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Dependência química: quando consumir drogas se torna um problema

O consumo de drogas não é algo recente para a humanidade, mas falar sobre isso ainda é um tabu - iStock
O consumo de drogas não é algo recente para a humanidade, mas falar sobre isso ainda é um tabu - iStock

Diversas drogas são usadas pela humanidade desde antigas civilizações e para diversos fins. Acredita-se que o álcool já fosse consumido enquanto bebida há mais de 10 mil anos por diversos povos, como celtas, gregos, babilônios e egípcios, especialmente em ocasiões especiais e cultos religiosos. As folhas de coca, das quais se extrai a cocaína, por sua vez, eram usadas pelos Incas cerca de três mil anos antes de Cristo, sobretudo para lidarem com os efeitos de viverem em altas altitudes.

Em 1955, o clordiazepóxido foi o primeiro medicamento benzodiazepínico produzido, tendo em vista seus efeitos terapêuticos ansiolíticos e relaxantes e, poucos anos depois, na década de 1960, o movimento hippie popularizou o consumo do LSD (dietilamida do ácido lisérgico) e suas experiências influenciaram a cultura daquela época.

Assim, o consumo de drogas não é algo recente para a humanidade, mas falar sobre isso ainda é um tabu.

Definições

Apesar de ser um assunto sobre o qual a população tem algum conhecimento, dependência química é algo complexo. Por isso, antes de começar a abordar o assunto, é importante conhecer e definir alguns termos:

  • Adição ou dependência: condição crônica na qual uma pessoa, independente do seu desejo ou controle, repete de forma frequente um comportamento. Esse comportamento traz algum prazer para o indivíduo, ainda que momentâneo, mas também é potencialmente lesivo para sua integridade, para seu patrimônio ou para terceiros. O conceito abrange desde o consumo de alguma substância (como álcool e outras drogas), até fazer compras ou fazer apostas. Não são termos técnicos no meio médico, contudo, podem ser interpretados como sinônimos, inclusive neste texto.
  • Dependência química: quando a adição de uma pessoa gira em torno do consumo de alguma substância. Tecnicamente são referidos como “transtornos por uso de substância”, podendo ser interpretados como sinônimos.
  • Dependente químico: pessoa que não tem controle em relação à sua vontade sobre usar aquela substância, de modo que consumi-la é uma prioridade em seu cotidiano e isso traz prejuízos para sua vida social, profissional, financeira ou em qualquer outro aspecto.
  • Droga: qualquer substância, legalizada ou não, que interage com o organismo e produz algum efeito, como álcool, cafeína, Cannabis, fármacos e outros. Elas ativam centros cerebrais de recompensa e induzem algum prazer.
  • Transtorno por uso de substância: termo mais adequado e abrangente ao se referir à dependência química enquanto doença, conforme definido pelo Manual de Diagnóstico de Transtornos Mentais da Academia Americana de Medicina (DSM-5). Além desse transtorno, o manual também aborda os transtornos induzidos por substância.
  • Usuário de drogas: pessoa que usa alguma droga com alguma frequência, de forma controlada, sem que isso afete seu comportamento e sua vida pessoal, profissional, social ou em qualquer outro âmbito.
  • Vício: termo inadequado para se referir à dependência.
  • Viciado: termo inadequado e pejorativo para se referir a uma pessoa com problemas com drogas.

Aqui, abordaremos a dependência química enquanto transtorno psiquiátrico, conforme estabelecido na Classificação Internacional de Doenças (CID-10) e no DSM-5. O CID-10 estabelece transtornos mentais e comportamentais devido ao uso de substâncias, constituindo a síndrome de dependência.  O DSM-5, que será utilizado aqui como referência, dedica um capítulo exclusivo aos transtornos relacionados ao uso de substâncias e transtornos aditivos.   

