Usuários da semaglutida (Ozempic) têm relatado esse efeito colateral "bem-vindo"
Tatiana Pronin Publicado em 13/11/2022, às 09h00
Uma droga que faz a pessoa emagrecer bastante e que pode reduzir o risco de desenvolver diabetes pela metade em 10 anos? Num país onde quase 6 em cada 10 têm sobrepeso e o 5º no mundo com maior incidência de diabetes, não é de se estranhar que tanta gente esteja falando sobre a semaglutida (Ozempic, Rybelsus e Wegovy) em redes sociais como o TikTok, com fotos de “antes e depois”.
Em outros países, a febre é a mesma. Tanto que, nos EUA, muitos veículos de imprensa têm culpado as redes sociais e as estrelas de Hollywood por uma suposta falta do medicamento no mercado – algo que coloca em risco a saúde dos usuários que sofrem de diabetes, consumidor para o qual o fármaco foi desenvolvido inicialmente. Elon Musk já comentou no Twitter que usa a substância (em conjunto com jejum), e muitas celebridades procuram meios de conseguir o remédio para emagrecer na Califórnia, em Nova York e Miami, como descreve uma reportagem recente do The Wall Street Journal.
And Wegovy
— Elon Musk (@elonmusk) October 2, 2022
No atual cenário, dá até um certo receio falar de um outro possível efeito da semaglutida: a redução do desejo de consumir álcool. Embora o fenômeno não tenha sido confirmado em estudos com seres humanos, muitos usuários têm relatado que, sem fazer qualquer esforço para isto, não têm mais interesse em esvaziar várias latas de cerveja no churrasco do fim de semana, ou se contentam com apenas alguns goles, quando sempre tiveram o hábito de pedir três ou mais drinques numa festa.
Antes que alguém se anime com a ideia, é preciso fazer alguns avisos importantes. A semaglutida só foi registrada, no Brasil, para o tratamento do diabetes tipo 2. Nos EUA e em outros países, ela já foi aprovada para tratamento da obesidade (ou Índice de Massa Corporal – IMC igual ou superior a 30, mesmo sem diabetes) e do sobrepeso (IMC igual ou superior a 27) associado a outros problemas de saúde. A versão da semaglutida direcionada para esse fim, o Wegovy, ainda está em processo de aprovação na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Muitos médicos já têm feito o chamado uso “off label” (fora do que prevê a bula) do Ozempic para ajudar pacientes que não têm diabetes a perderem peso. Nem por isso o medicamento pode ser usado por qualquer pessoa que queira perder alguns quilos extras ou manter a cintura fina: ele é caro (cerca de R$ 700 por mês), precisa ser tomado por longos períodos e tem uma série de efeitos colaterais, principalmente no primeiro mês de uso, ou após o aumento gradual das doses.
Náusea, vômitos, dor abdominal, inapetência, diarreia ou constipação estão entre os sintomas mais comuns, e, para algumas pessoas, eles são tão intensos que o tratamento acaba sendo abandonado. Outros efeitos menos comuns são hipoglicemia (apenas quando a pessoa também toma outros remédios para regular a glicose), refluxo, gastrite, cálculo biliar, depressão, tontura, fadiga e pulso rápido, também capazes de fazer muita gente desistir da droga. Uma reação incomum (mas grave) descrita para essa classe de medicamentos é a pancreatite. E estudos em ratos apontam o risco de um tipo raro de câncer de tireoide, algo que não apareceu em estudos em humanos.
O medo de injeção não chega a ser um obstáculo para o uso do Ozempic (ou do Wegovy, fora do Brasil), já que a agulha é finíssima e a aplicação é semanal, diferente de outros medicamentos da mesma classe que chegaram primeiro no mercado, como a liraglutida (Victoza e Saxenda).
