Sempre que se fala em microbiota intestinal, muita gente se lembra de iogurte ou leite fermentado. O conhecimento científico avançou muito nessa área, e com o marketing da indústria, até um leigo hoje sabe que as “bactérias do bem” que vivem no intestino defendem nosso corpo de doenças.
De acordo com especialistas que se apresentam até domingo (8) no congresso GutBrain, em São Paulo (presencial) e on-line, esses bichinhos que habitam nossas entranhas são capazes de interferir até na propensão à obesidade, no nosso humor e no risco de transtornos mentais. “Experimentos com filhotes de ratos mostram que, se você elimina a microbiota, o cérebro não se desenvolve adequadamente”, comenta o psiquiatra Marcus Zanetti, um dos organizadores do evento, para citar só um exemplo do quão importantes esses microrganismos são.
Integrante do Instituto de Ensino e Pesquisa do Hospital Sírio Libanês, Zanetti conta que está acostumado a duas reações opostas ao falar do assunto com colegas, pesquisadores ou pacientes: enquanto uns respondem com total ceticismo, outros depositam expectativas demais nos probióticos disponíveis hoje em dia. A verdade é que, segundo ele, ainda é cedo falar em “psicobióticos”, por mais promissores que sejam os estudos sobre o eixo cérebro-intestino na área de saúde mental.
Veja, a seguir, algumas informações curiosas sobre a relação entre o microbioma intestinal e saúde, e o que podemos fazer para deixar nossos hóspedes ilustres, as “bactérias do bem”, mais felizes.
“O intestino é a maior superfície de interface do nosso organismo com o mundo externo, mais até que a pele; são cerca de 200 metros quadrados”, descreve Zanetti. Por isso, o psiquiatra gosta de dizer que esse órgão funciona como um sensor do ambiente. “É muito elegante, do ponto de vista evolutivo, como o cérebro delega funções para a microbiota intestinal”, acrescenta. Em outras palavras, os germes são como funcionários terceirizados que executam tarefas nobres para o sistema nervoso.
Além de digerir alimentos e produzir nutrientes essenciais para a saúde, a microbiota intestinal tem uma conexão importante com o sistema imunológico, até por ser a porta de entrada para ameaças externas. Além disso, muitos neurotransmissores (mensageiros químicos) são produzidos nesse órgão, como a própria serotonina, que ficou famosa como hormônio que traz calma e satisfação para as pessoas.
Mas é bom desfazer alguns equívocos: o fato de 90 a 95% de toda a serotonina produzida sair de lá não quer dizer que ela vai toda para o cérebro. Segundo Zanetti, a maior parte tem ação no próprio trato gastrointestinal. Tanto que alguns antidepressivos que mexem com o fluxo de serotonina são usados para tratar a síndrome do intestino irritável (SII), condição que provoca diarreias, cólicas intestinais, prisão de ventre e estufamento abdominal frequentes.
Hoje se sabe que o conceito de índice glicêmico é relativo e depende muito dos microrganismos intestinais de cada indivíduo. Ou seja: uma taça de sorvete pode causar um pico de açúcar no sangue em uma pessoa, mas não alterar tanto a glicose de outra. Um estudo publicado há algum tempo, que envolveu a Fiocruz de Minas Gerais e instituições de outros países, revelou uma espécie de bactéria capaz de auxiliar na redução dos índices de glicose, o que seria extremamente útil para quem sofre de diabetes. A Akkermansia muciniphila, porém, fica impedida de atuar quando o organismo libera interferon-gama para se defender contra certas infecções.
Um combo com probióticos e prebióticos (componentes que servem de alimento para os microrganismos) inclusive já foi aprovado, nos EUA, para ajudar pessoas com diabetes. Mas esse é apenas um exemplo da complexa relação entre microbiota, metabolismo e inflamação.