Classes de substâncias

O Manual da Academia Americana de Medicina agrupa em 10 classes as substâncias que podem causar dependência:

  • Álcool;
  • Tabaco;
  • Cafeína;
  • Cannabis (presente na maconha, no haxixe e no skunk, dentre outras);
  • Alucinógenos (encontrados em LSD, ectasy e alguns tipos de cogumelos e de ervas geralmente preparadas como chá);
  • Inalantes (como cola de sapateiro, loló, lança-perfume e quetamina);
  • Opioides (substâncias que possuem efeitos semelhantes ao do ópio, como a heroína, a oxicodona e morfina);
  • Sedativos, hipnóticos e ansiolíticos (inclui diversos medicamentos, geralmente de controle especial, com necessidade de retenção da receita médica);
  • Estimulantes (substâncias tipo anfetamina, cocaína e outros estimulantes);
  • Outras substâncias (ou substâncias desconhecidas).

Diagnóstico

As drogas, cada qual à sua maneira e conforme suas características bioquímicas,  agem de forma diferente no organismo, mas todas ativam o sistema de recompensa no cérebro e produzem sensações de prazer – “barato” ou “onda”, como popularmente são chamadas. Apesar de aparentemente boa, essa sensação é passageira e faz com que o usuário use cada vez mais daquela substância, comprometendo seu desempenho em atividades cotidianas, como trabalhar, estudar e se relacionar socialmente. Quando a pessoa se dá conta (ou não, já que nem sempre há consciência disso), ela não consegue mais controlar o impulso de consumir aquela droga e passa a negligenciar outras atividades, firmando uma relação de dependência com aquela substância.

Uma vez estabelecida a dependência química, vários danos podem ser observados com o curso do desenvolvimento da adição, em maior ou menor grau de comprometimento, a depender do tipo de droga e da quantidade de consumo. O indivíduo apresenta sintomas cognitivos (de atenção, memória ou aprendizado), comportamentais e fisiológicos, indicando o uso contínuo da substância mesmo com os diversos problemas relacionados a ela.

As alterações nos circuitos cerebrais causados pela droga podem persistir mesmo depois da desintoxicação, sobretudo em pessoas com quadros graves. Assim, os efeitos comportamentais dessas alterações cerebrais podem ser observados nas recaídas constantes e na intensa vontade de consumir drogas (conhecida como fissura) quando os indivíduos são expostos a estímulos relacionados a elas, podendo ser necessária uma intervenção terapêutica de longa duração. Da mesma forma, cada substância pode gerar sinais diferentes que indicam um transtorno.

O DSM-5, como dito anteriormente, separa os transtornos por uso de substância dos transtornos induzidos por substância, conforme a consequência desencadeada por cada tipo de droga. Esta última classificação compreende condições como intoxicação, abstinência e outros transtornos mentais. Além disso, o guia também permite a classificação do quadro clínico conforme os sinais e sintomas apresentados pelo indivíduo, variando de leve a grave.

Confira:

Fatores de risco 

O consumo recreativo de drogas é um caminho para o desenvolvimento da dependência química. Em geral, ele acontece a partir da adolescência e tem grande influência do meio social, mas não acontece apenas dessa forma e nem só nessa fase. Em períodos de luto, de estresse ou de algum episódio traumático, a adição pode se constituir a partir do uso da substância como uma válvula de escape, como um alívio.

O desenvolvimento em ambiente familiar também tem grande influência na relação com as drogas, especialmente para adolescentes. Como já publicamos aqui, crianças e adolescentes que crescem em ambientes nos quais a relação familiar é conturbada e com muitos conflitos têm mais propensão ao consumo de crack. De modo oposto, lares com uma família mais integrada e em harmonia podem ser vistos como fator protetor em relação ao consumo de drogas. Apesar disso, a dependência química pode atingir qualquer pessoa, de qualquer família ou classe social.

