A cultura contemporânea está imersa em uma ideologia que glorifica o trabalho como a atividade suprema da nossa espécie
Thatiana Cappellano Publicado em 06/05/2021, às 10h00
Levante a mão se você nunca ouviu uma dessas máximas: “O trabalho dignifica o homem”; “Deus ajuda a quem cedo madruga”; “Tempo é dinheiro”, ou “Mente vazia, oficina do demônio”. O que esses jargões nos mostram? Que a cultura contemporânea molda o nosso imaginário a respeito do trabalho desde cedo, qualificando-o como a atividade de maior valor de nossas vidas – e a gente nem se dá conta disso.
Quando crianças ouvimos [e depois, mais velhos, repetimos insistentemente aos mais novos, sejam filhos, sobrinhos ou qualquer outra criança com quem tenhamos a mínima relação]: “Você tem que estudar para ser alguém na vida!”. Mas, você já parou para pensar qual o imaginário que está por trás da expressão ‘ser alguém na vida’?
Me parece que ao dizer isso não está implícita a ideia de que aquela pessoinha possa vir a ser, sei lá!, um poeta ou uma atriz, um filósofo ou sociólogo, um marceneiro ou artesão, um tatuador ou grafiteiro [arrisco a dizer que no Brasil de hoje, também não é ser um professor – e isso é muito triste]. Não, não são esses os ofícios que farão a criaturinha s-e-r-a-l-g-u-é-m-n-a v-i-d-a.
Por trás desta expressão há um imaginário bem solidificado, repleto de símbolos: terno e gravata, salto alto e maquiagem, ar-condicionado no escritório, carro da firma, cargo com nomes pomposos [preciso dizer que acho engraçadas terminologias como “Head de qualquer coisa”... Head, gente? Sempre visualizo que entrará na reunião somente uma cabeça, sem o corpo, que nem a mão da Família Adams]. Ou seja, o trabalho que dignifica e que recebe um empurrãozinho divino se a jornada começar cedo tem uma cara: a de um executivo. E se não der para ser engravatado, no mínimo, tem que ser em uma empresa, é isso o que mais importa.
E por que esse lugar certo, esse lócus, do trabalho digno?
Bem, porque numa dada medida as organizações modernas se tornaram nossa referência imaginária dos valores preconizados como superiores em nosso tempo: ética, eficiência e alto desempenho, só para citar alguns [e posso te dar três exemplos deste sintoma em nossa sociedade, meras ilustrações: primeiro, a forma como associamos a noção de corrupção primariamente ao Estado e quase nunca às empresas; algo discursivamente tão bem construído em nossa cultura que nos faz qualificar o Estado sempre como ineficiente, corrupto e obsoleto – ou seja, desnecessário; segundo, a resistência encontrada entre colegas e familiares por aqueles que, no limite da exaustão ou do assédio, decidem pedir demissão de uma ‘firma tão boa’; e, terceiro, o maior apreço dado à fala e a opinião dos parentes e amigos cujas ocupações se dão dentro deste imaginário do ‘executivo de empresa’ – basta acompanhar as discussões familiares num almoço de domingo ou no boteco].
Mas acontece que as organizações empresariais modernas são e sempre foram um ambiente insalubre, física e mentalmente, por mais que hoje em dia tenhamos escritórios e fábricas modernos, com uma série de regulamentações e normas técnicas que orientam desde questões de ergonomia até a extensão da jornada de trabalho [e não vamos cair na falácia de acreditar que estratégias placebo como as salas de relax e descompressão preconizadas pelas vedetes do Vale do Silício resolvem a questão].
Isso soa como exagero e extremismo? Voilá, então me acompanha aqui na reflexão a respeito de alguns fatos e números.
Morte por excesso de trabalho. É isso que a palavra japonesa Karoshi significa.
