é uma tarefa fácil. Tá, esta colocação é um tanto clichê, eu sei. Talvez seja, sim, um lugar comum. Porém, pode ter certeza, é algo para lá de honesto.
A ideia de colocar o trabalho no divã e a partir disso jogar luz sobre essa atividade tão vital para todos os seres humanos é algo bastante assustador e excitante. Afinal, o trabalho diz sobre quem somos – e faz isso duplamente! De um lado, ele é parte essencial da identidade de cada um e, desta forma, constitui nosso entendimento sobre nós mesmo no mundo (o lugar que ocupamos e o que merecemos por isso). De outro, ele é, também, e ao mesmo tempo, aquilo que fala ao outro sobre nós, nos localizando socialmente em relação aos demais. Nesta dupla via, o trabalho atribui, assim,um significado imaginário e simbólico de primeira ordem a todas as pessoas.
Trabalhar não se trata apenas de uma profissão ou de uma carreira, seja de sucesso ou de fracasso. Também está muitíssimo além da renda e do quanto ela permite a cada um de nós a manutenção de nossas vidas e uma maior ou menor noção subjetiva de felicidade[se eu te contar que para a maioria das pessoas uma renda mais alta não se reflete no aumento da felicidade subjetiva, você acreditaria? Pois é, há uma dada proporcionalidade direta entre essas duas variáveis somente nas situações extremas – ou seja, entre os muitíssimos ricos ou os muitíssimo pobres]. Não diz respeito apenas ao que fazemos, e, claro, não tem nada a ver com manter um perfil bacanudo no LinkedIn (terra mágica e estonteante na qual prolifera uma cultura cor-de-rosa em relação à atividade do trabalho: felicidade pura!).
Por isso, para iniciarmos esse nosso papo por aqui, vale a pena considerarmos três premissas que estarão presentes no conteúdo desta coluna:
Bom, você pode estar achando exagero imputar ao trabalho tamanha relevância. Uhum, tá bom... então deixa a gente te dar dois exemplos bastante tangíveis que ilustram como o trabalho é algo central à nossa existência.
O primeiro, bem pragmático, simples e até cômico. Pegue o seu celular. Agora, abra a sua agenda de contatos. Abriu? Repare na forma como você salva o nome das pessoas nesta lista. Muito provavelmente, o Paulo é “Paulo Itaú”, e não Paulo Afonso Machado (aliás, capaz de você nem sequer saber o sobrenome do Paulo, rs). A Márcia é “Márcia Nutricionista”; e não é difícil que algum contato carregue somente a profissão, tipo “Eletricista”. O que isso significa? Que prioritariamente nos referimos aos outros e os identificamos para nós mesmo por essa chave do trabalho. Muito mais do que quem a pessoa é, falamos dela por aquilo que ela faz.
Quando rola um match com um crush no app de relacionamento, a pergunta “o que você faz/ você trabalha em quê/ onde você trabalha?” está entre os primeiríssimos questionamentos, algo tão importante quanto saber o nome, onde a pessoa mora e se ela está bem. Isso vale tanto para esse contexto das paqueras líquidas modernas quanto em qualquer outra ocasião em que um novato se faz presente em nossas vidas – como no aniversário do amigo, em que as apresentações são feitas assim: “Thais, esse aqui é o meu primo Adriano, geógrafo (ou cozinheiro, ou agilista, ou contador, ou o ‘dono da farmácia da rua’), que te falei, lembra?”, e assim segue, literalmente, o baile.
Mas essa questão vai além: a depender da atividade desempenhada daremos maior ou menor importância à pessoa, ao que ela fala e às suas opiniões. Agora, se as coisas são mais ou menos assim, então dá pra imaginar o extremo oposto disso: como é estar ou ser uma pessoa que não trabalha? É só a gente parar um segundo e lembrar como tratamos e que valor nós damos às pessoas em situação de desemprego. Não precisamos de muito esforço para, de cara, perceber que ao desempregado pouco ou nenhum respeito é dado. Afinal, em uma sociedade cuja cultura está fortemente centrada na atividade do trabalho, ela torna-se um importante estigma.Isso é tão interessante de ser observado, que a pesquisa Trabalho e Sofrimento Psíquico, de 2019, aponta que trabalhadores desocupados, desalentados, afastados e informais relatam perceber que suas opiniões têm menos valor e importância para suas famílias do que as considerações de algum parente cujo vínculo empregatício formal exista.
O segundo exemplo é uma história real e trágica. No dia 28 de agosto de 2016, um consultor de 43 anos, sua esposa, de 48 anos, e os filhos do casal – dois meninos, de 7 e de 10 anos de idade – foram encontrados mortos. O crime: o executivo matou a esposa, na cama, com golpes de faca no pescoço e, em seguida, jogou os dois filhos da janela da varanda do apartamento localizado no 18º andar de um condomínio na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. Por fim, ele pulou, cometendo suicídio. O motivo: ele estaria enfrentando dificuldade no trabalho e, sob o constante fantasma de um possível desemprego, não conseguia lidar com a culpa por ter fracassado no papel de provedor da família. O rapaz não tinha nenhum diagnóstico prévio de doenças mentais e era tido como alguém sociável e tranquilo. Ele relata seu desespero em uma carta, deixada no local da tragédia: “Sinto um desgosto profundo por ter falhado com tanta força, por deixar todos na mão, mas melhor acabar com tudo logo e evitar o sofrimento de todos”. Obviamente, aqui estou falando de uma situação limítrofe, mas que não é rara: a morte em consequência do trabalho é uma dura e triste realidade. Negar esta realidade não resolve a questão e, por isso, ela será trazida aqui, em nossas reflexões, sempre que necessário.