Além desses fatores sociais ou ambientais, fatores genéticos também podem se relacionar à dependência química, estabelecendo um caminho mais curto para a adição. Pessoas com outros transtornos mentais, como depressão e transtorno bipolar, podem buscar as drogas como via para aliviar seu sofrimento, aumentando, assim, o risco de desenvolverem dependência. Da mesma forma, pessoas que demonstram ter menos autocontrole podem ser particularmente predispostas a desenvolver transtornos por uso de substâncias.

Sinais

Alguns sinais podem indicar um quadro de dependência química. O primeiro deles é a perda do controle do consumo da substância. Como dito anteriormente, uma vez que o controle em relação ao consumo da droga não pode ser feito pela pessoa, há grande chance de ela se encontrar numa condição de dependência. Isso fica mais evidente quando ela tenta por conta própria parar o consumo, mas não consegue fazê-lo sozinha, continuando a usar, apesar dos danos. Além disso, a pessoa também pode apresentar alterações do comportamento, tanto pelo uso da substância quanto pela abstinência.

O impacto social na vida do dependente químico também pode ser notado. Ele pode deixar de cumprir com suas obrigações de trabalho, ter comprometimento no aprendizado na escola ou na faculdade, e apresentar-se alterado em reuniões sociais, festas e eventos. Em alguns casos, também se verifica o isolamento social, de modo que a pessoa evita o contato com amigos e familiares e abandona atividades que anteriormente considerava prazerosas.

Cada tipo de droga induz sinais variados que indicam um transtorno por uso de substância – que também varia conforme o organismo do indivíduo. Resumidamente, podemos listar os seguintes sinais que indicam um possível caso de dependência química:

  • O indivíduo gasta muito tempo para obter a substância, usá-la ou recuperar-se de seus efeitos;
  • Baixo controle sobre o uso da substância: a pessoa não consegue conter seu desejo para consumir a droga ou tem dificuldades para se controlar. Além disso, ela pode tentar relatar esforços malsucedidos para reduzir ou parar o uso.
  • Fissura: as atividades diárias do indivíduo giram em torno da substância, com um grande desejo ou necessidade de consumir a substância.
  • Prejuízo social: fracasso em cumprir as principais obrigações no trabalho, na escola ou no lar. Além disso, pode apresentar problemas sociais ou interpessoais causados ou exacerbados pelo consumo da substância.
  • Anedonia: perda da capacidade de sentir prazer em atividades que antes considerava prazerosas;
  • Afastamento social: o indivíduo pode se afastar de amigos e da família e perder eventos ou atividades devido ao uso da substância.
  • A pessoa coloca em risco sua própria integridade física (podendo ser observada tentativa de suicídio) ou a integridade de outras pessoas.

Tratamento

O tratamento da dependência química deve ser conduzido por psiquiatra, psicólogo e outros profissionais, que puderem contribuir com cada caso individualmente, como terapeuta ocupacional e assistente social. É muito importante que o tratamento seja feito com uma equipe preparada, pois indivíduos que apresentam problemas com drogas podem apresentar abstinência ao interromper o uso.

Abstinência é uma síndrome que ocorre quando as concentrações de uma substância no sangue ou nos tecidos do corpo humano diminuem em um indivíduo que manteve uso intenso prolongado. Assim, após desenvolver sintomas de abstinência, aquela pessoa tende a consumir a substância para aliviá-los, marcando um episódio de recaída.

Os sintomas da síndrome de abstinência variam de acordo com o tipo de substância e também com o indivíduo. A importância de se compreender a síndrome também se faz necessária quando, por exemplo, se deseja parar o tratamento com algum medicamento de uso controlado, como antidepressivos e ansiolíticos, os quais, se retirados abruptamente, podem causar a síndrome. Um “desmame” orientado por psiquiatra é fundamental para o sucesso terapêutico.

A intervenção farmacológica pode ser necessária para estabilizar os sintomas causados pela abstinência da droga e, em alguns casos, um medicamento pode ser usado para substituir a substância até que, num segundo momento, seja aos poucos retirado.

