Lei preconiza o que os profissionais de saúde aprenderam em sua formação: cuidar, não julgar
Anderson José Publicado em 13/05/2021, às 17h50
A Constituição ‘Cidadã’ Brasileira promulgada em 1988 substituiu àquela com inspirações ditatoriais adotada no regime militar entre os anos de 1964 e 1985. Entre centenas de direitos e deveres, o artigo 196 prevê que saúde é um direito de todos e dever do Estado, mas apenas para frisar, transcreveremos ipsis litteris o trecho a seguir:
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.
Ou seja, não há alguma exceção ao direito à saúde por qualquer cidadão, aliás, de acordo com os próprios princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), toda e qualquer pessoa em território brasileiro tem direito a atendimento médico público, gratuito e de qualidade.
É nesse sentido que até as pessoas privadas de liberdade têm direito a atendimento médico, mesmo cumprindo pena por algum delito nos diferentes presídios espalhados pelo Brasil. Se colocar contrário a isso, além de inconstitucional, não acrescenta em absolutamente nada na ressocialização dos presos. Não se trata de “direito dos mano”, como uns e outros dizem por aí, mas sim exercer o que a lei preconiza e o que os profissionais de saúde aprenderam em sua formação: cuidar, não julgar.
O Infopen é um conjunto de informações estatísticas do sistema prisional brasileiro, responsável pelo levantamento de dados acerca da população carcerária no Brasil. Em 2019, de acordo com as informações divulgadas, o Brasil possuía uma população prisional de 773.151 pessoas privadas de liberdade em todos os regimes. Isso coloca o Brasil no 3º lugar do ranking das maiores populações carcerárias do mundo, apenas atrás de Estados Unidos e China, respectivamente.
Os dados do Infopen permitem analisar também a tipificação dos crimes cometidos entre os presos brasileiros:
Assim, defender que todos que estão presos são assassinos e que merecem padecer de dor, sem sequer ser visto por um médico, não faz sentido, visto que crimes contra à vida não são os que mais prendem no Brasil, tampouco, como já dito, é a função daqueles que estudaram e trabalham para a garantia e restabelecimento de saúde de quem quer que seja.
Dados de 2020 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) mostraram que 1.439 unidades prisionais do Brasil não possuem qualquer tipo de assistência médica, sendo o Nordeste a região com a pior situação – 42,7% das prisões carecem de qualquer aparato. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM) há 1.095 médicos que trabalham prestando assistência no sistema para uma verdadeira população que vive em cárcere.
Em São Paulo, bem como os outros estados da federação, há presídios que não possuem serviço hospitalar. No entanto, como forma centralizada de atendimento aos presos, o Complexo Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo, localizado na zona norte da capital paulista e mantido com recursos do SUS, atende aos presos e presas de todo o estado com a oferta de diversas especialidades clínicas e cirúrgicas.
Com exceção de oftalmologia, todas as outras especialidades médicas têm profissionais lotados no atendimento dos pacientes provenientes das diversas unidades prisionais do estado de São Paulo.
O Complexo Hospitalar do Sistema Penitenciário de São Paulo conta com 15 leitos em uma Unidade de Terapia Intensiva (UTI), um Centro Cirúrgico, além de sala de procedimentos odontológicos, sala de coleta de exames e diversas outras salas de atendimento ambulatorial. Uma Organização Social de Saúde (OSS) é quem administra o hospital, que recebe todos os dias presos de todo o estado.
Como nem todas as unidades prisionais possuem serviço de atendimento médico, muitas pessoas privadas de liberdade viajam horas até a cidade de São Paulo para serem atendidas pelos médicos do hospital penitenciário. Porém, o trânsito entre sair da cadeia e chegar até a sala do médico é difícil e longo, para além dos quilômetros percorridos. Quando um preso sai de onde cumpre pena, ele entra em uma espécie de fila de espera no Centro de Detenção Provisória de Pinheiros (CDP de Pinheiros), até chegar a sua vez de ser atendido. Há pacientes que ficam 15 dias no CDP para, então, ser atendidos e depois retornar para a unidade prisional de origem.
A superlotação das cadeias é uma questão que desencadeia uma série de problemas de saúde nos presos. Um ambiente cheio torna-se insalubre para a boa convivência, além de que o sistema não consegue suprir as necessidades de saúde de todos aqueles confinados em celas minúsculas, muitas vezes úmidas e com pouca ventilação. Um trabalho realizado nas cadeias do estado do Rio de Janeiro mostrou que doenças do aparelho respiratório, incluindo tuberculose, estão no topo das queixas de saúde. Além de disfunções respiratórias, problemas musculares, distúrbios psiquiátricos e doenças de pele aparecem no ranking das principais causas de adoecimento no sistema prisional.
A superlotação somada a um ambiente insalubre é fator predisponente para diversas afecções do trato respiratório. A tuberculose, por exemplo, tem uma incidência alarmante dentro das cadeias: de cada 100 mil presos, 900 tem a doença. No Brasil, a incidência é de 20 casos por 100 mil habitantes, o que denota uma incidência 4.500% maior na cadeia do que fora dela.
Sobre a Covid-19, até julho de 2020, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 129 pessoas privadas de liberdade morreram em decorrência da infecção pelo Sars-Cov-2 no Brasil e, no estado de São Paulo, foram 35 óbitos notificados.
A garantia de condições mínimas de vida no cárcere para essa população incorre em importante medida de prevenção a situações vexatórias, a riscos de violência sexual das mais variadas formas, bem como previne quadros psiquiátricos, dado o constante clima de perseguição e tensão a pessoas LGBT impedidas de viver sua sexualidade e ser quem são entre as grades de presídios do Brasil.
A população LGBTQIA+ é alvo de preconceito, estando essas pessoas em liberdade ou não. No cárcere, o preconceito ganha mais força dado o ambiente heteronormativo em presídios masculinos. Para uma melhor organização e segurança aos LGBTs nos presídios, é de grande valia a instalação de alas separadas no cárcere. Segundo um levantamento feito pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos de 1.499 presídios brasileiros, apenas 106 alas reservadas para pessoas LGBT.
O jornalista Alexandre Putti é autor do livro-reportagem “As Travas da Prisão” e nele conta a experiência que viveu quando participou da pastoral carcerária, em 2016, no CDP de Pinheiros. No livro-reportagem, o autor conta detalhes da vida de pessoas LGBT no cárcere e, entre uma página e outra, demonstra o tamanho da dificuldade vivenciada por essas pessoas nas celas de prisões.
“Quando um homem gay, mulher trans ou travesti são presos, eles ficam na mesma cela dos estupradores considerados a escória dentro da cadeia. Isso porque quem faz essa divisão dentro do presídio são os próprios presos. As celas destinadas aos LGBT são as piores em termos de estrutura e, consequentemente, são insalubres para viver.”
Em 2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), através da Resolução nº 348/2020, aperfeiçoou os mecanismos sobre o direito humano das pessoas LGBT condenadas e privadas de liberdade de cumprir suas penas em locais adequados ao seu gênero autodeclarado. Em suma, a medida tenta garantir que, antes de qualquer custódia, a justiça identifique e acolha pessoas da comunidade LGBT para que, se possível, elas tenham direito de escolher se querem ou não ir para um estabelecimento prisional com ala LGBT.
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