Esses dois exemplos, por vias diferentes, nos ajudam a compreender que o trabalho pode ser observado em nossa sociedade por meio de muitos sintomas. Não se pode generalizar, obviamente, mas a partir das situações narradas acima, podemos conjecturar: algo no mundo do trabalho vai mal. Muito mal. Por isso, falar sobre esse assunto é necessário, pois o trabalho diz respeito a todos, enquanto conjunto humano, e a cada um, como sujeito.
Neste ponto, você pode estar se perguntando: afinal, o que é o trabalho de que estamos falando aqui? Um excelente questionamento!
Como dito acima, o objeto aqui em análise – o trabalho – é complexo e dinâmico. Por isso, responder a essa pergunta pede que seja feita uma escolha teórica, o que não significa que esta é a definição perfeita. Mas, nesse ponto da nossa conversa – em que estamos delimitando inicialmente sobre o que vamos dialogar nesta coluna – quem melhor nos ajudará é Christopher Dejours, um psiquiatra e psicanalista francês, nada menos do que o pai da disciplina Psicodinâmica do Trabalho [parêntese rápido: o que é a psicodinâmica do trabalho? Uma disciplina científica, criada na França na década de 80 e que tem por objetivo estudar de que maneira os trabalhadores – ou seja, todos nós! – se defendem psiquicamente do sofrimento que a administração científica do trabalho nos causa].
Para ele, o ato de trabalhar envolve o sujeito duplamente. De um lado, há a perspectiva física devido aos seus impactos nas habilidades, nos gestos, no ritmo corporal e tudo mais que se relaciona ao corpo que se molda às máquinas de produção [e pode já desmistificar a ideia de que isso diz respeito apenas com as pessoas que trabalham em atividades braçais! Nada disso! Você aí, que sente aquele desconforto nas costas por ficar sentado na cadeira o dia todo ou que vive, dia após dia, uma sensação de que todas as horas dedicadas ao trabalho não fazem o menor sentido, está no mesmíssimo barco!].Do outro, há a dimensão psíquica, pois o trabalho exige inteligência, raciocínio, habilidade emocional e tática de relacionamento, numa miríade de competências e comportamentos que demandam esforços e atenção constantes por parte de quem trabalha.
Dá pra concluir, então, que o ato de trabalhar requer que o sujeito faça o emprego de si mesmo em uma atividade que é, por princípio, delimitada por pressões (sociais, econômicas, imaginárias, materiais etc). Como define Dejours, trabalhar “não é somente produzir; é, também, transformar-se a si mesmo e, no melhor dos casos, é uma ocasião oferecida à subjetividade para se testar, e até mesmo se realizar.”
Por essa perspectiva, o ato de trabalhar é algo que está muito, mas muito, muito além do produto oriundo da mera produção – seja ela resultante do esforço físico ou intelectual. E é aí que a porca torce o rabo! Se trabalhar vai muito além do produzir, se é muito mais do que aquilo que possa vir a existir extracorporeamente ao ser que trabalha, a pergunta que realmente importa é: qual é o limite do trabalho em nossas vidas? Até que ponto o trabalho é uma atividade - com começo, meio e fim - ou é a própria dinâmica de existência do sujeito, logo de existência da vida única de cada um de nós?
Ficou claro, agora, porque trabalhar não é algo tão simples assim para nosso aparelho psíquico?
Uma pensadora que nos ajuda a compreender essa perspectiva do trabalho como a condição da própria vida é Hannah Arendt, em sua obra A Condição Humana. É um texto cuja proposta central “(...) é muito simples: trata-se apenas de pensar o que estamos fazendo[6]”. Publicado em 1958, é uma profunda e complexa fenomenologia da condição humana na modernidade, em que a autora retoma o entendimento clássico da atividade do trabalho como a condição da própria vida.
Mas, calma... respira, nós vamos caminhar aos pouquinhos. Essa reflexão de Arendt demanda espaço… e para um primeiro bate-papo, já refletimos um tanto! Se quiser ler um conto que é bastante interessante e que nos ajuda a ilustrar essas questões antes do nosso próximo encontro, fica a dica aqui para você se deleitar com Bartleby, o Escriturário, de Herman Melville.
Até mais!
Lista de referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2017(a).
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DUFOUR, Dany-Robert.. O Divino Mercado: a revolução cultural liberal. Tradução de Procópio Abreu. Rio de Janeiro. Companhia de Freud, 2008.
FREITAS, Maria Ester de. Cultua Organizacional: identidade, sedução e carisma?. Rio de Janeiro. Editora FGV, 2006.
GRAEBER, David. A sociedade dos empregos de merda. Tradução: Antonio Martins. Disponível em https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/a-sociedade-dos-empregos-de-merda/. Publicado em 08/06/2018.
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_____.. Sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini - 2ª Edição ampliada. Petrópolis, RJ. Editoria Vozes, 2017(b).
_____. Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas formas de poder. Tradução de Maurício Liesen. Belo Horizonte, MG. Editora Âyiné, 2018.
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* Esta coluna não reflete, necessariamente, a opinião do Site Doutor Jairo