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Terapias individuais ou em grupo são fundamentais para que a pessoa desenvolva habilidades que reduzem o risco de recaídas (crédito da foto: iStock)

O apoio psicológico é fundamental para as pessoas com problemas com drogas e traz muitos ganhos. Seja com terapias feitas individualmente com psicólogos, seja em grupos para dependentes, como o Alcoólicos Anônimos (AA) ou Narcóticos Anônimos (NA), a pessoa pode voltar a desenvolver hábitos de uma vida saudável, restabelecer suas habilidades sociais e desenvolver habilidades socioemocionais e educativas que a afastem de recaídas. Em alguns casos, a internação em clínicas de reabilitação e outras estratégias de intervenção em modelo asilar também pode ser necessária.

Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) também são importantes no suporte terapêutico e de atenção à saúde de pessoas com problemas com drogas. Os serviços dos Caps são de caráter aberto e comunitário, constituído por equipe multiprofissional e realiza prioritariamente atendimento às pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas. Dentre os modelos do serviço estão o Caps Álcool e Drogas (AD), especializado em intervenções relacionadas ao uso de substâncias, e o Caps III, que funciona 24 horas por dia e fornece acolhimento noturno, inclusive a pessoas com transtornos causados pelo uso de substâncias.

O apoio da família e dos amigos é muito importante para ajudar a pessoa a se engajar no tratamento, aumentar sua motivação rumo à abstinência e ao bem-estar, e no combate à psicofobia. Isso porque as pessoas que têm problemas com drogas são vistas e julgadas por uma deturpada ótica moral, quando se trata, na verdade, de pessoas doentes, com transtorno mental. O tratamento pode fazer com que o indivíduo leve uma vida saudável e produtiva, mesmo que recaídas ou desmotivações aconteçam durante o percurso terapêutico.

Consumo e dependência no Brasil e no mundo

O Relatório Mundial sobre Drogas 2020 das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), com dados referentes a 2018, mostrou que cerca de 269 milhões de pessoas usaram drogas no mundo em 2018, número 30% maior do que aquele verificado em 2009. Além disso, o relatório também informou que mais de 35 milhões de pessoas em todo o mundo sofrem de transtornos associados ao uso de drogas.

A Cannabis é a substância mais consumida no mundo quando se fala em drogas, com cerca de 192 milhões de usuários. Os opioides, por sua vez, são usados por cerca de 58 milhões de pessoas e são apontados como os mais nocivos, sendo observado um aumento de 71% nas mortes por transtornos associados ao seu uso na última década – uma alta de 92% entre as mulheres e de 63% entre os homens. Dentre os estimulantes, a cocaína foi consumida por cerca de 19 milhões de pessoas, o ectasy, por 21 milhões e as metanfetaminas, por 27 milhões.

No Brasil, os dados mais recentes são do III Levantamento Nacional sobre o uso de drogas pela população brasileira (LNUD), que compila dados de 2017, quando foram entrevistadas 17 mil pessoas com idades entre 12 e 65 anos em todo o país.

O álcool desponta como a droga mais consumida, com cerca de 46 milhões de habitantes que o consumiram nos últimos 30 dias que antecederam a pesquisa. Em relação ao tabaco, a pesquisa estimou que aproximadamente 26,4 milhões de brasileiros de 12 a 65 anos tenham consumido algum produto de tabaco nos 12 meses anteriores à pesquisa.

Em relação às drogas ilícitas, a pesquisa mostrou que o uso de alguma delas na vida foi reportado por aproximadamente 15 milhões de indivíduos, e o uso nos últimos 30 dias por 2,5 milhões. A substância mais consumida dentre elas foi a Cannabis, com cerca de 11,7 milhões de usuários em algum momento da vida, seguida pela cocaína (4,6 milhões) e solventes (4,2 milhões). Outras drogas e medicamentos usados sem prescrição médica ou de forma diferente daquela receitada também foram apontadas pelo estudo.