Reconhecido pela OIT (Organização Internacional do Trabalho) o Karoshi é uma realidade da cultura japonesa, ao menos desde 1997 quando um artigo publicado no International Journal of Health Services, dá conta que a primeira morte reconhecidamente causada por excesso de trabalho ocorreu em 1969, no Japão: um jovem de 29 anos, que exercia a função de entregador em um jornal local, veio a óbito em decorrência de um ataque cardíaco. Estatísticas não oficiais apontam que, já em 2015, foram mais de 2.000 mortes deste tipo neste país (quantidade que corresponde ao total de famílias que pediram indenização ao governo, naquele ano). A rigor, o karoshi diz respeito a uma morte súbita, imprevista e inesperada. Desta maneira, por exclusão, os atentados contra a própria vida não seriam considerados. Uma pesquisa realizada em 2016 indicou que 20% dos japoneses chegam a fazer 80 horas extras mensais em seus empregos[1]. Não por menos, já são largamente reconhecidos os casos de karojisatsus, quando o trabalhador chega a um ponto tal de estafa que comete suicídio. No ano de 2017 foram, oficialmente, 444 mortes deste tipo na terra do sol nascente[2].
Tá bom, falar da realidade do Japão é algo muito distante para você? Então vamos olhar para alguns números do nosso país.
Segue a thread...
Dentro deste quadro, os indicadores de Burnout (do Inglês To Burn Out – ou seja, consumir-se por completo) também se acentuam. Foi somente em maio de 2019 que a OMS (Organização Mundial da Saúde) incluiu a Síndrome de Burnout na Classificação Internacional de Doenças (CID) como um fenômeno ocupacional resultante do estresse crônico não gerenciado com sucesso. Como toda síndrome, ela é composta por múltiplos sintomas[8].
Você sabe identificar o Burnout?[9]
Aqui estão listados alguns dos sintomas que podem aparecer de forma aleatória e em maior ou menor intensidade em cada pessoa. Vale a pena ficar de olho e se prevenir!
Mas, é interessante observar que profissionais afastados das atividades laborais com diagnóstico de Burnout tendem a relatar algumas características e comportamentos semelhantes[10]: primeiro, são pessoas que se autodenominam como perfeccionistas, profissionais sempre em busca de fazer melhor; segundo, se percebem como empregados altamente engajados, que sempre estavam dispostos a ajudar e a estender a carga de trabalho; terceiro, após o quadro de estafa, reconhecem que negaram para si mesmo o sofrimento em que estavam, retardando a busca por ajuda até o limite em que se tornou insuportável.
De acordo com uma pesquisa conduzida pela OMS, cerca de 20 mil brasileiros pediram afastamento médico no ano de 2020 por doenças mentais relacionadas ao trabalho[11]. Isso talvez nos ajude a entender porque somos o segundo país no mundo com maior número de pessoas afastadas do trabalho por Burnout, segundo a International Stress Management Association.
Barra, né?
A partir destas realidades, tanto a do Karoshi quanto dos números de Burnout no Brasil, podemos dizer que algo no mundo do trabalho vai mal. Muito mal.
A pergunta que fica neste ponto da conversa é: por que se impõe uma forte negação em aceitar o adoecimento físico e principalmente psíquico relacionado ao trabalho? Talvez devido ao julgamento que se faz sobre si e, também, aquele advindo dos outros.
Lembra dos ditos elencados lá no primeiro parágrafo do texto? Pois bem. Na nossa sociedade trabalhar é a coisa mais normal da existência humana, um destino inexorável, tão essencial quanto respirar e comer.
