O envolvimento emocional com os jogos pode ser atribuído à dopamina, importante neurotransmissor cerebral
Cármen Guaresemin Publicado em 24/06/2024, às 18h00
A Comissão de Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado aprovou no último dia 19 de junho um projeto de lei (PL) que autoriza jogos de azar no país, incluindo jogo do bicho, bingo, cassinos e aposta em cavalos. A proposta segue agora para o Plenário e, se for aprovada sem alterações, irá para sanção do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O projeto também cria várias regulações, entre elas, por exemplo, consta que o Ministério da Fazenda coordenará as atividades, que as empresas terão que recolher impostos, que haverá locais específicos para a prática e que somente maiores de 18 anos poderão jogar.
Menores de 18 anos, pessoas diagnosticadas com compulsão por jogos de azar - cadastradas no Registro Nacional de Proibidos - e interditados judicialmente não poderão apostar. Os senadores que foram contra a aprovação argumentaram que a liberação dos jogos fará aumentar os gastos com saúde mental no SUS. A exploração de jogos de azar no Brasil está proibida desde 1946. Porém, o bingo voltou pela Lei Zico (Lei 8672/93), de 1993, que foi reafirmada cinco anos depois pela Lei Pelé (9615/98), que destinava 7% do faturamento das casas de bingo às entidades que representavam as modalidades olímpicas e paraolímpicas. Uma nova proibição aos bingos foi decretada em 2004 pelo Presidente Lula, por meio de Medida Provisória 168/04 em fevereiro de 2004.
Jogos sempre exerceram fascínio sobre as pessoas, provocando desafios, trazendo recompensas e a sensação de satisfação ao progredir dentro de uma trajetória. Porém, o que poderia ser apenas um passatempo ou um mero prazer, pode se transformar em um vício e fazer com que o jogador perca não somente dinheiro, mas a saudê mental, quando o jogo passa a ser um vício.
Esse envolvimento emocional com os jogos pode ser atribuído à dopamina, importante neurotransmissor cerebral. O número de benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) pagos a pessoas com doenças mentais por vício em jogos, que é considerado uma doença, tem aumentado desde a pandemia de Covid-19. Em três anos, no território brasileiro, os casos chegaram a 350%, referente ao vício em jogos. Segundo o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait).
Katia Branco, psiquiatra, especialista em transtornos do impulso, e supervisora de residentes do Ambulatório do Jogo e Transtornos e do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo, em entrevista à Rádio Eldorado no dia 21 de junho, afirmou que a liberação dos jogos de azar no Brasil é uma questão delicada, pois apostas são um problema da nossa sociedade e que, com essa nova permissão, há um grande risco do aumento dos casos de pessoas viciadas em jogos.
Ela enfatiza que se trata de um quadro de dependência, e para ela é bem claro que será muito difícil que essas pessoas não tenham acesso aos jogos, mesmo que essas medidas de prevenção ou de contenção sejam efetivas, pois quem quer jogar conseguirá. “Hoje, mesmo o jogo sendo proibido, nosso ambulatório do Instituto de Psiquiatria no Hospital das Clínicas está com um número enorme de pessoas e com muita dificuldade para manejar o quadro”, declarou a médica.
Ela enfatizou, durante a entrevista, que as pessoas acabam, de uma forma ou de outra, achando meios para conseguir jogar: “Se hoje que é proibido, elas conseguem, o que as impedirá de conseguir isso na hora que for liberado somente colocando o nome em um cadastro, criando uma restrição? Esta é realmente uma preocupação que nós temos... Quem está nos ouvindo se tiver este conhecimento ou conviver com alguém que tenha este problema pode estar pensando ‘quem tem uma dependência sempre vai conseguir um meio de burlar para alcançar seu objetivo’”.
A psiquiatra explicou que no nosso cérebro há várias áreas, entre elas a do centro de recompensa. Assim, na medida em que nós temos uma ativação anormal, ou ocorre um estímulo, seja por qual substância ou meio for, será criada uma dependência. Seja de álcool, drogas, como crack ou cocaína, ou qualquer outro tipo de substância. Hoje, segundo ela, os tratamentos para se tratar vários tipos de vícios se assemelham, isso porque as regiões do cérebro que são ativadas são as mesmas que envolvem qualquer vício. “O ponto acaba sendo o mesmo, seja uma dependência ao jogo, ao álcool, à droga, ou até psicotrópicos, como medicações controladas como os benzodiazepínicos”, apontou a médica.
Quem é a favor da liberação dos jogos justifica dizendo que os espaços renderão empregos e impostos, Quem é contra argumenta que os custos com a saúde pública irão aumentar no SUS. Kátia lembra que este é um ponto extremamente importante, pois o sistema de saúde hoje vive uma série de dificuldades e que não existe um suporte para boa manutenção dos custos.
“Não adianta dizer que serão destinados recursos... Desculpe, se hoje a gente ainda não conseguiu que os recursos sejam melhores destinadas à saúde, vemos uma série de entraves, quem irá garantir que isso vai ocorrer com a liberação? E quem consegue pensar ou perceber que a liberação dos jogos vai permitir melhorar o custeio [do paciente]? Esta conta nunca vai fechar. Num país como o nosso, a liberação deste tipo de atividade só nos coloca em uma zona de risco maior e com mais dificuldade, provavelmente, ninguém pode afirmar, mas a verdade é esta. Olhando nossa realidade atual, é muito difícil que com a liberação desse jogos nossa economia consiga dar conta do sistema público de saúde, melhorando ou aumentando a qualidade do atendimento e o fornecimento de medicações. E se estamos apontando, aqui atrás, que há um risco de uma epidemia, se há esse risco, qual a vantagem de se liberar os jogos na nossa sociedade? Fica a minha pergunta e gostaria de ouvir uma resposta das partes interessadas?”, declarou a médica.
Katia reforça que as famílias que sofrem com casos de pessoas viciadas em jogos não as considerem "malandras ou folgadas", pois são doentes que precisam ser tratados. O tratamento costuma ser feito com medicação, receitada por médico psiquiatra, para estabilizar o paciente, acompanhado por psicoterapia. A participação da família e amigos é fundamental para que o processo tenha eficácia e o paciente consiga ter qualidade de vida.
Em São Paulo, o Instituto de Psiquiatria (IPq) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina (HCFM) da Universidade de São Paulo possui o Ambulatório do Jogo Patológico (AMJO) e o Programa Ambulatorial Integrado dos Transtornos do Impulso. Para obter informações sobre ambos, clique aqui.
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