Falar sobre a dor é difícil, mas é o caminho para a cura. Essa talvez seja a principal mensagem do filme “Encanto”, da Disney, que levou o Oscar de melhor animação este ano. Nos EUA, alguns profissionais têm dito que o filme é uma ótima ferramenta para discutir neurodiversidade e saúde mental com crianças, e até mesmo com adultos, em especial filhos de imigrantes latinos que se veem refletidos no roteiro, como afirma a terapeuta Kadesha Adelakun em reportagem recente para a CNN.
O filme conta a saga dos Madrigal, uma família colombiana que vive numa casa mágica e que ajuda, com esse “milagre”, a comunidade rural em que está estabelecida. Essa missão é levada a ferro e fogo pela matriarca, Alma. Todos os seus descendentes, exceto uma, foram presenteados com um dom especial, que se manifesta na infância e favorece o vilarejo. Quando isso acontece, a criança recebe de presente um quarto único na residência encantada, e tudo isso é celebrado com uma grande festa, bem no estilo dos batizados celebrados por comunidades latinas.
Mirabel, a protagonista do filme, é a única da família a não ter sido agraciada com um talento sobre-humano. Essa heroína de óculos (algo raro de ser ver nas animações da Disney) guarda na mente e no coração o trágico dia em que seu quarto mágico e sua revelação não vieram, para horror de todos que assistiam à cerimônia. Um verdadeiro trauma de infância, que é revivido em flashback no dia do primo receber seu dom.
Os poderes dos parentes de Mirabel dariam um texto à parte. Sua mãe, por exemplo, consegue curar (quase) tudo com uma comidinha gostosa – e quem nunca se automedicou com uma guloseima típica da infância? Tem também a irmã “perfeitinha”, e a mais velha é tão forte, que carrega a casa nas costas, literalmente.
Dá raiva ver como a avó ignora a frustração da neta, a fim de garantir que tudo dê certo. Aos poucos, contudo, descobrimos o que está por trás dessa obsessão da matriarca em “não deixar a casa cair”. Ela tem seu próprio trauma – presenciou o assassinato do marido durante a migração, e teve que criar sozinha os três filhos pequenos. Como o amor da vida de Alma, muitos imigrantes arriscaram, e ainda hoje arriscam, a vida para oferecer um futuro melhor para seus descendentes.
A responsabilidade de manter tudo funcionando é tão grande para essa avó, que ela não pode chorar sua perda e ameaçar os alicerces da casa. Mas isso a torna insensível, também, à dor alheia. Além de ignorar o sofrimento da neta, ela tenta esconder o próprio filho, Bruno, de si mesma e do mundo. A ordem, na casa, é não falar sobre esse integrante da família que tem rituais estranhos e o dom de prever o futuro com profecias complicadas, manifestações que podem ser interpretadas como transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) ou sintoma psicótico.
A rigidez abominável de Alma nada mais é que uma forma de tentar proteger sua família de uma perda tão grande quanto a que ela própria viveu. Mas a cobrança é tanta, que os dons começam a pesar como fardos para todos. A irmã forte, por exemplo, sente seu poder falhar e teme que, sem poder trabalhar pelo vilarejo, deixará de ter valor (não deixe de ouvir com atenção a letra da música "Estou Nervosa"!). Para terapeutas especializados no tema, cada personagem apresenta uma maneira particular de reagir ao estresse e a experiências traumáticas: escapismo, passividade, superproteção, camuflagem, tiques, compulsões, autoanulação, etc.
A canção “Não Falamos do Bruno”, uma das melhores do filme, fala sobre a “ovelha negra da família”, aquele que traz verdades que é melhor esconder. Pessoas diagnosticadas com transtorno do espectro autista se identificaram com o personagem, que apresenta movimentos repetitivos, agitação e dificuldade de se relacionar. O fato de ter sido excluído gera empatia e curiosidade em Mirabel, o que dá origem à aventura sobre a qual não vamos falar, para evitar spoiler.
“Encanto” é um retrato perfeito do chamado “familialismo”, conjunto de valores que envolve ajuda mútua, identidade cultural e, claro, devoção à família. Esse modelo, típico de muitas comunidades de imigrantes, é o que garante a sobrevivência de muita gente, enquanto se vive às margens do Estado. De acordo com pesquisadores, cultivar esses laços sociais é fundamental até para manter a saúde dessas pessoas. Mas essa cultura também costuma gerar conflitos entre os mais jovens, que querem ter a liberdade de se expressar, sem a pressão exercida por pais ou avós, que arriscaram tudo por eles (e sempre deixam isso bem claro).
Confira:
Não só os imigrantes que vivem nos EUA se veem refletidos nos personagens de “Encanto”. Abandonar o país e viver longe do conforto gerado pelo conhecido pode deflagrar transtornos como estresse pós-traumático, ansiedade e depressão, segundo estudos. E a ciência mostra que essas feridas emocionais podem afetar o DNA e ser transmitidas para as gerações subsequentes, como indica uma pesquisa publicada ano passado na Nature Communications Biology. É impossível não pensar nos filhos e netos dos milhares de refugiados da Ucrânia, da Síria e de tantos outros países afetados por guerras e conflitos internos.
Mas também não é só de migrações e guerras que nascem os traumas. E podemos dizer que toda família tem um Bruno ou até mais de um; aquele que não atende às expectativas dos pais e avós, que bebe demais, que ouve ou diz coisas estranhas, que vive dentro do armário ou atrás das paredes, com medo de perder o afeto dos progenitores ou de cachoalhar a casa. Infelizmente, são poucos os que têm a coragem de Mirabel, que não só ousou falar sobre o trauma familiar, como envolveu seus parentes na sua busca por aceitação e cura.
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Tatiana Pronin
Jornalista e editora do site Doutor Jairo, cobre ciência e saúde há mais de 20 anos, com forte interesse em saúde mental e ciências do comportamento. Vive em NY. Twitter: @tatianapronin