Psicofobia: como o preconceito agrava a saúde mental das pessoas

Combater o problema é fundamental para melhorar a qualidade de vida das pessoas

Leo Fávaro* Publicado em 25/04/2021, às 09h00

Abril é o mês de combate à psicofobia, fenômeno que faz as pessoas terem vergonha de buscar ajuda - iStock

Enfrentar um transtorno mental é tarefa árdua tanto para aqueles diagnosticados com alguma doença dessa natureza quanto para sua família e seus amigos mais próximos. Não bastasse o comprometimento causado pelo quadro clínico em si, o preconceito contra portadores de transtorno mental acentua a gravidade de sua condição e os coloca numa posição socialmente vulnerável. A psicofobia, entretanto, ainda é pouco discutida e, infelizmente, amplamente praticada.

A terapeuta ocupacional e especialista em saúde mental Camila Mendes explica que a causa principal desse tipo de preconceito é o estereótipo erroneamente concebido daqueles que têm algum transtorno mental. “A base da psicofobia é a carga de estigmas que circula no imaginário social sobre as pessoas com doenças mentais, especialmente aquelas não tratadas. Esses estigmas, no entanto, não correspondem à realidade, mesmo porque quando estabilizadas, essas pessoas podem se engajar em atividades produtivas e desfrutarem de uma vida saudável”.  Seja por meio de comentários, seja por atos segregadores, a psicofobia não só existe como frequentemente é praticada, muitas vezes sem que as pessoas se deem conta disso.

Além do julgamento experimentado por aqueles que têm algum transtorno mental, muitas frases psicofóbicas são ouvidas por eles cotidianamente. “Quem vai ao psiquiatra é doido”, “depressão não é doença, é frescura”, “ansiedade é falta de oração”, “você não precisa de remédio, precisa de Deus” e “acorda pra vida, parece um retardado” são alguns exemplos.  Ao depreciar uma pessoa por sua condição mental, o que se faz, em verdade, é praticar preconceito e reforçar o estigma em torno dos transtornos mentais. A psicofobia também ocorre por ações discriminatórias quando, por exemplo, se limita o acesso de pessoas com transtorno mental a certos espaços, quando se dificultam oportunidades a elas ou quando as excluem socialmente por sua condição mental.

Vergonha de procurar ajuda

Vistas de modo injusto e equivocado como “fracas” ou “doidas”, as pessoas com comprometimento psiquiátrico evitam procurar apoio médico ou psicológico com receio do julgamento e da exclusão social, o que pode agravar o quadro clínico. “Infelizmente, em nossa sociedade, qualquer sinal de depressão, tristeza ou ansiedade é visto como fraqueza pela maioria das pessoas. As pessoas têm vergonha de pedir ajuda e são poucos aqueles que estão dispostos a ajudar. A demora na busca pelo tratamento pode inclusive agravar o quadro”, analisa o psiquiatra e presidente da Associação Psiquiátrica do Espírito Santo Valdir Campos.

A psicofobia atrapalha a busca e a adesão aos tratamentos para os transtornos mentais. O especialista destaca que “o estigma e o preconceito em relação às pessoas portadoras de doença mental podem, também, levá-las a buscar na automedicação, ou consumo de álcool e outras drogas, uma tentativa de amenizar o sofrimento, o que pode agravar ainda mais o seu problema, passando a ter duas doenças, uma piorando a outra”. Assim, o comprometimento mental é exponencialmente agravado e a qualidade de vida é amplamente prejudicada em todos os aspectos.

Campos também alerta para o fato de que qualquer pessoa pode ser acometida por algum transtorno mental em algum momento da vida. “Ninguém está livre de desenvolver alguma doença mental. Todos os dias milhares de pessoas no mundo inteiro recebem diagnósticos de depressão, transtornos de humor, déficit de atenção, transtornos de personalidade e ansiedade, por exemplo. No contexto da pandemia de Covid-19, esse cenário pode piorar ainda mais”, explica.

Combatendo a psicofobia

Os caminhos para combater a psicofobia apontam para uma mesma direção: informação sobre o tema e ação social. Camila Mendes ressalta que “a difusão de conhecimentos acerca dos transtornos mentais e o encorajamento da busca de tratamentos qualificados devem ser reforçados como modo de evitar esse preconceito”. Neste sentido, a terapeuta ocupacional ressalta a importância de iniciativas de enfrentamento à psicofobia como o Setembro Amarelo, mês de combate e prevenção ao suicídio e que dá visibilidade aos transtornos mentais.

“Outras iniciativas dizem respeito ao cuidado em liberdade, preconizado pela atual política de Saúde Mental, segundo a qual a pessoa em sofrimento psíquico deve ter seus direitos assegurados, como convívio social em oposição ao isolamento. Os Centros de Atenção Psicossocial (Caps), por exemplo, promovem oficinas nos territórios como forma de legitimar a presença da pessoa com transtorno mental na comunidade e integrá-la ao espaço, o que pode produzir a redução da psicofobia”, detalha a especialista.

Valdir Campos também destaca as ações institucionais como forma de combater o preconceito contra pessoas com transtorno mental, em especial o Dia Nacional do Enfrentamento à Psicofobia, que ocorre no dia 12 de abril. Institucionalizada pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), a campanha teve início a partir de um depoimento do humorista Chico Anysio, em 2011, no qual disse que fazia tratamento para depressão há 24 anos e aquela era a primeira vez que falava do assunto. Na entrevista ao então presidente da ABP, Antônio Geraldo da Silva, o humorista disse que “se não fosse o tratamento psiquiátrico, não teria feito nem 20% do que fiz em minha vida”. Assim, vislumbrou-se a necessidade de criar uma campanha de combate à psicofobia, reforçada anualmente e celebrada no dia do aniversário do humorista.