Mas quem se incomoda ou já precisa lidar com muitas picadas por causa de outros tratamentos pode utilizar a versão oral (Rybelsus), lançada no Brasil este ano. A desvantagem é que a cápsula precisa ser ingerida em jejum, e deve-se esperar no mínimo 30 minutos antes de comer ou tomar qualquer outro remédio. (Quem toma hormônio para tireoide, por exemplo, precisa tomar a semaglutida em jejum, esperar meia hora, tomar o hormônio, esperar mais meia hora, e só então tomar café da manhã).
Por fim, o próprio efeito esperado da droga, que é reduzir a vontade de comer, também é alvo de críticas. Uma reportagem recente do britânico The Guardian mostra que muitos usuários têm sentido saudade do prazer de comer. E uma usuária ouvida pelo site Doutor Jairo, que não quer se identificar, conta que sentia tanto nojo de comida no início do tratamento com o Ozempic, que não conseguia nem cozinhar para a família. Nem todo mundo que precisa emagrecer por questões de saúde está preparado para abrir mão de um prazer tão presente em sua vida.
In the meantime, semaglutide (aka Ozempic/Rybelsus) appears to be effective in appetite control with minor side effects
— Elon Musk (@elonmusk) April 24, 2022
A semaglutida é um agonista do receptor de peptídeo 1 análogo ao glucagon (GLP-1). Calma, que eu explico melhor: o GLP-1 é um hormônio produzido naturalmente pelo nosso intestino quando fazemos uma refeição; ele estimula a produção de insulina, o hormônio que regula a glicose (açúcar no sangue). Já a semaglutida é uma forma sintética de GLP-1 e tem uma ação mais duradoura.
Além de evitar o excesso de glicose no sangue, o que é fundamental para quem sofre de diabetes, a droga melhora a resistência à insulina, retarda o esvaziamento do estômago e atua, no Sistema Nervoso Central, em receptores envolvidos no controle do apetite. Isso significa menos fome, controle da compulsão alimentar e, pela melhora da resistência à insulina, maior queima de gordura.
Um estudo apresentado em setembro na Associação Americana do Diabetes mostrou que o uso semanal da injeção de 2,4 mg de semaglutida foi capaz de reduzir em 60% o risco de pacientes obesos ou com sobrepeso desenvolverem diabetes nos dez anos subsequentes. O resultado foi divulgado com entusiasmo por publicações especializadas, já que o excesso de peso aumenta consideravelmente o risco de diabetes tipo 2, e a doença eleva o risco de infarto ou derrame – maiores causas de mortes no mundo.
Se a obesidade e o diabetes são fatores de risco que ameaçam a vida, o uso excessivo de álcool não está muito atrás. Ao contrário do que muita gente imagina, não é preciso beber todo dia ou ficar embriagado todo fim de semana para ter problemas de saúde como gordura no fígado, cirrose e muitos outros. Mesmo quantidades moderadas de álcool podem elevar o risco de certos tipos de câncer, e hoje a Organização Mundial de Saúde (OMS) preconiza que não existe limite seguro para o consumo.
Ao considerar tudo isso, e também o fato de que o transtorno por uso de álcool é uma condição de difícil tratamento, chama atenção que a semaglutida diminua a vontade de beber. Vale lembrar que uma das drogas mais revolucionárias dos nossos tempos – o Viagra, surgiu a partir da observação de um efeito colateral comum em um remédio desenvolvido para problemas do coração.
A endocrinologista Maria Fernanda Barca, membro da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (Sbem) e da Sociedade Europeia de Endocrinologia (SEE), conta que já tinha reparado nesse efeito sobre a vontade de beber com outros agonistas do GLP-1. Mas, segundo ela, a semaglutida é mais potente, inclusive no que se refere ao desejo por comida:
Tenho até paciente que diz ‘poxa, doutora, nem tenho mais vontade de ir ao bar’, e a gente vê que a esposa está feliz da vida por isso. (...) A pessoa fica sem ‘tesão’ de comer e beber, fica mais seletiva”.
Ela acrescenta que uma de suas pacientes até melhorou da compulsão por compras com o uso da semaglutida, algo que demonstra o quanto certos desejos podem ter origens em comum.