Ninguém nos obriga a trabalhar, a gente simplesmente cresce entendendo que essa atividade é parte da vida (ou a vida em si mesma). Afinal, a gente vive em uma cultura que sedimenta-se, prioritariamente, em uma ideologia do trabalho uma vez que esta atividade foi discursivamente dignificada ao longo dos últimos séculos [para e pensa: láááá no começo da modernidade, quando a primeira revolução industrial teve início, quem em sã consciência ia aceitar trabalhar 18 horas por dia, em condições completamente insalubres e adversas, ao limite da exaustão física, por um valor irrisório? Era essa a realidade do mundo do trabalho lá em 1760. Era preciso “convencer” as pessoas a toparem aquele absurdo! É por isso que podemos pensar numa ideologia discursiva do trabalho, entende? Uma narrativa que penetrou no tecido social e moldou nossa forma de ver as coisas]. Digo que há uma ideologia do trabalho porque estou levando em conta que existe uma construção discursiva, logo simbólica, que inunda o imaginário social sobre esse tema – criando modelos e padrões, muitas das vezes irreais, o que acarreta no cenário de morbidade e adoecimento anteriormente descrito.
Nossa cultura nos diz claramente que quem trabalha é digno. Merecedor. Decente. Moral. Esforçado. Maduro. Responsável. Íntegro. Ajuizado. Adulto. Confiável.
E quem não? Rs.
A palavra vagabundo é diretamente associada às pessoas que não trabalham. No mínimo, são chamadas de preguiçosas. Como se trabalhar ou não fosse apenas uma questão de querer (e não de oportunidade e acesso; de capital educacional, social e relacional que juntos permitem que uma determinada classe tenha muito mais chances e oportunidades para ocupar o mercado de trabalho do que outra!).
Por isso, negar o trabalho, seja pelo adoecimento ou por não aceitar se submeter a condições tão precárias, carrega em si uma marca social negativa simbolizada culturalmente como fraqueza e irresponsabilidade, o que faz pairar inúmeras dúvidas quanto a capacidade geral (de produzir, de sustentar-se e mesmo de existir) de quem encontra-se nessa situação.
Pontuar tal situação como ilustração não é subestimar o ser humano em sua capacidade de refletir e perceber esse engodo; mas, sim, conjecturar que a cultura que rege a sociedade desde a modernidade carrega em si uma perversão sobre o que é trabalhar: o sofrimento corporal e psíquico oriundo desta atividade se torna prazer à medida em que suportá-lo possui significado social positivo – diz sobre a Fé, a perseverança, a dignidade, a paciência, o esforço daquele que trabalha.
Perverter discursivamente a atividade do trabalho, desdizendo o que ela carrega em si de sofrimento e morte, foi essencial para chegarmos onde estamos.
REFERÊNCIAS
[1] https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/24/dementia-21-e-as-relacoes-de-trabalho-no-japao.htm
[2] https://www.reuters.com/article/us-japan-economy-overwork-idUSKCN0X000F
[3] https://smartlabbr.org/sst
[4] https://economia.uol.com.br/noticias/estadao-conteudo/2021/02/26/pais-tem-taxa-de-informalidade-de-395-no-trimestre-ate-dezembro-mostra-ibge.htm
[5] http://www.previdencia.gov.br/2018/03/saude-do-trabalhador-dor-nas-costas-foi-doenca-que-mais-afastou-trabalhadores-em-2017/.
[6] https://www.anamt.org.br/portal/2017/10/26/transtorno-mental-e-a-3a-causa-de-afastamentos-de-trabalho/
[7] https://jovempan.com.br/programas/jornal-da-manha/afastamentos-do-trabalho-por-transtornos-mentais-tem-alta-de-33-na-pandemia.html
[8] https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5949:cid-burnout-e-um-fenomeno-ocupacional&Itemid=875#:~:text=28%20de%20maio%20de%202019,como%20uma%20condi%C3%A7%C3%A3o%20de%20sa%C3%BAde.
[9] https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2018/06/27/sindrome-de-burnout-12-estagios-ou-sintomas-do-esgotamento-profissional.htm?next=0001H186U11N
[10] Segundo dados da pesquisa Trabalho e Sofrimento Psíquico, de 2019, disponível em https://4co.com.br/pesquisa_trabalho/
[11] https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2021-01/excesso-de-trabalho-e-pandemia-podem-desencadear-sindrome-de-burnout
* Esta coluna não reflete, necessariamente, a opinião do Site Doutor Jairo
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