Enquanto estudos são feitos, muita gente gasta bastante dinheiro com suplementos de probióticos por conta própria, preventivamente. “Isso é um erro; há risco até de efeitos colaterais, pode gerar até neurotoxicidade [ação de substância tóxica no cérebro ou sistema nervoso]”, avisa Zanetti. No caso de ansiedade e depressão, por exemplo, ainda não existe nenhuma indicação formal de cepas a serem usadas. Segundo ele, o que há são pesquisas pequenas, de curta duração, e muito interesse da indústria, é claro.
Vale lembrar que, no Brasil, a maioria dos produtos disponíveis contém lactobacilos ou bifidobactérias, sendo que a variedade de espécies presentes no intestino é muito grande. Mesmo estudos com transplantes fecais, uma estratégia mais invasiva e eficaz para modificar a microbiota intestinal de um indivíduo, ainda são preliminares na área de saúde mental. Então é preciso ter paciência.
Confira:
Nossa cultura, por diferentes mecanismos, representa um desafio enorme ao equilíbrio da nossa flora intestinal. Isso porque o sistema foi calibrado num tempo em que a vida era muito, muito diferente da atual. Para começar, um parto cirúrgico protege o bebê do primeiro e importante contato com bactérias da mãe. A terra, que é uma das fontes mais ricas em bactérias que existe, também não faz mais parte da nossa infância, bem como muitos animais.
Para completar, o consumo de alimentos processados, ricos em aditivos, conservantes, adoçantes e pesticidas (estes conhecidos por alterar a microbiota intestinal), é algo muito recente na nossa história evolutiva. Nossas bactérias "amigas" nem reconhecem boa parte do que tentamos oferecer a elas como alimento. Além disso, Zanetti lembra que ingerimos muito mais carne do que nossos antepassados, e menos fibras e ativos fitoquímicos (como polifenóis, carotenoides etc), que também são importantes para a manutenção do cérebro. Por isso, em vez de gastar com suplementos, invista mais em arroz com feijão, saladas, gorduras "do bem" e frutas in natura, e tente torcer menos o nariz para os sabores amargos e picantes que são próprios de muitos alimentos ricos em antioxidantes.
A afirmação acima parece não ter muita lógica, mas é algo que vem sendo pesquisado bastante. O nutricionista português Pedro Carrera-Bastos, pesquisador da Universidade de Lundt (Suécia) que participou do evento, explica que nosso organismo está adaptado para o movimento. “Ao estudar hábitos de populações que ainda têm um estilo de vida tradicional, o que se vê é muito mais atividade física do que se recomenda”, comenta. Ele ironiza que o normal para o ser humano seriam 150 minutos de exercício por dia, e não por semana, como preconiza a Organização Mundial da Saúde (OMS). "Quando uma pessoa se exercita, há melhora em diversos parâmetros, metabólicos e inflamatórios. Mas não é que o exercício ajuda, é não se exercitar que piora tudo", acrescenta.
É bom lembrar que o eixo intestino-cérebro é uma via de mão dupla, portanto o cérebro também é capaz de modificar o equilíbrio intestinal. "O estresse crônico produz mudanças nas condições locais do intestino", ensina Zanetti. Nessa situação, há redução de sucos digestivos, o que altera o pH de todo o trato gastrointestinal, a produção de muco e a motilidade intestinal. Isso pode favorecer o crescimento de bactérias que causam doenças e dificultar a vida das bactérias saudáveis. Quando o intestino sofre, suas paredes ficam mais permeáveis, deixando passar o que não deve. A consequência é uma inflamação crônica de baixo grau que afeta o corpo todo, inclusive o cérebro. E o ciclo vicioso se completa.
Alguns estudos preliminares sugerem até que a exposição à luz solar poderia interferir na microbiota, segundo Carrera-Bastos. Por isso, a recomendação dos especialistas é tentar retomar, um pouco, o estilo de vida a que o nosso corpo está mais habituado: fazer bastante exercício de dia, dormir bem à noite, ter mais contato com a natureza e cuidar da cabeça, fazendo terapia ou meditação. Não adianta depositar todas as expectativas num antidepressivo ou probiótico milagroso sem mudar hábitos que levam o organismo ao limite.
Veja também:
Tatiana Pronin
Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY e é membro da Association of Health Care Journalists. Twitter: @tatianapronin