Em relação à dependência química, o estudo mostrou que aproximadamente 2,3 milhões de pessoas entre 12 e 65 anos apresentaram dependência de álcool nos 12 meses anteriores à pesquisa, um número que corresponde a cerca de 1,5% da população brasileira e 3,5% dos indivíduos que consumiram álcool no último ano.

O número de dependentes de substâncias que não o álcool e o tabaco foi de cerca de 1,2 milhões de indivíduos de 12 a 65 anos nos 12 meses anteriores à pesquisa. Isso representa uma prevalência de 0,8% de dependentes na população geral e uma prevalência de 13,6% entre indivíduos que consumiram alguma substância nos últimos 12 meses. A maior prevalência de dependência química é observada em relação à maconha, benzodiazepínicos, cocaína, opiáceos e crack, nesta ordem. 

Quando procurar uma clínica de reabilitação?

O tratamento da dependência química envolve uma abordagem multidisciplinar e varia de acordo com a individualidade de cada caso. Intervenções farmacológicas e psicológicas geralmente são a base do tratamento. Os modelos de assistência ao dependente químico são diversos e a adaptação desses modelos às necessidades do paciente são determinantes para o sucesso de seu tratamento. Para isso, devem ser levados em consideração a singularidade psíquica e biológica do indivíduo, o tipo da droga da qual se faz uso e seu contexto socioambiental. Outra possibilidade, também, é a família marcar uma consulta com especialista para traçar um plano terapêutico.

Em alguns casos, o acompanhamento ambulatorial com psiquiatra, isto é, atendimentos em consultórios médicos, hospitais ou unidades de saúde, pode ser suficiente. Já em outros casos, pode ser necessário que o indivíduo fique internado em hospitais ou clínicas especializadas. “A internação em casos de transtorno por substâncias é indicada quando há grave risco à integridade da pessoa, ou quando outros tratamentos extra-hospitalares não se mostram efetivos para aquele caso”, explica o psiquiatra e especialista em dependência química Thiago Ferro.

Ferro explica que há duas modalidades de internação: voluntária, que acontece com a concordância da pessoa, e involuntária, na qual a pessoa é contrária à internação.

“No caso da internação voluntária, a pessoa que busca o tratamento deve se perguntar ‘eu vou conseguir sair desse ciclo sozinho?’ ou ‘a ajuda que tenho aqui fora é suficiente para tratar a dependência?’ Se a resposta for negativa, a internação numa clínica pode ser uma possibilidade terapêutica”. Isso porque, conforme afirma o especialista, uma das grandes dificuldades em relação ao transtorno decorre de alterações cerebrais causadas pela substância, de modo que parar o consumo e ficar em abstinência pode significar um esforço hercúleo, com eventuais episódios de recaída.

“O transtorno fala muito alto, já que é uma doença do cérebro, neurobiológica. Assim, é necessário o acompanhamento com psiquiatra, psicólogo e também grupos de apoio, como Narcóticos Anônimos. Se a pessoa com problema com drogas não conseguir o suporte necessário, seja por conta própria, o que é muito mais difícil, seja com essa rede de apoio, a internação pode ser sugerida”, completa.

Ao dizer que a internação em clínica de reabilitação pode ser sugerida, Ferro destaca outros modelos que podem ser efetivos antes da terapia baseada em internação. “Cito como exemplo o hospital-dia, no qual o indivíduo fica lá durante parte do dia e faz atividades terapêuticas. Ele participa de oficinas de arteterapia e de musicoterapia, integra grupos com psicólogos, faz reuniões só com os pacientes, e ao fim do dia volta para casa. Infelizmente, esse tipo de tratamento nem sempre é acessível a todos por questões financeiras e também porque pode depender da liberação do trabalho, se for o caso do indivíduo”. Além do hospital-dia, o psiquiatra cita os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) III AD, que dão suporte terapêutico especializado em intervenções relacionadas ao uso de substâncias e que oferecem acolhimento noturno.