A psiquiatra Camila Magalhães Silveira, do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) também já observou estas reações em pacientes que usam a semaglutida: o desejo de beber diminui, ou, ao consumir álcool, ficam saciados mais rápido. “Por conta de o medicamento diminuir a impulsividade no sistema mesolímbico, que é o sistema do prazer, de recompensa, acaba que também diminui a impulsividade para beber, assim como para comer em demasia”, justifica a médica, que também é pesquisadora do Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas (Grea).
Eu tenho pacientes que não têm dependência, mas abusam – quando bebem, consomem cinco ou mais doses de álcool, ou começavam a beber na sexta e só paravam no domingo, e que, ao fazer uso do Ozempic, ficaram menos ávidos a consumir bebidas alcoólicas dessa maneira.”
Esses efeitos, ela conta, também são observados com o uso de outro medicamento, a naltrexona, este sim aprovado para o tratamento do transtorno relacionado ao uso de álcool. Camila conta que muitos usuários da naltrexona também perdem a compulsão por comida com o seu uso.
Ainda há outros medicamentos bem estudados para o uso abusivo de álcool, que, associados à terapia, aumentaram muito as taxas de sucesso do tratamento nos últimos anos. Mas a semaglutida tem um mecanismo de ação diferente dessas outras drogas, o que pode, no futuro, abrir caminho para terapias mais eficazes. Uma reportagem recente no Insider conta o caso de um paciente que consumia 45 drinques por semana, e que já tinha reduzido a ingestão pela metade com a naltrexona. Mas, depois de iniciar o uso concomitante da semaglutida, passou a consumir de três a cinco doses semanais, um ganho imenso à saúde.
Ao tomar qualquer medicamento, o ideal é não consumir nenhuma quantidade de álcool. Mas, na prática, nem todo mundo segue a recomendação. No caso de quem sofre de diabetes, a questão é ainda mais séria: beber engorda e eleva os níveis de glicose no sangue. Para piorar, o consumo excessivo pode levar à hipoglicemia, condição que, para esses pacientes, representa risco de vida.
Diabetes, obesidade e transtorno relacionado ao uso de álcool são todas doenças crônicas, que precisam ser tratadas para sempre. As mudanças no estilo de vida são fundamentais, e não são substituídas pelo tratamento medicamentoso, mas ninguém consegue passar “o resto da vida” numa dieta exemplar. Há a influência das redes sociais, propagandas, pressão dos pares, eventos sociais...é muita tentação para alguém administrar sozinho. E alguns pacientes até se afastam do tratamento por não abrirem mão da sua “cervejinha”, ou do churrasco com os amigos. O papel do médico, nesses casos, é discutir concessões, propor mudanças graduais e lidar com a realidade de cada paciente.
Confira:
Consultada pelo site, a Novo Nordisk (fabricante do Ozempic, Rybelsus e Wegovy) reforça que a semaglutida não é indicada para quem precisa parar de beber. Nas palavras da endocrinologista Priscilla Mattar, diretora médica da Novo Nordisk:
Existe, sim, um potencial no efeito de consumo do álcool, mas são estudos experimentais, isto é, em animais (roedores e macacos).”
Ela conta que, em estudos com roedores, os análogos do GLP-1 de longa duração, como a liraglutida e a semagludida, mostraram redução do consumo de etanol, mas não os de curta duração. "Outro estudo mostrou redução dos sintomas da abstinência ao álcool e menor procura pela substância – mecanismo que pode ser explicado, provavelmente, pela ligação com áreas de recompensa do cérebro. Todos esses dados precisam ser confirmados, pois estamos falando de estudos pré-clínicos que são realizados em animais. Um grupo da Carolina do Norte está conduzindo um estudo com a semaglutida para investigar esses efeitos num estudo em 150 pacientes”, acrescenta a diretora médica.
"A Novo Nordisk reforça que não está conduzindo nenhum desses estudos e indica apenas a utilização de seus medicamentos de acordo com os casos previstos em bula e aprovados em cada país", finaliza.
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