Até no Enem

A importância de se combater a psicofobia também foi ressaltada na última edição do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, cujo tema da redação foi “O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira”. Na prova, os estudantes dissertavam  sobre causas e consequências relacionadas à percepção equivocada dos transtornos psiquiátricos e a relevância da saúde mental - temática que ficou mais evidente pela quarentena e pelo isolamento social causados pela pandemia da Covid-19. Ao fim da redação, os estudantes deveriam propor meios de enfrentamento à problemática, o que é importante na medida que se presta como um exercício de reflexão.

A psicofobia também virou pauta legislativa. Profissionais que trabalham com saúde mental, associações de pessoas com transtornos mentais e a Sociedade Brasileira de Neuropsicologia participaram de audiência pública no Senado Federal, em 2011, ocasião na qual debateram sobre a criminalização da psicofobia. A discussão deu origem ao projeto de Lei do Senado nº 74/2014, protocolado pelo então senador Paulo Davim (PV/RN) para que fossem tipificados os crimes contra as pessoas com deficiência ou transtorno mental. O projeto, contudo, foi arquivado em 2018 ao final da legislatura.

Outro projeto também foi protocolado em 2012, quando o então deputado propôs que a discriminação ou o preconceito contra os portadores de transtornos ou deficiências mentais fosse crime, da mesma forma como preconceitos de raça ou cor, já previstos no ordenamento jurídico. O Projeto de Lei nº 5.063/2013 foi encaminhado para apreciação do plenário. A despeito de sua relevância, entretanto, foi arquivado dois anos depois.

Casos midiáticos

O grupo Black Eyed Peas lançou em 2003 o álbum “Elephunk”, que, dentre tantos hits, apresentava a música “Let’s get retarded”. A gíria, que na costa oeste americana tem o sentido de “ficar doido, animar, agitar”, foi vista como psicofóbica ao ofender ou diminuir pessoas com comprometimento mental. O grupo de Fergie, Will.I.Am, Taboo e Apl. de ap. reconheceu a falha e lançou uma versão da música chamada “Let’s get started”.

A MTV Brasil teve dois momentos marcantes que hoje são vistos como ações de psicofobia. O primeiro deles aconteceu em 2005, quando a dupla de humor Hermes & Renato falou numa vinheta para anunciar o prêmio de “Banda dos Sonhos” do VMB daquele ano que “o baterista é um animal, um mongoloide”. Um associação dos portadores de Síndrome de Down se manifestou contrária à utilização daquele termo pejorativo, ainda que o então diretor de programação e conteúdo do canal Zico Goes tenha relatado posteriormente em seu livro “MTV, bota essa p#@% pra funcionar!” que os humoristas queriam dizer que “tanto os mongolóides como os bateristas eram malucos do bem” e que não estavam se referindo à síndrome de Down. Para compensar a gafe, o canal fez um site com informações sobre a síndrome e convidou atores com essa condição para participar de vinhetas.

Já em 2011, a MTV Brasil foi condenada a pagar uma indenização de R$ 40 mil a pais de autistas. O motivo foi um esquete feito no programa Comédia MTV que parodiava o programa do SBT “Casa dos Artistas” com uma versão chamada “Casa dos Autistas”, no qual os personagens simulavam trejeitos atribuídos a pessoas com Transtorno do Espectro Autista. O Ministério Público Federal e várias associações de autistas do país se mobilizaram contra o esquete que tinha Tatá Werneck, Marcelo Adnet e Paulinho Serra, dentre outros, no elenco. Em seu livro, Zico Goes relata que novamente reconheceram a falha e, a partir de então, foram estreitadas relações com essas associações para criarem juntos materiais e campanhas para combater o preconceito em torno do autismo.     

Transtornos mentais no mundo

Segundo dados de 2017 da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas), mais de 300 milhões de pessoas no mundo sofrem de depressão, afetando 5,8% da população brasileira, enquanto os casos mundiais de ansiedade atingem 264 milhões de pessoas. A esquizofrenia, por sua vez, afeta 26 milhões de pessoas em todo o mundo conforme dados de 2014 da organização, sendo que metade delas não tem acesso a tratamentos.

A Opas também destaca que quase um bilhão de pessoas apresentam algum transtorno mental e que os países gastam em média 2% de seus orçamentos de saúde em saúde mental, sendo que cerca de 60% desse valor se destina a hospitais psiquiátricos. Além disso, os dados indicam que de 76% a 85% das pessoas com transtornos mentais em países de baixa e média renda não recebem tratamento. Esse número varia de 35% a 50% em países de alta renda. A Opas também chama a atenção a qualidade do tratamento prestado, ressaltando a necessidade de ajuda para que as pessoas com transtornos mentais acessem programas educativos adaptados à sua necessidade, empregos e moradias que lhes permitam viver e serem ativos em suas comunidades.

As condições mentais representam 16% da carga global de doenças e lesões em pessoas com idade entre 10 e 19 anos e metade de todas as condições de saúde mental começa aos 14 anos de idade, ainda que não detectada e tratada. Cerca de 800 mil pessoas morrem anualmente por suicídio, sendo essa a segunda principal causa de morte entre pessoas de 15 a 29 anos.

Esses dados reforçam a necessidade do combate à psicofobia, abrindo caminhos para que o tratamento seja feito sem restrições e a integração social seja uma ferramenta de melhoria da saúde mental. Nenhum tipo de preconceito se justifica e as trágicas consequências dessas práticas se refletem nas relações familiares e sociais e também nas políticas de saúde pública. #PsicofobiaExiste  

* Leo Fávaro é acadêmico de Medicina da Universidade Federal do Espírito Santo

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