“A internação involuntária, por sua vez, pode ser recomendada quando a pessoa com problema com drogas não quer se internar, mas tanto a família quanto o médico que o acompanha já notaram riscos. Aqui estamos falando de integridade física, mental, moral, profissional, patrimonial ou de qualquer natureza. Não é o melhor modelo de internação, mas ele pode ser necessário”, explica Ferro.

A lei número 13.840, de 2019, estabelece que a internação involuntária acontece sem o consentimento do dependente, a pedido de familiar ou do responsável legal ou, na absoluta falta deste, de servidor público da área de saúde, da assistência social ou dos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad), com exceção de servidores da área de segurança pública, que constate a existência de motivos que justifiquem a medida. Para isso, é necessária a formalização da decisão por médico responsável e o tratamento dura no máximo 90 dias, dentre outros critérios legais.

Confira:

Quais são os modelos existentes?

As internações podem ser breves ou longas e nelas o tratamento é usualmente conduzido por uma equipe multidisciplinar, multifocal e que observa as necessidades e os casos de cada paciente, individualmente. Um dos modelos de assistência ao dependente químico é a Moradia Assistida, que oferece serviços de atenção social e de saúde um período que varia de três meses a um ano. Nessas ambientes, o acompanhamento do indivíduo é feito geralmente por profissionais de saúde e tem por objetivo a reinserção social e prevenção à recaída – alguns deles exigem que o paciente se mantenha sóbrio para a continuidade. Elas são indicadas sobretudo para estágios mais avançados de recuperação, nos quais o paciente geralmente obteve mais ganhos em relação ao tratamento, e para indivíduos com demanda de acolhimento social.

Já a internação em clínicas privadas geralmente acontece de forma particular ou por planos de saúde e, nelas, a pessoa com problema com substância é inserida num programa de tratamento. “A grade de atividades é diferente para cada tipo de demanda e nela a pessoa passa a desenvolver disciplina, que muitas vezes é difícil para quem tem o transtorno. Assim, todo mundo tem horário para acordar, para fazer as atividades conforme o cronograma proposto, para fazer as refeições, por exemplo, e também é cobrada a presença nas atividades" sintetiza Ferro.

O psiquiatra ainda explica que nesse modelo de internação não se fala apenas das substâncias em si, mas de recuperação, de ferramentas para não acontecerem recaídas e de trabalhos de motivação, mostrando uma nova maneira de se viver. “Enquanto o paciente se ocupa com as atividades, palestras e depoimentos, a medicação faz efeito”, explica o psiquiatra, se referindo aos medicamentos usados no tratamento da dependência química.

Cada clínica tem seu formato de condução das terapias para transtornos por uso de substância. Nesses casos, conforme analisa o psiquiatra, a internação por dependência química idealmente deve ser mais longa por conta do processo de detoxificação e neuroreabilitação. Durante o processo, também é feito um trabalho de ressocialização, que se faz necessário para quando a pessoa sair da clínica e voltar para sua rotina, evitando recaídas. Uma das estratégias que pode ser adotada é o Projeto Terapêutico Singular (PTS), que se baseia num conjunto de propostas de condutas terapêuticas articuladas para um indivíduo ou um grupo que resulta da discussão coletiva de uma equipe interdisciplinar. Assim, psiquiatras, psicólogos, enfermeiros e conselheiros terapêuticos avaliam as melhores estratégias para o sucesso do tratamento.

As Comunidades Terapêuticas (CT) também constituem opções para a abordagem clínica de pacientes que são dependentes químicos. O modelo tem sua origem no Reino Unido e nos Estados Unidos, em meados do século XX, e chegou ao Brasil em 1968, quando a primeira CT foi fundada em Goiânia. As CTs são entidades privadas, sem fins lucrativos, que realizam o acolhimento em regime residencial, em caráter voluntário, de pessoas com problemas associados ao uso nocivo (como o risco de agressão a si ou a outra pessoa) ou dependência de substâncias psicoativas. As pessoas ali acolhidas geralmente têm baixo nível de suporte social ou existência de fatores de risco na comunidade.

