Mariana Rocha* Publicado em 04/02/2022, às 11h00
Guias alimentares são documentos oficiais que visam à promoção da saúde da população. Diversos países os possuem, no entanto, a maioria apresenta uma visão limitada sobre como a dieta têm relação com a saúde. Isso acontece pelo simples fato de que tais documentos restringem o conceito de alimentação “equilibrada” à quantidade de nutrientes contidos nos alimentos. O conceito de saúde é atribuído apenas à presença ou ausência de doenças causadas seja pela falta ou pelo excesso de um ou mais nutrientes. De fato, a quantidade deles é relevante para a saúde, mas é apenas um dos pilares relevantes que contribuem no processo de saúde, doença e bem-estar.
No Brasil, o Guia alimentar para a população brasileira está em sua segunda edição (2014) e, desde sua publicação, ganhou destaque mundial, uma vez que tem suas orientações pautadas em um paradigma ampliado de alimentação “saudável”. O ponto central para tamanho destaque é o fato de que o Guia se baseia na classificação dos alimentos de acordo com o grau de processamento a que os alimentos são submetidos (classificação NOVA).
Esta proposta possui quatro grupos de classificação. O Grupo 1 é composto por alimentos in natura ou minimamente processados. Nessa categoria estão aqueles ao qual temos acesso de maneira como ele vem da natureza, incluindo partes comestíveis de plantas ou animais (ex: sementes, frutas, ovos, leite...), além de cogumelos e algas. Já os alimentos minimamente processados são aqueles in natura que precisaram passar por algum processamento para chegar ao consumidor final, sem adição de ingredientes ou transformações que descaracterizem o alimento (ex: carne resfriada ou congelada, feijão seco e embalado, farinha de trigo...).
Os ingredientes culinários processados constituem o Grupo 2. Eles são substâncias extraídas de alimentos do Grupo 1 através de procedimentos físicos, como prensagem, centrifugação e concentração (ex: azeite, açúcar, manteiga e sal).
Os alimentos in natura e minimamente processados modificados por processos industriais, como adição de açúcar, sal ou gordura (ex: queijos, conservas de frutas e legumes...), constituem o Grupo 3, denominado alimentos processados.
E, por último, temos o Grupo 4, formado por alimentos e bebidas ultraprocessados. Eles não são considerados propriamente alimentos, mas, sim, formulações de substâncias obtidas por meio de fracionamento dos alimentos do Grupo 1 somados a diversas substâncias que podem ser de uso doméstico (ex: açúcar e óleo) ou exclusivamente industrial (ex: gordura hidrogenada, amidos modificados, óleo interesterificado...). Além disso, são alimentos que frequentemente são adicionados de corantes, aromatizantes, emulsificantes, espessantes e diversos outros aditivos. São exemplos de alimentos do Grupo 4 os refrigerantes, misturas em pó, barras de cereal, margarinas, macarrão instantâneo e muitos outros de consumo frequente na população.
Dados populacionais de consumo alimentar em indivíduos adultos, no Brasil, mostraram que 18,4% das calorias totais ingeridas por dia são compostas de alimentos ultraprocessados. O problema em relação ao aumento da aquisição desses alimentos é que, de uma maneira geral, são compostos por uma grande quantidade de gordura, sal e açúcar. Esse novo padrão alimentar que vem sendo estabelecido já mostra seus efeitos em relação ao ganho de peso, uma vez que, qualitativamente, são alimentos com maior valor energético e estão diretamente associados à maior prevalência de risco de sobrepeso e obesidade.
Confira:
Em faixas etárias mais específicas da população como crianças, adolescentes e idosos, esse padrão de consumo parece ainda mais evidenciado. Um estudo que avaliou o consumo de ultraprocessados em crianças de uma unidade básica de saúde mostrou que 47% da energia consumida do dia vinham desses alimentos. Esse consumo vem sendo de total responsabilidade dos pais em faixas etárias mais baixas já que as mesmas não possuem o poder de compra.
Já em relação aos idosos, com o avanço da idade é possível observar uma maior dificuldade na identificação do cheiro e do sabor dos alimentos, e isso se deve a modificações de ordem fisiológica no idoso, como a redução no número de corpúsculos gustativos nas papilas linguais. A perda gustativa é mais acentuada no paladar para os sabores salgado e amargo, o que gera uma tendência do indivíduo idoso ao consumo de uma alimentação com maior acréscimo de sal e dar preferência à escolha de alimentos mais salgados, como ultraprocessados.
Um crescente número de estudos vem apresentando o impacto do consumo de alimentos de diferentes graus de processamento à saúde e é preciso chamar a atenção que, em longo prazo, o consumo desse padrão alimentar já mostra consequências à saúde física e mental em indivíduos adultos. Publicações recentes relacionaram o consumo de ultraprocessados com o desenvolvimento de obesidade abdominal, síndrome metabólica, depressão e mortalidade.
Acredita-se, portanto que conhecendo o grau de processamento dos alimentos comuns do cotidiano, a população tenha maior autonomia na decisão da escolha alimentar e dessa maneira consiga aplicar a “regra de ouro” de recomendação do Guia alimentar para população Brasileira:
Faça a base da sua alimentação através de opções variadas de alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias, ao invés de alimentos ultraprocessados.
*Sobre a autora: Mariana Rocha
Graduada em Nutrição pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Especialização aplicada às doenças renais e mestrado em ciências da saúde, ambos pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Docente de cursos de Pós-Graduação e Graduação em Nutrição em disciplinas com ênfase em Nutrição Clínica e Supervisão de Estágio. Nutricionista clínica em consultório particular e também no setor de Hemodiálise do hospital infantil Darcy Vargas. Docente do curso de graduação em Enfermagem na Faculdade de Ciências da Saúde IGESP. Doutoranda pela disciplina de nefrologia da faculdade de medicina da Universidade de São Paulo (USP) como parte integrante do Projeto de Pesquisa - Aging Nephropathy Study (AGNES) e Articulista do Portal Trevoo.
Referências
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