Nessas comunidades, as pessoas também recebem assistência à saúde para interromperem o uso da substância e apoio para retomar sua vida social. Segundo informações da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, a depender da complexidade de cada instituição, podem fazer parte da equipe dela psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros, terapeutas ocupacionais e educadores. Por vezes, médicos integram o corpo clínico ou se associam à organização como prestadores de serviço ou voluntários.

Algumas CTs são vinculadas a entidades religiosas e seu objetivo, em linhas gerais, é a interrupção completa do consumo de álcool e outras drogas por meio da abstinência. Assim, a pessoa acolhida se compromete, porquanto ela estiver na CT, a permanecer abstêmia. No ano passado, o Conselho Nacional de Políticas Sobre Drogas (Conad) regulamentou o acolhimento de jovens de 12 e 18 anos incompletos dependentes de álcool e outras drogas em CTs. O acolhimento deve ser feito de modo voluntário e com autorização prévia dos responsáveis legais pelo menor, após avaliação pela rede de saúde.

Segundo dados do Ipea, no Brasil há mais de 1800 CTs e, conforme informações do Ministério da Cidadania com dados de 2020, 487 delas recebem recursos federais, acolhendo mais de 10,5 mil pessoas.

O que observar numa clínica de reabilitação?

Thiago Ferro salienta que “é importante ter a opinião de um psiquiatra de confiança sobre qual clínica buscar. Se não for possível ouvir a opinião do especialista, saber da experiência de alguém que já passou pela clínica pode oferecer um direcionamento mais assertivo na hora da escolha”. Entretanto, Ferro alerta que, a depender da gravidade do quadro da pessoa, o acesso a uma clínica se torna mais importante do que a espera por boas indicações e que a rede pública de saúde carece desse tipo de atendimento.

Outro aspecto a se observar na hora de escolher um espaço para internação é saber se ele é regulamentado e segue os protocolos da Anvisa e outros ditames legais específicos para seu funcionamento. Uma vez considerado isso, é necessário avaliar se ele é adequado para o tipo de intervenção clínica que o paciente precisa, uma vez que nem toda clínica de reabilitação é especializada no tratamento de transtornos por substâncias. Além disso, é importante considerar que o dependente ficará por um período de tempo ali, assim, a infraestrutura deve ser adequada às suas necessidades da vida diária, bem como ter condições de prestar atendimentos de emergência, caso seja necessário.

Saber sobre a rotina do paciente durante seu período de acolhimento na clínica e a proposta de manejo de cuidado, isto é, quais os protocolos são seguidos para o caso do paciente e quanto tempo leva seu tratamento pode orientar a família. No mesmo sentido, também é primordial conhecer as pessoas que compõem a equipe terapêutica, como médicos, enfermeiros, psicólogos e outros profissionais da rede de apoio, saber de sua disponibilidade tanto para atender o paciente quanto para receber e esclarecer dúvidas da família e a possibilidade de contato do paciente com sua família por meio de visitas ou ligações, por exemplo.

Por fim, o tratamento deve respeitar a individualidade do paciente e isso deve ser levado em consideração. Portanto, conhecer as abordagens feitas por aquele espaço terapêutico não apenas durante o período de internação, mas também após a saída da reabilitação pode ser determinante tanto para a pessoa com problemas com drogas quanto para sua família em relação ao sucesso do tratamento. 

*Leo Fávaro é acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo

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Léo Fávaro

Léo Fávaro

Ex-advogado, jornalista e, atualmente, acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo. Escreveu por bastante tempo sobre música, cultura pop e moda, e atualmente se dedica a escrever sobre saúde. Está nas redes sociais como @leofavaro